Friday, December 07, 2007

A DEMOCRACIA EM DEBATE

“É verdade, o senhor conhece aquela cela de masmorra a que na Idade Média chamavam o «desconforto»? Em geral, esqueciam-nos aí para o resto da vida. Esta cela distinguia-se das outras por engenhosas dimensões. Não era suficientemente alta para se poder estar de pé, nem suficientemente larga para se poder estar deitado. Tinha-se de adoptar o género tolhido, viver em diagonal; o sono era uma queda, a vigília um acocoramento.”

In “A Queda”, Albert Camus, na data em que, cinquenta anos atrás, recebeu o Nobel da Literatura.

Não sei se é vantajoso para Portugal negociar com Chávez mas todos os países negoceiam com todos e, se forem grandes potências, ninguém leva a mal. A natureza dos regimes políticos interessa pouco aos negócios. De outra maneira nenhum país democrático negociava com a China que não é um país democrático. Porque não com a Venezuela que é um país democrático? Imaginem!

Não sei se é vantajoso para Portugal gastar energias na promoção de uma cimeira dos países da União Europeia com os países africanos. Uma parte significativa dos regimes políticos dos países africanos são cleptocracias, oligarquias, ditaduras e o mais que se possa imaginar para pior (com excepções!). Neste caso, mais uma vez, a natureza dos regimes políticos interessa pouco aos negócios.

Não sei se é vantajoso para Portugal apostar na consolidação e aprofundamento da União Europeia e suponho que, mesmo dentro do partido do governo, campeiam dúvidas acerca da bondade do projecto europeu. Pois se a natureza dos regimes políticos interessa pouco aos negócios que razão há para partilhar um espaço supra nacional que exige um esforço de partilha da liberdade e da democracia?

Não sei se é vantajoso para Portugal dispor de um governo que se sujeite ao julgamento das urnas, ou seja, um governo democrático se, como diz a voz do povo e a de alguns intelectuais ultra pessimistas, como Medina Carreira, os governos, nos últimos trinta anos, são todos iguais na incúria, incompetência e desleixo? A mensagem subliminar deste discurso é a de que a natureza dos regimes políticos interessa pouco aos negócios e, ainda menos, aos cidadãos.

Há cada vez mais gente que defende que não é possível em Portugal discutir seja o que for acerca do futuro, o futuro dos portugueses, pois o tempo, no nosso tempo, corre a uma velocidade vertiginosa e os políticos eleitos, seguindo as regras da democracia representativa, tornam-se lívidos perante os ciclos eleitorais e a ditadura mediática, reduzindo a ética republicana a um minúsculo emblema que ostentam na lapela.

Se a maioria dos cidadãos está apartada da política e, na sua mão, somente luze uma vaga esperança em assegurar a sobrevivência material, não sei se não seria vantajoso para Portugal “convocar as cortes” para debater, enquanto é tempo, a própria democracia em prol de uma reforma profunda do regime democrático, a duras penas conquistado.

Ao contrário de todas as evidências a natureza dos regimes políticos interessa aos negócios e, mais do que aos negócios, interessa aos cidadãos e só o inconformismo que ouse colocar a democracia em debate pode salvar a própria democracia.

(Artigo publicado na edição de hoje, 7 de Dezembro de 2007, do Semanário Económico)

Saturday, December 01, 2007

"Aquí vivimos muertos"

Deixo aqui trancritos, a partir do El Pais, excertos de uma carta atribuída a Ingrid Betancourt, refém das FARC, que constitui um testemunho dramático que deveria levar todos os lideres politicos a reflectir acerca das suas decisões estratégicas no mundo dos nossos dias.

Ingrid Betancourt relata en una carta enviada a su madre la situación infrahumana que padece como rehén de las FARC.

"Aquí vivimos muertos. Estoy mal físicamente. No he vuelto a comer, el apetito se me bloqueó, el pelo se me cae en grandes cantidades". Son palabras de Ingrid Betancourt escritas por ella misma en una larga carta que ha mandado a su madre y que hoy ha publicado el diario colombiano Tiempo. La misiva de la rehén colombo-francesa ha causado una gran impresión por lo escalofriante de su situación donde intenta no desesperarse.

"Este es un momento muy duro para mí. Piden pruebas de supervivencia a quemarropa y aquí estoy escribiéndote mi alma tendida sobre este papel. No tengo ganas de nada. Creo que eso es lo único que está bien, no tengo ganas de nada porque aquí en esta selva la única respuesta a todo es 'no'. Es mejor, entonces, no querer nada para quedar libre al menos de deseos. Hace 3 años estoy pidiendo un diccionario enciclopédico para leer algo, aprender algo, mantener la curiosidad intelectual viva. Sigo esperando que al menos por compasión me faciliten uno, pero es mejor no pensar en eso”.

En plena desolación, el pulso de Betancourt tampoco tiembla a la hora de describir el momento que sufre retenida por las FARC. “La vida aquí no es vida, es un desperdicio lúgubre de tiempo. Vivo o sobrevivo en una hamaca tendida entre dos palos, cubierta con un mosquitero y con una carpa encima, que oficia de techo, con lo cual puedo pensar que tengo una casa. Tengo una repisa donde pongo mi equipo, es decir, el morral con la ropa y la Biblia que es mi único lujo. Todo listo para salir corriendo. Aquí nada es propio, nada dura, la incertidumbre y la precariedad son la única constante. En cualquier momento dan la orden de empacar y duerme uno en cualquier hueco, tendido en cualquier sitio, como cualquier animal”.

Me sudan las manos y se me nubla la mente y termino haciendo las cosas dos veces más despacio que lo normal. Las marchas son un calvario porque mi equipo es muy pesado y no puedo con él (...) Pero todo es estresante, se pierden mis cosas o me las quitan. Lo único que he podido salvar es la chaqueta, ha sido una bendición, porque las noches son heladas y no he tenido más que echarme encima.

Antes disfrutaba cada baño en el río. Como soy la única mujer del grupo, me toca prácticamente vestida: shorts, brasier, camiseta, botas. Antes me gustaba nadar en el río hoy ni siquiera tengo alientos para eso. Estoy débil, friolenta, parezco un gato acercándose al agua. Yo que tanto he adorado el agua, ni me reconozco. (...) Pero desde que separaron los grupos no he tenido ni el interés ni la energía para hacer nada. Hago algo de estiramiento porque el estrés me bloquea el cuello y duele mucho”.

Yo trato de guardar silencio, hablo lo menos posible para evitar problemas. La presencia de una mujer en medio de tantos prisioneros que llevan 8 y 10 años cautivos es un problema (...) En las requisas le quitan a uno lo que uno más quiere. Una carta que me llegó tuya me la quitaron después de la última prueba de supervivencia en el 2003.

Todos los días estoy en comunicación con Dios, Jesús y la Virgen (...) Aquí todo tienen dos caras, la alegría viene y luego el dolor. La felicidad es triste. El amor alivia y abre heridas nuevas... es vivir y morir de nuevo. Durante años no pude pensar en los niños y el dolor de la muerte de mi papá copaba toda la capacidad de aguante. Llorando pensaba en ellos, sentía que me asfixiaba, que no podía respirar”.

Friday, November 02, 2007

CINCO PALAVRAS APENAS

Podia escrever acerca do Tratado Reformador, ou Tratado de Lisboa, como será designado a partir de 13 de Dezembro, mas o tema é hermético demais para os escassos caracteres que me cabe ocupar. Para mim a importância do tratado, chapéu jurídico da UE, resume-se a uma palavra: paz.

Podia escrever acerca do PEC (Pacto de Estabilidade e Crescimento), ou mais prosaicamente, acerca do deficit, mas o tema está banalizado. O governo socialista bateu por KO técnico os seus adversários. Resta saber como a economia portuguesa, e a europeia, se animam para crescer mais e melhor somando à paz, a prosperidade.

Podia escrever acerca do desemprego, uma tragédia social, dilacerante para a vida real de milhares de famílias, mas receio ser levado a conclusões demasiado pessimistas pois creio que a mudança da especialização internacional da economia portuguesa é potencialmente geradora de desemprego e será ainda mais difícil somar à paz e à prosperidade, a solidariedade.

Podia escrever acerca do mercado de trabalho, que se estreita nos extremos, afastando os mais novos, que buscam o primeiro emprego, e os mais velhos, que buscam o reconhecimento da experiência; que lança para a emigração os trabalhadores mais qualificados e atrai, por via da imigração, mão-de-obra estrangeira menos qualificada, tornando mais difícil juntar à paz, à prosperidade e à solidariedade, a inclusão.

Podia escrever acerca do Dr. Santana Lopes que voltou à ribalta política com a onda que fez emergir o Dr. Menezes. De vez em quando os partidos mostram a sua verdadeira face. Nas dobras da longa túnica que encobre o exercício do poder, em democracia, acoitam-se todos os géneros de narcisismo indigente, tornando ainda mais difícil juntar à paz, à prosperidade, à solidariedade e à inclusão, a decência.

Podia escrever acerca dos homens e mulheres, de boa vontade, que colocam a liberdade acima de qualquer outro valor, para que se não dêem ao luxo do conformismo que Albert Camus, como se fora do nosso tempo, identificou como “O problema mais sério que se põe aos espíritos contemporâneos”.

Como poderão os cidadãos acreditar nas virtualidades da democracia representativa se ela não garantir a paz? Não gerar a prosperidade? Não propiciar, em solidariedade e inclusão, a dignidade, qualificação e valorização das pessoas? Não tomar a seu cargo o rejuvenescimento das elites dirigentes, sob o primado da decência?

Cinco palavras apenas: paz, prosperidade, solidariedade, inclusão e decência para escrever, finalmente, a frase que queria escrever: como hão-de os cidadãos, conformados à descrença nas suas próprias virtudes, ajudar à riqueza da nação?

[Artigo publicado na edição de hoje do "Semanário Económico".]

Wednesday, October 03, 2007

FUTEBOL – “FLUXO” E RESISTÊNCIA

Scolari e Mourinho, treinadores de futebol, representam, no imaginário popular, o desejo de lideranças fortes, mobilizando ódios e paixões, criando expectativas de vitórias que resgatem a honra de comunidades, povos e nações.

Nenhum outro fenómeno, senão o futebol, na maior parte dos países, regiões e continentes, mobiliza o interesse de tanta gente, sem distinção de idades, raças, credos, estatutos sociais ou económicos.

É um fenómeno paradigmático em que o jogo – actividade de lazer – se transformou num espectáculo de massas que, não deixando de criar a ilusão do jogo, deu origem, nas sociedades contemporâneas, a um “fluxo futebolístico” no qual o que se consome é o próprio fluxo.

O futebol como fenómeno de massas, mediatizado, suscita rivalidades e lutas de claques fanáticas, mobiliza meios financeiros vultuosos, alimenta ilusões de vitórias e alenta nacionalismos serôdios.

Os sujeitos do espectáculo, os jogadores mas também os treinadores/seleccionadores, deixaram de ser os senhores da sua vontade, entregues às regras de um mercado com leis próprias; os mediadores da informação deixaram de se compadecer com a “notabilidade” dos factos e preocupam-se em estimular a capacidade de efabulação das massas; as vitórias e as derrotas deixaram de ser o “resultado do jogo” mas o acontecimento mais ou menos forjado destinado a alimentar o fluxo.

Não que tenha deixado de existir o jogo autêntico – presente no futebol amador e noutras modalidades – mas este passou à categoria de resíduo social, lugar de resistência, só, plena e pontualmente reconhecido, no plano do fluxo, quando é, ao mesmo tempo, o lugar da tragédia... a queda de uma baliza esmagando o jovem,...ou o sacrifício exultante dos amadores de uma selecção de “rugby” enfrentando uma luta desigual na qual ocuparam, no palco mediático global, o papel de resistentes.

O fluxo subjuga o jogo, que se transforma no próprio fluxo, mas não elimina as manifestações de resistência em que o jogo autêntico persiste.

Desde a “Ilha da Culatra”, no meu Algarve, às mais pequenas ilhas dos Açores, desde as pequenas colectividades recreativas às grandes empresas, desde as escolas às ruas, o “fluxo futebolístico” encontra a sua réplica em milhares de resistentes que, apagados da ribalta mediática, são o outro lado de uma realidade humana que persiste em não se deixar apagar.

Scolari e Mourinho deixarão, um dia, de ocupar o palco, mas o “fluxo futebolístico” vai persistir, e o seu outro lado, o jogo autêntico, resistirá em todo o mundo, bastando para tal que hajam jogadores e um objecto simples, mais ou menos arredondado, no qual se possam dar pontapés.

O futebol é fascinante, além do próprio jogo, porque nos faz ir em busca de explicações para uma paixão, mobilizadora das grandes massas, que se constitui como lugar de “alienação” e, ao mesmo tempo, espaço de resistência que a mediatização não revela e a pura razão não apreende.

(Artigo publicado na edição de dia 4 de Outubro de 2007 do "Semanário Económico")

Wednesday, September 26, 2007

EUROPA: CULTURAS E CIVILIZAÇÃO NO MUNDO GLOBALIZADO

Confesso ter ficado surpreendido com o amável convite que a Senhora Ministra da Cultura me formulou para intervir nesta sessão, dando-me total liberdade para vos falar um pouco da minha visão do papel da Europa e das dimensões culturais europeias no mundo globalizado

Eu sou um simples técnico de relações internacionais, habituado a transportar para o quotidiano da minha acção aquilo que são os interesses portugueses, procurando fazê-los vingar no contraponto com os dos outros ou construindo pontes para a sua harmonização.

Noutras funções, tive a Europa, durante alguns anos, no meu horizonte diário de preocupações. Nessas tarefas, pude sentir a diversidade das perspectivas interiores sobre o modelo comum em mudança e, simultaneamente, pude atentar melhor na forma como o mundo exterior ia olhando o continente e o seu projecto político.

É talvez no cruzamento destes diferentes papéis, e das lições que deles possa ter tirado, que eu encontro uma justificação mais plausível para esta minha presença, hoje, perante vós.

Por isso, peço que não estranhem se o tom destas minhas palavras sair um pouco do “mainstream” deste debate e tente entrar por outros domínios que apenas se interligam comos aspectos culturais, vício a que um diplomata não escapa…

Estou aqui também como um português de uma geração que, tal como aconteceu com alguns de vós, teve o trágico privilégio histórico de viver num tempo de transição. Com efeito, experimentei já como adulto um ambiente de ditadura cuja principal perfídia foi conseguir adiar-nos decisivamente o futuro. E, tal como vós, vivo hoje numa democracia para cuja consolidação a Europa teve e tem um papel decisivo.

Na minha juventude, atravessar os Pirinéus era “ir à Europa”. A Europa era então uma entidade algo mítica, situada para lá de uma Espanha que éramos educados a desconhecer. Era um continente de que muitos de nós nos sentíamos sentimentalmente próximos, onde parte do meu país tinha já então ido à procura do seu futuro, mas que sabíamos fisicamente muito distante, até pela imperatividade do condicionamento que era imposto ao nosso quotidiano.

Enquanto nação, éramos naturais tributários das seculares culturas europeias, mas o isolamento que então sofríamos, ligado à prevalência no nosso quotidiano de um mito ideológico que assentava num patético imperialismo tardio, projectava-se em toda a nossa educação e tinha como objectivo deliberado afastar-nos da Europa.

A chamada “nação pluricontinental e pluriracial”, com que a ditadura portuguesa disfarçava o seu anacronismo histórico, tinha o projecto europeu como aberto inimigo. Recordo um jornal do regime que anunciava como lema: “Portugal não é um país europeu e tende cada vez mais a sê-lo cada vez menos”. E ainda há dias, a capa de um livro recém-publicado recuperava um mapa dos anos 40 do século passado que projectava Angola, Moçambique e a todas as restantes colónias portuguesas sobre uma carta da Europa, como que a sublinhar que, perante a importante dimensão conjugada desses territórios, na matriz do chamado “Portugal do Minho a Timor”, a Europa, enquanto entidade referencial, deveria ter para nós um peso muito relativo e, subliminarmente, ser vista como dispensável na construção do nosso futuro, que era “ultramarino” por vocação.

Nesse mundo irreal em que vivíamos “orgulhosamente sós”, como dizia Salazar, a Europa era pois o perigo maior, porque trazia em si a sinistra matriz dos direitos fundamentais, da detestada democracia, dos partidos políticos e da panóplia de ideias subversivas que tudo isso parecia comportar.

Para superar esse mundo de cinzenta fantasia, os sinais culturais da contemporaneidade eram a nossa ponte de ligação ao continente, eram a via de saída da “Jangada de Pedra”, que Saramago viria a fantasiar muitos anos mais tarde.

Quero com isto dizer que pertenço a um país e a uma geração que não foram sempre naturalmente europeus. Sendo europeus na raiz histórica, acabámos, na verdade, por apenas conseguir ser europeus contemporâneos pela vontade e, muito em especial, através da cultura.

É que ao contrário de um cidadão alemão, luxemburguês ou italiano, ou de um jovem português de hoje, a minha geração foi obrigada a olhar a Europa de fora para dentro. E é irónico notar que nem mesmo a democracia deixou de ser tocada por este dualismo: o slogan de promoção do apoio que Portugal recebia para entrar nas Comunidades Europeias era “a Europa está connosco”. Continuávamos, assim, a ver-nos fora da Europa, mas agora já com vontade afirmada de lhe pertencer.

Gostava, neste ponto, de vos deixar uma nota ainda mais pessoal. Nesse nosso pequeno mundo de então, e caminhando eu pelo lado esquerdo da vida, foi a cultura que me fez chegar à Europa, ou melhor, foi cultura que me fez ter o raro privilégio de a poder não perder de vista: foram as livrarias da Rive Gauche, os romances torturados da Alemanha do pós-guerra, as músicas dos Beatles e dos Stones nas ondas piratas da “Radio Caroline”, as vozes românticas, de Brel e Bécaud até à Eurovisão ou a San Remo, a imagem desencantada das paisagens áridas do realismo italiano e a produção mágica da geração dos “Cahiers du Cinema”. Além disso, o Maio de 68 trouxe-nos um inesperado remake de uma certa Europa mítica das revoluções na rua e vivíamos, simultaneamente, com a miragem das bolsas de estudo, em Lovaina ou na Suécia, para evitar as guerras coloniais, sentindo como nossos os debates acesos no “Nouvel Observateur” e no “Temps Modernes”. Mas arrastava-se já, saído das ruas de Praga, um pressentimento, ainda difuso, das tragédias que estavam por detrás do chamado socialismo real, de Djilas a Arthur London, de Soljenitzin a Sakharov.

Outros concidadãos meus, da mesma geração, seguiram caminhos diversos, uns mais radicais, outros mais serenos – e, nestes últimos, alguns tocados já pelas angustias do cristianismo crítico. Mas, lá no fundo, estávamos quase todos juntos na vontade de colocar o nosso país de acordo com a sua geografia. E todos acabámos por nos encontrar, numa bela manhã de Abril de 1974, com alguns de nós a ajudar a derrubar com alegria o nosso próprio muro, bem antes do de Berlim.

Por tudo isso, quando a vida profissional me atirou pelo mundo, eu talvez estivesse já mais equipado de que outros para perceber um pouco melhor o que é que a Europa política representava para quem estava fora dela, para quem ansiava juntar-se-lhe e para quem, no mundo, a via como parceiro.

E, nesse percurso, colocaram-se-me sempre duas questões que relevam muito da dimensão cultural que hoje aqui nos reúne.

A primeira é quase existencial: será que nós, os habitantes deste continente, que hoje tem a União Europeia como incontornável centro, temos, de facto, algo culturalmente em comum, identitário, que nos una e que sintamos que nos marca como europeus?

A segunda pergunta é apenas um corolário da primeira, mas prende-se mais directamente com a temática central que aqui me interessa abordar: como nos vêm do exterior? Projectamos uma imagem cultural própria e unívoca? Que expectativas e anseios criamos nos outros?

Como resposta à primeira pergunta – se nos sentimos culturalmente europeus – costuma dar-se o estafado exemplo de que sempre nos sentimos mais europeus quando estamos na América, sem revelarmos que a América dos últimos anos tem dado uma forte e involuntária ajuda a esse mesmo sentimento. Porém, tenho de confessar, eu sinto-me muito mais em casa num café de Buenos Aires ou numa livraria do West Side de Nova Iorque do que ainda me sinto em algumas paragens da Europa geográfica, cujo nome, como dizia Cervantes para um certo lugar da Mancha, no parágrafo de abertura do Dom Quixote, eu prefiro não lembrar.

Eu posso estar errado e, assumindo uma modéstia que é também uma forma da irresponsabilidade de um não especialista, quero dizer-lhes que interpreto o sentido de uma cultura comum como algo que se projecta na forma como partilhamos tradições, crenças, mitos, projecções e modos de vida, valores próprios, alguns até algo contraditórios entre si, mas com uma matriz que identificamos como muito próxima. É algo que decorre de uma sólida e contínua pertença a uma longa história colectiva, mais própria das nações, muitas vezes dos países ou das regiões, do que dos grandes espaços multinacionais.

O que na Europa se detecta, mas não fica delimitado nas suas fronteiras, e que faz com que nos liguemos a Nova Iorque ou a Buenos Aires, são as chamadas “esferas culturais”, são identidades culturais difundidas por camadas ou sectores, que têm menos a ver com a geografia e muito mais com níveis de percepção conjunta de certos sinais, onde quer que se encontre quem os partilha. Embora anterior à globalização, essa é uma realidade que ela potenciou e que, de certo modo, a internet tornou ainda mais evidente.

E daqui decorre a resposta à segunda pergunta, à questão do tipo de olhar que os outros têm sobre nós. Correndo uma vez mais o grande risco de estar a simplificar aquilo que é muito complexo, eu diria que me parece que o mundo está hoje muito longe de percepcionar sinais de uma cultura europeia comum, mas começa seguramente a construir a imagem da progressiva existência de um modelo civilizacional europeu – onde as várias e diversas dimensões culturais do nosso continente se projectam, influenciando-o e sobredeterminando-o.

Acho mesmo que o resto do mundo começa hoje a ter uma certa ideia da Europa que é superior, em nitidez de desenho, àquela que a Europa já tem de si própria. Para utilizar uma categoria de um filósofo alemão que não está na moda citar, eu arriscaria dizer que poderá haver já hoje uma Europa civilizacional “em si”, mas ainda talvez não haja uma civilização europeia “para si”.

Por isso, esse tal olhar exterior, embora detecte uma projecção civilizacional comum, distingue nela, de forma mais ou menos clara, as várias Europas culturais. Nota, em particular, as expressões dos países que mais se afirmam no mercado internacional da cultura, dos poderes de atracção dos seus produtos e conteúdos, bem como a força dos seus meios de suporte comunicacional.

Mas é minha convicção que esse estrangeiro não liga a sua ideia de Europa – seja a Europa em geral, seja a União Europeia em particular – a uma projecção cultural determinada, definida e bem recortada nos seus contornos. E faz bem: a meu ver, se fosse por esse caminho, estaria a sustentar uma falsa caricatura da cultura europeia.

Aliás, esse observador exterior tem cada vez mais razão para sustentar esse olhar multifacetado, por exemplo, quando lhe falam da União Europeia: à medida que a União Europeia se alargou, se legitimou como projecto, se reconciliou historicamente consigo mesma, a Europa tornou-se muito mais diversa culturalmente, muito mais pluralista e rica na variedade das respectivas expressões. A pressão da subsidiariedade, que hoje está politicamente protegida, tende mesmo a forçar a atenção para as comunidades locais, para as regiões, para as tradições minoritárias, para aquilo que se distingue e orgulhosamente resiste à força de um template comum. Basta um exemplo evidente: a Europa é hoje uma Babel saudavelmente incontrolável, por mais que alguns queiram espartilhá-la num quadro linguístico reduzido, feito das ambições de quem tem a ridícula tentação de impor, sob o alibi da eficácia, que a palavra demografia venha a ser sinónimo de democracia.

Mas, como antes já vos disse, há uma coisa que o estrangeiro começa a reconhecer, em especial depois que a Europa política passou a querer ser vista como um benigno soft power: esse estrangeiro vê a emergência no espaço europeu, centrada na União Europeia, de uma vontade comum em tentar afirmar, porventura sem ser capaz ainda de a construir por completo, uma matriz civilizacional específica, que vai já para além do padrão clássico da civilização europeia que as bibliotecas guardam, porque o prolonga em novas e actualizadas dimensões.

E onde é que está essa nova matriz ? Está, por exemplo, no modelo social europeu e na obstinação de alguns em tentar que ele se reconverta para conseguir sobreviver como um modelo de justiça social. Está na saudável teimosia de muitos para quem o secularismo continua a ser a imagem de marca da nossa modernidade. Está nos esforços para afirmar o multilateralismo como único eixo legítimo de uma ordem internacional baseada na busca incessante da paz e da justiça, sob a tutela do Direito Internacional, tendo o recurso ao diálogo, à diplomacia e à solidariedade como instrumentos de trabalho. E o mundo vê também os europeus preocupados com as causas colectivas de progresso, como a defesa ambiental, a protecção da biodiversidade e a luta contra as alterações climáticas, pelo fim da pena de morte e pelo combate contra a exploração infantil e das mulheres, contra o tráfico de seres humanos, entre tantas e tantas outras causas que a consciência universal contemporânea elege como prioridades de uma nova ordem ética internacional. Vê também o esforço de muitos, na Europa, em procurar garantir que a necessária luta contra as ameaças radicais, como o terrorismo e outras formas de extremismo, se faça sempre sob a égide da preservação dos Direitos Humanos e dos direitos fundamentais, no respeito pelas minorias e pelas crenças, na preocupação de entender as causas desse radicalismo e algumas determinantes regionais que o potenciam.

A agenda europeia de preocupações, como a que se expressa num fórum como são as Nações Unidas, comporta hoje um impressionante inventário de ideias que procuram responder aos anseios mais nobres da Humanidade, cada vez mais empenhada em alargar as “boas práticas” ao colectivo.

Alguns dirão que ainda estamos no terreno declaratório do “politicamente correcto”, da mera rightousness ideológica e desculpabilizante, e que, no final de contas, tudo isso tem um sentido muito mais formal do que prático. Concedo que possa ser assim em alguns casos, mas, pelo menos, a nova civilização europeia terá já escapado muito à hipocrisia dos cultores e admiradores da lógica de poder, que é hoje um desvio perverso da leitura correcta de um filósofo como Hobbes. A maioria da Europa – infelizmente não toda, como sabemos – tem tido a decência de não se deixar alinhar pelo pragmatismo neoconservador, presente numa deriva oportunista própria de quem vive ao sabor dos ventos prevalecentes, e que tem como objectivo ajudar a conferir uma patine de respeitabilidade ideológica a uma mera e cínica realpolitik unilateralista.

Porque este somatório de preocupações humanistas da Europa contemporânea é fruto de um árduo e negociado processo de entendimento e não de qualquer iluminação nacionalista, eu diria que a principal imagem que a nova civilização europeia hoje projecta, para além de um sentido de tolerância e de diálogo, é a de um apurado culto da liberdade. Talvez porque a perdeu durante muito tempo, de diversas formas e sob diversos terrores, a Europa apresenta-se hoje perante o mundo como o grande cultor e promotor dessa mesma liberdade.

Eu tenho de confessar que, como português e como europeu, entendo dever sentir orgulho em pertencer a um continente que, por cima de todas as suas imensas contradições, tem hoje o culto da liberdade no centro da sua matriz identitária, preocupa-se com a sua preservação à outrance, discute os seus necessários limites sempre sob um feroz juízo de ética, com opiniões públicas que controlam a deriva acrítica para as soluções assumidas pelos poderes políticos. Recordaria apenas o caso dos cartoons de Maomé para sublinhar como as sociedades europeias mostraram estar alerta, recusando, simultaneamente, o facilitismo da realpolitik e o temor reverencial face às tentativas de policiamento ideológico.

Alguns de vós, mais cépticos e talvez bastante realistas, devem estar a perguntar-se se não estarei a ser muito ingénuo: onde está esse culto às liberdades nas ruas de uma cidade como Minsk? E nos embaraçantes silêncios face à Chechénia? Porque deixaram os europeus morrer esse culto às portas de Srebrenika? Onde é que ele fica, perante os atentados através dos quais alguns poderes políticos, no espaço geográfico europeu, continuam a condicionar os “media” e as expressões das sociedade civil, restringem a liberdade das Organizações Não-Governamentais, fecham os olhos à propagação dos ódios étnicos seculares, aceitam, com uma triste complacência, os ataques a minorias que não dispõem de “back-up” nacionalista, como é o caso dos ciganos? Afinal, quais são as fronteiras dessa Europa ética e a que geografia europeia correspondem? E que podemos dizer a quem vê por aí crescer partidos políticos xenófobos,os quais, discretamente, afloram ao poder em democracias que nos habituámos a ter como sólidas e respeitáveis, sob o alibi da pluralidade democrática e a ausência de memória histórica?

É que essa é também a Europa para a qual o mundo exterior olha e cuja existência não pode deixar de abalar a sua crença na solidez e na coerência da primeira, daquela Europa dos princípios de que antes vos falei.

Mas, eles como nós, todos temos que perceber que a Europa é isso mesmo. Ela projectará sempre, de si própria, uma imagem confusa, frequentemente contraditória, uma ideia de permanente e endémica crise. Como disse um autor português do sec. XIX, que a Senhora Ministra da Cultura conhece como ninguém, Eça de Queirós, “a crise é a condição quase regular da Europa”. Talvez que essa dialéctica interna, saldo de sofrimentos e de êxitos, esse ar de “casa em obras” contínuas, seja porventura o segredo da vitalidade europeia que o mundo não deixa de apreciar em nós e, em especial, de contrastar muito positivamente com outras expressões de poder que hoje se afirmam à escala mundial. A Europa contemporânea tem os seus “buracos negros” civilizacionais, mas o debate sobre essas expressões negativas faz-se hoje de forma aberta e sempre tutelada por um referencial ético que já marca as suas instituições.

E, neste campo, vale a pena fazer um parêntisis para notar quanto seria desejável que a Europa pudesse ter uma Carta dos Direitos Fundamentais vinculativa, sem ninguém poder dar-se ao luxo de saltar para fora dela, por um critério negativo de subsidiariedade, furtando-se a ter o Tribunal Europeu como último juíz. Embora respeitando as ideosincrasias nacionais, que são, em si mesmas, uma prova da diversidade europeia, não posso deixar de considerar como muito triste que a Carta dos Direitos Fundamentais acabe por vir a ter, para uns, o mesmo carácter facultativo que o Tribunal Penal Internacional tem hoje para outros. Mas isso já seria motivo para outra palestra...

Voltando ao que vos estava a dizer, gostaria também de sublinhar que, para o seu exterior, a Europa não é apenas um objecto contemplativo: a Europa é um actor e um produtor de uma multiplicidade de sinais de cultura, que acabam por interagir com a própria realidade de quem está de fora dela. E a Europa sabe bem que, desde sempre, influencia, condiciona e até limita as expressões culturais dos outros.

Daí a questão de sabermos – nós, europeus – o que fazer com a força dessa nossa projecção e até onde, e em que medida, temos, ou não, legitimidade para actuar de forma pró-activa perante terceiros. Em especial, evitando que isso signifique ou seja lido, muito simplesmente, como um mero voluntarismo preselitista, uma espécie de recolonização pelos valores, à luz de um juízo, também assumido ou não, sobre a superioridade desses mesmos valores. É que o orgulho nos princípios pode ser, se levado ao extremo, uma deletéria forma de insuportável arrogância.

Esta questão pode parecer deslocada e sem sentido, num mundo de intensas interacções culturais como aquele em que hoje vivemos. Mas não o é, especialmente tratando-se das culturas dos países da Europa.

Não sendo cómodo estar a recordar isto, e prestando-se esta temática a óbvias polémicas, não posso deixar de notar que muitos países e regiões do mundo vivem ainda, no seu paradigma histórico-cultural, com uma memória algo traumática relativamente àquilo que foi a presença agressiva das culturas europeias, quer na sua imposição forçada, que muitas vezes passou pela anulação ou desprezo pelas expressões culturais locais, quer nas acções de pilhagem da sua memória patrimonial, que as vitrines dos museus europeus evidenciam à saciedade. Eu sei que este é um debate incómodo e que tem fóruns próprios para ser feito – mas afloro-o hoje aqui porque, por razões várias, ele acaba por renascer sempre que os contrastes entre civilizações emergem no horizonte da polémica, como actualmente está a ocorrer.

É nunca perdendo de vista este incontornável pano de fundo histórico que nós, europeus, sem complexos mas com respeito, devemos situar a nossa reflexão colectiva interna sobre o que fazer e como actuar culturalmente perante terceiros, seja no plano bilateral, seja através das nossas instâncias europeias comuns.

E termino com algumas com curtas reflexões derivadas da minha visão do papel da Europa no mundo, à luz de “duas ou três coisas que eu sei dela”, como diria Jean-Luc Godard. Não são novidades, não quero parecer estar, como se diz no meu país, a tentar “descobrir a pólvora”, mas pretendo-as reafirmar como constatações que se afiguram de mero bom-senso político.

A primeira prende-se com a necessidade de garantir que a dimensão cultural venha a estar presente em todos os quadros europeus de relações externas e de cooperação para o desenvolvimento, sejam eles multilaterais, sejam de natureza bilateral. É essencial que, a exemplo do que hoje se passa com as questões ambientais, que acabam por marcar quaisquer intervenções de natureza económica, a dimensão cultural atravesse todas as políticas europeias com repercussão externa. A cultura tem de ser a alma por detrás das políticas da Europa. Uma intervenção friamente tecnocrática, por mais bem intencionada que se apresente, tem uma capacidade de sobrevivência e uma eficácia no tempo e na memória colectiva muito limitada. Tal como acontece com as relações humanas, as relações externas são mecanismos criados com o objectivo de ajudar a tecer redes de solidariedades e de cumplicidades, uma forma de se identificarem pontos comuns, de se gizarem formas conjuntas de colaboração, com vista a potenciar a vontade de trabalhar futuramente também em conjunto. Ter a cultura no posto de comando das relações externas é apenas uma ideia da mais óbvia racionalidade. Se necessitássemos de um exemplo, pela negativa, bastaria olharmos para as lições a tirar do que se passa no Iraque.

A segunda linha liga-se à necessidade de intensificação do intercâmbio cultural, ao potenciar do conhecimento mútuo, ao esforço – que deve ser quase obsessivo – pela promoção no nosso próprio seio, da diversidade alheia, pelo trabalho incessante de compreensão do outro. Quanto mais nos abrirmos a expressões culturais que, à partida, nos sejam estranhas, mais enriquecidas passam a ficar as nossas próprias culturas, mais abertos ficam os espíritos dos nossos concidadãos, menos eurocêntrico fica o nosso olhar sobre o mundo. E talvez isso contribua para que fiquemos também mais tolerantes dentro da própria Europa, aceitando-nos melhor uns aos outros, às nossas múltiplas religiões, aos nossos mitos e às nossas idiossincrasias.

E, finalmente, adianto uma última linha, que pode parecer algo radical – e é: no meu entender, a Europa só pode prestigiar-se perante terceiros quando se revelar, aberta e radicalmente, intolerante contra a intolerância. Eu sei que este conceito tem sido alvos de aproximações não tão lineares, e Norberto Bobbio tratou-o já com alguma atenção. Mas a experiência recente parece recomendar que a Europa – e a Europa política tem aqui um papel fundamental – deva demonstrar uma disposição inquebrantável perante todas as manifestações que, no seu seio e fora dele, relevem do desprezo ou da menorização por quaisquer expressões culturais, por mais minoritárias que elas sejam. Em especial, devemos estar vigilantes quanto à acção os polícias do espírito que avaliam os desvios do modelo-padrão que, no passado e para muitos, caracterizava uma certa imagem da civilização dita ocidental, que nos habituámos a ter no centro do nosso mundo e a impor no mundo dos outros. Temos de derrotar os nossos próprios fantasmas e algumas vestais que ainda os representam, como aqueles que afirmam a superioridade da Europa cristã e se obstinam na criação de uma fortaleza política em seu torno. Este é um combate em que está em causa a nossa própria credibilidade e a nossa legitimidade como fonte de afirmação cultural e civilizacional. O combate para que a palavra Europa passe, definitivamente, aos olhos do mundo, a ser vista como sinónimo da palavra liberdade.

Muito obrigado pela vossa atenção e pela vossa paciência.

Intervenção do Embaixador Francisco Seixas da Costa na Sessão de abertura do Fórum Cultural para a Europa proferida, em Lisboa - Centro Cultural de Belém - 26 de Setembro de 2007

Friday, September 07, 2007

APETECIA-ME ESCREVER ...

"Quando se meditou muito sobre o homem, por ofício ou vocação, acontece-nos sentirmos nostalgia dos primatas. Esses ao menos não têm segundas intenções."

Albert Camus

Apetecia-me escrever acerca das relações entre a idiossincrasia dos povos e o mercado; entre a opressão e a criatividade; entre os regimes políticos e a economia; entre a liberdade e a justiça social. Apetecia-me descrever uma visita de férias a Cuba, incensar o seu belo povo, mais as suas conquistas sociais menos a falta de liberdade.

Apetecia-me escrever acerca de falências e taxas de juro, “modelos de governação” e “mercados de risco”, compras e vendas, salários e desemprego. Apetecia-me transcrever o poema “Uma sepultura em Londres”, de Jorge de Sena e a nota em que ele diz que, em 1969, “não podia anotar-se, para notícia dos distraídos, que esta sepultura era obviamente a de Karl Marx”. Estranho não é? Estávamos no tempo da ditadura.

Apetecia-me escrever, à saída de férias, acerca do clima. Das inundações nos países ricos e nos países pobres. De terramotos. De incêndios. De calamidades naturais, suas origens e trágicas consequências, que não escolhem nem os hemisférios nem os indicadores de desenvolvimento sócio económico dos países. Será o “desenvolvimento sustentável” levado a sério na agenda do futuro G8/13?

Apetecia-me escrever acerca da guerra do Iraque e da “tocata e fuga", ou “fuga sem tocata”, do quarteto dos Açores. Das mentiras planetárias inventadas para a justificar. Dos políticos vulgares que esquecem as promessas, mentem e se contorcem ao sabor das quotas de popularidade, fazendo do verbo omitir a sua religião de todos os dias. Sou dos que ainda acreditam que na política, a”boa moeda” haverá de expulsar a “má moeda”. Imaginem!

Apetecia-me escrever que uma das medidas que, em breve, deverá obter consagração legal, no âmbito da reestruturação do Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social (MTSS) é a que transformará o INATEL em “fundação de direito privado e utilidade pública”, consagrada no PRACE (“Programa para a Reestruturação da Administração Central do Estado”) da seguinte forma:

“Deixa de integrar o MTSS saindo da Administração Central do Estado: O Instituto Nacional para Aproveitamento dos Tempos Livres dos Trabalhadores, I. P. – INATEL, sob a forma de fundação de direito privado e utilidade pública.”

Apetecia-me escrever que esta reforma está atrasada uns sete anos, uma minudência, e, desculpem a imodéstia, tem direitos de autor pois foi elaborada, do princípio ao fim, com detalhe técnico e consenso com os parceiros sociais, no tempo em que eu próprio era presidente daquela instituição da qual saí vai para cinco anos.

Apetecia-me escrever, com detalhe, acerca do caso em apreço, que é somente um entre muitos que mostram como as reformas da administração pública, em Portugal, sempre se atrasam, prisioneiras de preconceitos ancestrais e cinismos beatos, e ai daqueles que as quiserem prontas, em tempo útil, que o Estado estrebucha, os privados salivam e o povo geme.

[Artigo publicado na edição de hoje do "Semanário Económico".]

*

Nota acerca do artigo “Apetecia-me escrever …”

O artigo que hoje dei à estampa no “Semanário Económico” merece, ao contrário do que tem sido hábito, uma nota complementar no que respeita às referências à reforma do INATEL.

1 – Não é a primeira vez que faço alusão pública a este tema o que decorre, naturalmente, da minha ligação de sete anos à gestão daquela organização.

2- Neste blog podem ser consultados diversos posts dedicados ao assunto, em particular, uma
“Entrevista ao "SE" (publicada em 31/01/2003)” e os artigos intitulados: “Há silêncios que não podem ser eternos”; “O SEU A SEU DONO” e “A VERDADE DE UMA REFORMA”;

3 – No que concerne às questões de gestão da organização que dirigi durante sete anos, não seria justo, nem proporcional, exigir o meu silêncio. Por isso escrevi o que escrevi, ao longo do tempo, e volto a escrever agora acerca da iminente reforma estatutária do INATEL. Mais tarde voltarei ao assunto mas por outras razões.

4 - Convém ressalvar que, apesar de não conhecer a formulação final desta reforma, caso se mantenha a filosofia que emana do item que integra o PRACE e que cito no artigo, ora publicado, estarei, certamente, de acordo com as suas grandes linhas que não podem deixar de ser aquelas que eu, e a equipa que me acompanhou, a seu tempo, formulamos.

5 – Por último uma palavra para esclarecer que nada me move, nem politica, nem pessoalmente, contra o actual ministro da tutela – José António Vieira da Silva – o que, para quem conheça a história política da esquerda, no passado recente, em Portugal, é uma evidência que dispensa demonstração. Nem as críticas podem ser guardadas, em exclusivo, para os nossos adversários políticos, nem as concordâncias, guardadas, em exclusivo, para os nossos amigos.

6 - No caso em apreço, quando me pronuncio acerca do INATEL e, em particular, acerca da reforma dos seus estatutos, não tenho em mente senão bater-me pela justiça, o que inclui não deixar cair no esquecimento o papel daqueles que, no passado, se bateram pela sua concretização entre os quais eu próprio me incluo. Tenho a certeza que, nesse particular, nada me separa daqueles que, no governo socialista, ou fora dele, avaliam o valor da reforma de uma instituição pública não só de um ponto de vista funcional como também, e primordialmente, do ponto de vista institucional e de solidariedade social.

Friday, August 03, 2007

REFERENDO E TRATADO EUROPEU

A oposição reclama a realização de um referendo acerca do futuro Tratado da União Europeia enquanto Pacheco Pereira apelida de “pequena glória mundana” a eventual designação do mesmo de “Tratado de Lisboa”. No entanto, nenhuma força política, com excepção de algumas luminárias extremistas, põe em causa a vocação europeia de Portugal e os fundamentos da participação de Portugal na UE. A excentricidade iberista de Saramago nada acrescenta ao caso.

Do lado do Governo, e do PR, conclama-se ao bom senso, não só atenta a experiência referendária anterior, como ao calendário que, a partir da reunião do Conselho Europeu de Bruxelas, de 21 e 22 de Junho, ficou depositado em cima da mesa da presidência portuguesa que decorre neste segundo semestre de 2007.

O Conselho Europeu determinou que a CIG (Conferência Inter Governamental), à qual compete elaborar o projecto de Tratado, conclua os trabalhos até final de 2007, com vista a que o mesmo seja ratificado, em qualquer circunstância, antes das eleições para o Parlamento Europeu de Junho de 2009. Sem entrar na natureza do Tratado, versus defunta Constituição Europeia, a “pequena glória mundana” que calhou em sorte a Portugal, foi assumir a responsabilidade de presidir a um processo complexo e da mais alta responsabilidade para o futuro político da União Europeia apesar dos críticos do Governo se deliciarem em apresentar a tarefa como um mundo de facilidades.

A oposição em Portugal, por razões e com objectivos diversos, conforme os quadrantes partidários, encontrou no referendo uma bandeira para se afirmar enquanto oposição mas, convenhamos, que ninguém pode exigir ao Governo – que preside ao Conselho Europeu – o compromisso de referendar um Tratado antes de saber se conseguirá levar a bom porto a tarefa de liderar a elaboração do projecto respectivo, fixar o seu conteúdo e, finalmente, fazê-lo aprovar.

Por outro lado é indiscutível que os parlamentos nacionais têm toda a legitimidade democrática para aprovar o Tratado. Mas nesta questão, tal como na da localização do novo aeroporto de Lisboa, o programa do Governo socialista é claro: no que respeita ao aeroporto o programa diz expressamente que é na Ota; no caso do Tratado diz o seguinte: “ O Governo entende que é necessário reforçar a legitimação democrática do processo de construção europeia, pelo que defende que a aprovação e ratificação do Tratado deva ser precedida de referendo popular, amplamente informado e participado, (…)”

Na esteira desta orientação programática entendo que não há qualquer razão para temer que um debate alargado acerca da questão europeia resulte num enfraquecimento dos compromissos de Portugal no âmbito da UE, antes pelo contrário, estou convicto que da sua realização resultará a vitória do “Sim à Europa” e o reforço, no seio da opinião pública, da opção europeísta de Portugal.

Defendo, pois, que, salvo qualquer situação absolutamente excepcional que ponha em causa o interesse nacional, o Governo, oportunamente, proponha ao Senhor Presidente da República a realização de um referendo na medida em que, após a última revisão constitucional, já é permitido realizar referendos directos sobre tratados, somente relativos à UE, sem necessidade de formular questões concretas.

Nesta matéria, decisiva para o futuro de Portugal e da União Europeia, nenhum político que se preze pode ter medo dos grandes desafios e tenho a certeza que se existe alguém com medo do referendo europeu não é Sócrates. Será necessário procurar a origem de eventuais resistências noutro lado, porventura, no campo daqueles que, hoje, pondo-se em bicos de pés, têm proclamado a sua urgência!

(Artigo publicado na edição de hoje do "Semanário Económico".)

Friday, July 06, 2007

PORTUGAL NA PRESIDÊNCIA

Portugal chegou tarde à Europa das nações bastando, para ilustrar esse afastamento, lembrar que entre as esperanças de democratização que afloraram no imediato pós guerra, na Primavera/Verão de 1945, e a revolução de 25 de Abril de 1974, mediaram 29 anos e que, após o 25 de Abril, decorreram mais onze anos até à concretização da adesão de Portugal à CEE.

Entre o fim da Segunda Guerra Mundial, período decisivo para a reconstrução democrática e económica da Europa, e a adesão de Portugal à CEE, mediaram, nada mais, nada menos, de 40 anos que podem ser levados, salvo algumas tímidas experiências de abertura, ao deve e haver do nosso atraso estrutural.

Chegados onde chegamos não há outra porta de saída para o nosso destino colectivo senão a Europa. Voltámos às origens. Quando Afonso Henriques, em 1128, após a batalha de S. Mamede, assumiu as responsabilidades políticas pelo exercício do poder confrontou-se com o problema de fundar um país a partir de um território cuja fronteira sul andava a meio caminho entre Coimbra e Santarém.

Havia que consolidar o território adquirido e crescer para o que foi necessário fazer uma opção estratégica. Depois de muitas hesitações, que levaram à disputa da fronteira norte, com a Galiza, e à fronteira este, com Leão e Castela, após o chamado “desastre de Badajoz”, em 1169, no qual Afonso Henriques foi derrotado e feito prisioneiro, ficou, na prática, decidida a configuração futura do território de Portugal continental.

Além da geografia também a história coloca Portugal na Europa. O pai de Afonso Henriques, o conde D. Henrique, era francês, neto de Roberto II, Rei de França. A mãe, D. Teresa, era filha bastarda de Afonso VI, Rei de Leão e Castela. O fundador de Portugal era, pois, descendente de estrangeiros, ou seja, filho de imigrantes europeus ilustres. *

Portugal tornar-se-ia uma nação independente, situada no sudoeste da Europa, na parte Ocidental da Península Ibérica, o país mais ocidental da Europa, delimitado a Norte e a Leste pelo reino de Espanha e a Sul e Oeste pelo Oceano Atlântico a que vieram acrescer as Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira, situadas no hemisfério norte do Oceano Atlântico. Um pequeno país com 92.391 Km2 de área e 10.945.870 habitantes, segundo estimativa de 2006.

Nos dias de hoje, por mais imaginação que possamos colocar na tarefa de fazer crescer Portugal, não há volta a dar: Portugal somente pode crescer, em riqueza e bem-estar, quer pela geografia, quer pela história, no seio da Europa, na qual conquistou um lugar privilegiado, partilhando os destinos da União Europeia com as maiores nações do velho continente.

Nunca é demais combater as ideias daqueles que, por ignorância ou atavismo, reduzem a história de uma nação antiga às memórias do passado desligando-as dos desafios do presente e do futuro. Só trilhando o caminho da partilha de responsabilidades, no seio da UE, poderemos um dia aspirar a um nível de prosperidade compatível com a nossa história e o estatuto político actual de nação livre, democrática e independente.

A verdade é que, por estes dias, Portugal ao assumir a Presidência da UE toma sobre os seus ombros a pesada responsabilidade de redigir e preparar a ratificação do novo “Tratado da União” que, apesar de todas as dificuldades, deverá contribuir para consolidar a União Europeia como espaço de paz e concórdia entre as nações e de progresso económico-social para os seus povos.

Nos meses que se avizinham seria da maior conveniência que todos os portugueses, e os partidos que os representam, fossem capazes de contribuir para dignificar essa missão.

(Continua)

* Ler “D. Afonso Henriques”, de José Mattoso, Edição do “Círculo de Leitores”

(Artigo publicado na edição de hoje do "Semanário Económico")

Friday, June 01, 2007

CONDUZIR A NAU DE LISBOA A BOM PORTO

Eu sei que os desafios que se colocam à Câmara Municipal de Lisboa, entidade que gere o pulmão de uma grande área metropolitana, são múltiplos e complexos O que digo é que Lisboa precisa de perder gordura e ganhar músculo. Sanear as finanças e criar riqueza. Libertar recursos, desperdiçados na burocracia, para refundar a dimensão solidária do desenvolvimento económico-social.

Também sei que existem em Lisboa várias cidades que se entrecruzam e se misturam. E gente que a habita e nela trabalha. E gente que nela trabalha e a não habita. A Lisboa residencial e a Lisboa empresarial. Cada vez mais magra de indústria e gorda de serviços. Deserta no centro e povoada na periferia. Sangrada e envelhecida de residentes mas atraente e luminosa para os visitantes. A Lisboa cultural e turística pode encantar eternamente sem se rejuvenescer? Duvido!

E a Lisboa logística e administrativa pode ser descartada de uma estratégia consistente de desenvolvimento? Não pode! Mas a Lisboa do futuro, se há futuro para Lisboa, é a que resultará do casamento entre o conhecimento e a produção. Não falo de um enamoramento romântico mas de um casamento de conveniência.

Quero dizer que Lisboa pode e deve ser uma cidade do conhecimento. Lisboa tem que investir nas escolas e nas universidades. Nos laboratórios e nos centros de investigação. Lisboa tem que investir na excelência e ser capaz de articular conhecimento, actividade empresarial e criação de emprego.

Mas todas as opções estratégicas serão limitadas se não forem dados sinais concretos de reforma da CML, reorganizando as freguesias, racionalizando os serviços e saneando profundamente as empresas municipais. Sem esquecer a prevenção de catástrofes e a segurança dos cidadãos. É o que todos dizem mas poucos serão capazes de fazer.

Claro que poderia aproveitar para reivindicar obras na minha rua. E que fosse retomada a velha ideia de construir o aeroporto no Campo Grande localização que, desgraçadamente, foi preterida em favor da Portela, lugarejo distante, que nunca foi sequer servido pelo Metro.

Eu também sei que todos os autarcas são sérios até prova em contrário. Mas seria do mais elementar bom senso que os candidatos e, já agora, também os mandatários, além de cumprirem com a lei, no que respeita à declaração de interesses, assumissem o compromisso público de não participar, directa ou indirectamente, em quaisquer estudos e projectos remunerados, ou em empreendimentos lucrativos, em Lisboa, desde o momento da formalização das candidaturas. A iniciativa anunciada pelo Arquitecto Manuel Salgado pode ser um bom augúrio.

E porque vamos a votos declaro o meu apoio a António Costa porque acho que ele tem capacidade pessoal e política, ou seja, experiência, vontade, energia e, sejamos pragmáticos, influência política, para conduzir a nau de Lisboa a bom porto num mar antes navegado por uma esquadra de corsários que o pejaram de destroços.

[Artigo publicado na edição de hoje do “Semanário Económico”.]

Friday, May 04, 2007

Popularidade e coerência

“O que não me faz morrer torna-me mais forte”

(Nietzsche, citado por Camus)

Os portugueses desejam estabilidade política. Nos últimos 33 anos – escrevo no dia 25 de Abril de 2007 – passaram demasiados governos e ministros pelas “pastas”, ouviram-se, vezes demais, baques surdos de quedas e portas a bater, deixaram-se muitos projectos na gaveta, desperdiçaram-se abundantes recursos e perderam-se preciosas oportunidades para mudar o destino do país. Já basta!

Eu sei que a luta política é feita de duros confrontos e de canalhices sem nome, que a economia real não se compadece com cedências às facilidades e, tantas vezes, “esquece” o lado não mercantil da vida das comunidades como se o fim último do trabalho e da criação de riqueza não fosse a luta pelo bem comum e pela felicidade do homem.

Mas como não me tenho cansado de referir, contra a cegueira de alguma esquerda suicidária, o actual governo socialista, e o seu líder, são o máximo, e não o mínimo, denominador comum possível capaz de encetar a reforma de um estado arruinado, erigido como fortaleza dos privilégios de miríades de corporações, salvando do colapso o “estado social”.

Os saudosos que querem liquidar a estabilidade política, arrombando a actual maioria, legitimamente alcançada nas urnas, sonham com o impossível: manter privilégios iníquos e albergar, sob a magnanimidade do estado, actividades obsoletas ou ilegítimas, esquecendo que Portugal, caso não cumpra os seus compromissos com a UE, sofrerá duras consequências.

Simpatizemos, ou não, com o pragmatismo de Sócrates é necessário assumir, de vez, que não há outro destino para Portugal senão a UE. O busílis da política nacional está em que uma parte da sociedade portuguesa ainda não aceitou esta realidade o que ajuda a compreender a razão do nevoeiro que encobre as “fugas” de Guterres e Barroso! Eles sabiam, no contexto político e estratégico europeu, o que tinha que ser feito mas não foram capazes de concretizar as reformas mais difíceis, em particular, a reforma do estado.

De facto, muitas das medidas de política interna, resultantes do compromisso europeísta, exigem mudanças drásticas, em particular, no papel, funções e peso do estado na economia, e as dificuldades de hoje resultam mais do atraso da plena assumpção desta realidade pelos governos anteriores, desde Cavaco Silva, do que da persistência do actual Governo socialista em concretizar as reformas a que se comprometeu.

Todo este arrazoado foi suscitado pela execranda tentativa de assassinato de carácter do primeiro-ministro tomando como pretexto o seu percurso académico e a autenticidade dos diplomas dos cursos que trilhou. Nas vésperas de Portugal assumir a Presidência da UE o pior que poderia acontecer ao País seria o Governo deixar a meio as reformas encetadas, o primeiro-ministro deixar-se chantagear e, finalmente, fugir.

Repetir, nos dias de hoje, Guterres, em 2001, ou Barroso, em 2004, teria um custo insuportável para o País e mais vale o PS, e o seu governo, perderem popularidade do que coerência. Em política a popularidade recupera-se, a coerência perde-se para sempre.

(Artigo publicado na edição de 4 de Maio de 2007 do “Semanário Económico”)

Wednesday, April 04, 2007

O PROBLEMA CLÁSSICO DOS GOVERNOS PORTUGUESES

Um dia destes, precisamente em 17 de Março passado, deparei-me com uma crónica de Vasco Pulido Valente intitulada “Meio mandato” cujo conteúdo se consumia em demolir a governação de Sócrates.

Nada surpreendente na pena do cronista, nem sequer especialmente demolidor para o governo, tendo o dito tão-somente, assestado as baterias na banalização da meta do deficit afirmando, para fechar, que o governo “talvez com muito esforço, e bastante brutalidade, consiga baixar o deficit para três por cento? E daí?”

Noutro passo, reforçando essa ideia, avança com uma comparação surpreendente: “No princípio do mandato, Sócrates tinha o problema clássico dos governos portugueses, com excepção dos governos de Salazar: o deficit.”

Pura mentira pois se a diabolização da I República ajudou na tarefa central de “restaurar a ordem”, a caminho da “ditadura nacional”, Salazar, como ministro das finanças, entre 1928 e 1932, defrontou-se com “o problema clássico dos governos portugueses”: o deficit já com a certeza, porém, de que não teria que suportar as “maçadas” da democracia.

Não foi por acaso que Salazar dedicou o seu primeiro discurso, no acto de posse como Ministro das Finanças, em 27 de Abril de 1928, véspera do seu 39º aniversário, exclusivamente, ao problema do deficit. Transcrevo-o na íntegra:

"SR. PRESIDENTE DO MINISTÉRIO: (General Vicente de Freitas):

Duas palavras apenas, neste momento que V. Exa., os meus ilustres colegas e tantas pessoas amigas quiseram tornar excepcionalmente solene.

Agradeço a V. Exa. o convite que me fez para sobraçar a pasta das Finanças, firmado no voto unânime do Conselho de Ministros, e as palavras amáveis que me dirigiu. Não tem que agradecer-me ter aceitado o encargo, porque representa para mim tão grande sacrifício que por favor ou amabilidade o não faria a ninguém. Faço-o ao meu País como dever de consciência, friamente, serenamente cumprido.

Não tomaria, apesar de tudo, sobre mim esta pesada tarefa, se não tivesse a certeza de que ao menos poderia ser útil a minha acção, e de que estavam asseguradas as condições dum trabalho eficiente. V. Exa. dá aqui testemunho de que o Conselho de Ministros teve perfeita unanimidade de vistas a este respeito e assentou numa forma de íntima colaboração com o Ministério das Finanças, sacrificando mesmo nalguns casos outros problemas à resolução do problema financeiro, dominante no actual momento. Esse método de trabalho reduziu-se aos quatro pontos seguintes:

a)que cada Ministério se compromete a limitar e a organizar os seus serviços dentro da verba global que lhes seja atribuída pelo Ministério das Finanças;

b) que as medidas tomadas pelos vários Ministérios, com repercussão directa nas receitas ou despesas do Estado, serão previamente discutidas e ajustadas com o Ministério das Finanças;

c) que o Ministério das Finanças pode opor o seu «veto» a todos os aumentos de despesa corrente ou ordinária, e ás despesas de fomento para que se não realizem as operações de crédito indispensáveis;

d) que o Ministério das Finanças se compromete a colaborar com os diferentes Ministérios nas medidas relativas a reduções de despesas ou arrecadação de receitas, para que se possam organizar, tanto quanto possível, segundo critérios uniformes.

Estes princípios rígidos, que vão orientar o trabalho comum, mostram a vontade decidida de regularizar por uma vez a nossa vida financeira e com ela a vida económica nacional.

Debalde porém se esperaria que milagrosamente, por efeito de varinha mágica, mudassem as circunstâncias da vida portuguesa. Pouco mesmo se conseguiria se o País não estivesse disposto a todos os sacrifícios necessários e a acompanhar-me com confiança na minha inteligência e na minha honestidade – confiança absoluta mas serena, calma, sem entusiasmos exagerados nem desânimos depressivos. Eu o elucidarei sobre o caminho que penso trilhar, sobre os motivos e a significação de tudo que não seja claro de si próprio; ele terá sempre ao seu dispor todos os elementos necessários ao juízo da situação.

Sei muito bem o que quero e para onde vou, mas não se me exija que chegue ao fim em poucos meses. No mais, que o País estude, represente, reclame, discuta, mas que obedeça quando se chegar à altura de mandar.

A acção do Ministério das Finanças será nestes primeiros tempos quási exclusivamente administrativa, não devendo prestar larga, colaboração ao Diário do Governo. Não se julgue porém que estar calado é o mesmo que estar inactivo.

Agradeço a todas as pessoas que quiseram ter a gentileza de assistir à minha posse a sua amabilidade. Asseguro-lhes que não tiro desse acto vaidade ou glória, mas aprecio a simpatia com que me acompanham e tomo-a como um incentivo mais para a obra que se vai iniciar."

Quando, em 5 de Julho de 1932, quatro anos depois de ter proferido este discurso, Salazar assumiu a Presidência do Conselho (Primeiro Ministro), encontrou “as contas públicas em ordem” pela simples razão de que fora ele próprio que a tal tarefa se dedicara.

Nos dias de hoje a ideia de que pôr “as contas públicas em ordem”, escondendo um projecto de poder pessoal, é ridícula pois mesmo que se discorde do estilo, Sócrates, ao contrário de Salazar, não se pode dar ao luxo de oferecer ao país o sacrifício de uma vida inteira dedicada ao exercício do poder.

Em Portugal o autoritarismo e a solidão dos chefes continuam, no imaginário popular, a ser virtudes reconhecidas. Mas os chefes de hoje, beneficiando, subliminarmente, dessa perversa herança, estão limitados, quer no tempo quer nos poderes, por um regime que coloca nas mãos do povo, através de eleições livres, o seu destino.

A democracia, apesar de todos os defeitos, permite o exercício do máximo de liberdade possível na escolha dos governos e até a suprema felicidade, para as elites urbanas bem pensantes, de chorar as desgraças dos deserdados defendendo os privilégios dos que vivem à custa delas.

E eu até me posso dar ao luxo de publicar, na íntegra, o discurso de Salazar acerca do “problema clássico dos governos portugueses”: o deficit”, sem temer ser censurado ou perseguido. É a democracia e faz toda a diferença!

(Artigo publicado na edição de hoje do "Semanário Económico")

Thursday, March 01, 2007

DOIS ANOS DE GOVERNO: SINAIS DE ESPERANÇA

Dois anos após as eleições legislativas que deram, pela primeira vez, a maioria absoluta aos socialistas, poucos devem ter acreditado que seria possível, em tão curto espaço de tempo, inverter as expectativas negativas que se tinham adensado sobra a economia e os governos de Portugal, em particular, no que respeita às finanças públicas e às reformas estruturais incluindo a do estado.

Não sei avaliar, com rigor (alguém sabe?), qual a verdadeira dimensão e profundidade desse processo de reformas; sei de algumas das suas vicissitudes e vícios como a “deriva fiscal”; não sei da real capacidade da sociedade civil para acomodar o choque das mudanças, como o aumento inevitável do desemprego, mas sei que estamos no limiar de um tempo que exige a criação de um novo paradigma de estado e de um novo modelo de relação entre o estado e a sociedade civil.

Em democracia a afirmação do “bom governo” não pode prescindir da crítica ideológica, da oposição política e do contraditório da opinião pública. Nada mais certo. Neste cenário de inevitável refrega política, as reformas vão no bom sentido se visarem recriar um estado que ultrapasse a extraordinária capacidade destruidora da inércia que acumulou ao longo de decénios. Um estado que elimine, ou atenue, o impacto das mensagens negativas lançadas contra aqueles que ousam contrariar o imobilismo.

Um estado que estimule a iniciativa individual dos cidadãos e a auto determinação da sociedade civil. Um estado que assuma o combate à inércia das instituições, em particular, das instituições públicas, irradiando o parasitismo que nelas, de alto a baixo, se instalou sem criar novas formas de parasitismo.

Para contrariar a inércia das instituições é preciso aplicar uma força brutal que raramente está ao alcance, em períodos de paz, dos regimes democráticos. É preciso que todos compreendamos e, em particular, a esquerda que nos processos reformistas se o poder democrático vacila sobe em flecha o risco de transformar, aos olhos da opinião pública, a inércia numa virtude e a manha numa arte. Aí está, à vista de qualquer mudança, a grita populista para o demonstrar!

Vem isto a propósito de um tema antigo e recorrente: o deficit público. Tempos atrás os governos da maioria de direita bradavam contra a pesada herança dos governos de Guterres. Mas os seus arroubos reformistas esfumaram-se em pura propaganda. É bom lembrar que os governos da maioria de direita de José Manuel Barroso/Manuela Ferreira Leite e Santana Lopes/Bagão Félix, ao longo de três (3) anos, deixaram um deficit das contas públicas, em 2005, superior a 6%.

Ora a verdade é que um dia destes o Comissário Joaquín Almunia veio a público dar um forte sinal de confiança na política reformista do governo socialista confirmando o sucesso do programa de consolidação orçamental que deverá ultrapassar o objectivo previsto do deficit de 4,6%, em 2006, abrindo caminho para alcançar os objectivos de 3,7%, em 2007 e inferior a 3%, em 2008.

É a melhor notícia para a economia porque gera confiança e estimula o crescimento; é a pior notícia para a oposição porque dá credibilidade à política do governo; é a melhor notícia para o governo porque avaliza a sua política de consolidação orçamental; é a pior notícia para as corporações porque lhes retira, a nível nacional, margem de manobra face à opinião pública.

O que Almunia veio dizer, e a direita política silencia, é que baixar, num só ano, sem recurso a medidas irrepetíveis, o deficit público em 1,5% do PIB é “o que se tinha pedido a Portugal”, reconhecendo, de forma explicita, que o programa de consolidação orçamental é “uma grande medida coerente”.

Almunia até agradeceu, no meio das recomendações da praxe, “às autoridades portuguesas o esforço que estão a fazer” e estendeu o agradecimento “aos cidadãos e à sociedade portuguesa”. Não sei se é prática corrente a expressão pública destes mimos mas o que interessa para o caso é assinalar que eles representam uma mudança radical no tom do discurso das autoridades comunitárias face a Portugal a pretexto do chamado processo de consolidação orçamental.

É claro que é necessário cuidar da ética política, que enraíza na tradição republicana, que as elites intelectuais de direita e de esquerda, na época moderna, sempre proclamaram como a luz que a todos deve iluminar. Mas não há princípio de ética republicana que possa, com seriedade, sobreviver a um estado falido mesmo com a ajuda dos mais geniais disfarces, ou seja, não se pode distribuir o que se não tem – veja-se a gestão de Santana Lopes/Carmona Rodrigues da Câmara Municipal de Lisboa!

As reformas do estado que estão em cursos nunca atingirão a perfeição, nem serão isentas de pecados, mas mais vale afrontar os riscos de uma luta por mudanças imperfeitas do que aceitar as certezas de uma falsa harmonia na qual se encobrem todas as inércias e manhas do velho Portugal conservador.

Todos os dias somos confrontados com fragmentos desta luta que, em Portugal, raramente foi um acontecimento da história tendo sido, quase sempre, a própria história.

(Artigo publicado na edição de 2 de Março de 2007 do "Semanário Económico")

Friday, February 02, 2007

REFORMA DA ADMINSTRAÇÃO PÚBLICA: PEQUENOS DETALHES

Já se percebeu que há atrasos na aplicação de algumas medidas previstas no âmbito da reforma da administração pública. Nada que não fosse expectável. A tarefa é difícil e as suas consequências serão, certamente, dolorosas.

Um sinal das dificuldades é o caso emblemático do Director Geral dos Impostos, Dr. Paulo Macedo, contra o qual nada me move, que aufere uma remuneração que só por milagre encontrará enquadramento na legislação que o governo socialista, recentemente, aprovou ou, no futuro próximo, aprovará.

Toda a gente concorda com a importância da arrecadação de receitas fiscais, no contexto do combate ao deficit das contas públicas, e ninguém duvida que o combate à fraude e evasão fiscais é decisivo para a afirmação do estado de direito e o prestígio da democracia.

Na verdade o Dr. Paulo Macedo, à frente da DGI, tem apresentado resultados. De tal forma que o ministro das finanças, recentemente, enfatizou a importância do contributo da administração fiscal no cumprimento do objectivo de terminar 2006 com um défice do Sector Público Administrativo (SPA) de 4,6% do PIB afirmando que a equipa de Paulo Macedo ultrapassou os objectivos previstos em cerca de 1500 milhões de euros.

Não vou aprofundar o significado destes primeiros números a não ser para sublinhar que não constituem surpresa a não ser, talvez, pelo crescimento das receitas fiscais o que, representando uma vantagem imediata para o cumprimento do objectivo do deficit, deixa em aberto a avaliação do comportamento da despesa onde se joga, a prazo, o combate decisivo da consolidação orçamental.

Se o governo, no âmbito da reforma da administração pública, for capaz de justificar, técnica e politicamente, a recondução do Dr. Paulo Macedo, mantendo as suas condições remuneratórias excepcionais, colocar-se-ão uma miríade de questões relacionadas com outras áreas da governação consideradas, de forma reiterada, como da mais alta prioridade.

Exemplifico, entre as áreas sociais, com o caso da “qualificação dos recursos humanos” já que o “Quadro de Referência Estratégico Nacional – 2007/2013”, recentemente apresentado, anuncia que “as verbas destinadas à qualificação dos recursos humanos aumentam de 26% para 37% dos apoios estruturais. Percentagem que está finalmente em linha com os países mais desenvolvidos. Isto significa 6 mil milhões de euros de aposta no potencial humano. Mais 1,4 mil milhões de euros do que no Quadro Comunitário anterior.”

E no supracitado QREN qual é a primeira das dez prioridades que o governo estabeleceu?: “Preparar os jovens para o futuro e modernizar o nosso ensino”. E como é apresentada esta prioridade, aliás, em coerência com o próprio programa do governo? :

“Queremos um país em que todos os nossos jovens concluam o ensino secundário. Um país que vença o abandono escolar. Um país que dê a todos os jovens uma educação de qualidade, a oportunidade para se qualificarem e para triunfarem num mundo global e exigente. Para serem cidadãos conscientes, activos, participativos, inovadores.”

Não posso estar mais de acordo. Mas, apesar das melhorias nos últimos anos, a situação da educação em Portugal é grave. As taxas de abandono escolar precoce e de conclusão do secundário, por exemplo, colocam Portugal no penúltimo lugar entre os países da UE, apenas ultrapassado por Malta.

A educação é não só uma prioridade política, assumida pelo governo, como uma emergência nacional que impõe a tomada de medidas cujos resultados, ao contrário do fisco, não são mensuráveis, a curto prazo, mas que exigem não menos coragem política e competência técnica.

Pergunto-me como vai o governo, em coerência com as prioridades que estabeleceu, para citar uma área crítica da acção governativa, remunerar os directores gerais que, na estrutura orgânica do Ministério da Educação, assumem a responsabilidade de combater este verdadeiro “deficit” estrutural que condiciona o desenvolvimento do país.

A reforma da administração pública pode, e deve, reconhecer o mérito através da diferenciação das remunerações dos dirigentes, eliminando as excepções, ao contrário da situação actual em que a excepção é, na verdade, a regra. Em qualquer caso, por razões financeiras e de justiça, as remunerações dos dirigentes, mesmo que sejam diferenciadas, nunca poderão ter como limite o céu.

A palavra de ordem “Todo o Poder ao Mérito”, que muitos reclamam para a administração pública, encontra os seus limites não na ideologia mas no pragmatismo. É a velha questão do “máximo razoável”, ou “tecto”, que aplicada à questão remuneratória dos dirigentes da administração pública – e não só – tem que ser igual para todos!

Porque há pequenos detalhes que fazem toda a diferença entre a política dos governos socialistas democráticos… e a dos governos de direita.
(Artigo publicado na edição de hoje do "Semanário Económico")

Thursday, January 11, 2007

ACERCA DO DIRECTOR GERAL DOS IMPOSTOS (2)

O Dr. Paulo Macedo director geral dos impostos é certamente um gestor competente e um homem de fé digo-o sem ironia no exercício de uma função pública à qual tem dedicado os maiores cuidados.

Não sei nada da sua vida privada nem das suas convicções ideológicas, credo religioso ou preferência política. Coloco-me face a ele como perante qualquer outro cidadão meu igual aceitando a sua liberdade que é, como a vida, um valor supremo.

A única diferença resume-se a algumas cartas que trazendo a sua assinatura denunciam que aquele nome é o do director geral dos impostos. Nada de preocupante para um cidadão como eu que julga cumprir com os seus deveres de cidadania entre eles o pagamento de impostos.

É verdade que tempos atrás me dei conta através de notícias que o Dr. Paulo Macedo antes da posse no actual cargo se tinha esquecido de pagar uma prestação da antiga contribuição autárquica. Nada de importante pois acontece a qualquer um e a mim também já me aconteceu.

Antes disso já tinha dado conta através de notícias que o Dr. Paulo Macedo auferia uma remuneração cujo montante nada tem a ver com as que vigoram na administração pública. Mas outros também auferem de privilégios sortidos em que avultam os vencimentos correspondentes aos que auferiam nas empresas privadas das quais são oriundos e que o estado amiúde requisita.

Ainda muitos mais auferem de remunerações especialmente elevadas por via dos enviusamentos promovidos por décadas de criação de excepções à regra na administração pública tornando a regra na verdadeira excepção.

O caso do Dr. Paulo Macedo tornou-se paradigmático não por ser uma excepção pois ele há muitas mas pela política que este governo prometeu seguir e que o senhor primeiro-ministro tem repetido à saciedade qual seja a de tomar medidas para repor a justiça e acabar com as excepções dentro da função pública exigindo como contrapartida sacrifícios por parte do funcionalismo sem poupar ninguém e supõe-se sem olhar a quem.

Ora missas à parte o que este caso coloca é a questão da confiança e credibilidade que ainda resta na política de justiça e de sacrifícios que o governo tem vindo a pedir que se esboroa placidamente na flagrante injustiça que se esconde por detrás de uma remuneração que nunca poderá estribar-se na lei recentemente aprovada.

Espanta-me por isso que haja no governo quem divulgue a ideia que parece ancorar-se numa decisão de recondução do Dr. Paulo Macedo de que se procura uma solução para que a recondução do dito nas funções em apreço não fira a legislação restritiva que o mesmo governo aprovou. Essa legislação para o que vem ao caso em palavras simples assumiu um princípio óbvio que é o de que para efeitos remuneratórios as chefias da administração pública não podem ganhar mais do que o primeiro-ministro.

O Dr. Paulo Macedo apoiado certamente pelo seu credo convicção e desejo de bem servir a comunidade toma em mãos a promoção de iniciativas apropriadamente divulgadas pela comunicação social que o colocam num pedestal de inatingível competência tornando-o um ícone moderno do homem providencial cuja substituição faria perigar a saúde das finanças públicas senão mesmo do próprio regime. Eça de Queiroz não desdenharia tal personagem para fermento da sua imaginação.

Anteontem na “quadratura do círculo” abordado que foi o tema só Pacheco Pereira manteve uma postura a meu ver correcta acerca do assunto. Depois de mostrar reiteradas reservas acerca do crescente poder discricionário do fisco face aos cidadãos cumpridores assumiu a defesa do que é uma evidência: a lei é igual para todos.

A lei pode prever a diferenciação das remunerações dos dirigentes da administração pública que dessa forma deixam de ser excepções ou, caso contrário, não sendo previstas se tornam inaceitáveis à luz dos princípios elementares de um estado de direito. Mas as remunerações desses dirigentes mesmo que sejam diferenciadas nunca terão como limite o céu.

E quer-me cada vez mais parecer que o combate ao deficit passa mais pelo lado da despesa do que pelo da receita e que se o governo enveredar por atalhos num assunto desta natureza dará um passo decisivo para perder a credibilidade pelo menos num dossier tão delicado como o da reforma da administração pública.

Monday, January 08, 2007

ACERCA DO DIRECTOR-GERAL DOS IMPOSTOS

Julgo que não tenho dívidas ao fisco. Digo julgo pois já me aconteceu no passado julgar o mesmo e uns meses ou anos depois surgir o postal que anuncia a inevitável visita à repartição de finanças. Nunca fiando …

Muito tempo atrás fiz a minha única “reclamação graciosa”. Esta é uma designação convenhamos muito interessante que deve querer dizer que o contribuinte para reclamar o que lhe pertence e que o fisco tomou como seu não tem que pagar nada.

Esse meu caso da “graciosa” é antigo e, no fundo, resumiu-se a pagar primeiro um montante de imposto que já se sabia não ser devido por mim ao fisco para através da tal reclamação o reaver mais tarde sem juros. Muito depois! Anos depois! Uma espécie de empréstimo forçado e a prazo ao Estado

Certamente esta notícia acerca das “graciosas” está inserida na campanha pela recondução do actual director geral dos impostos * e pretende demonstrar a sua alta capacidade para gerir o fisco. Aproveito para declarar a minha total oposição à recondução nas actuais condições do sobredito director geral cujo não conheço nem pretendo hostilizar.

Em primeiro lugar deve existir uma lei que preside à fixação das remunerações dos dirigentes da administração pública **. A lei, por princípio, é igual para todos. E não deve haver função mais no cerne do que se designa por ap do que a de dgi. Ninguém imagina, por enquanto, a privatização do fisco.

Caso o governo esteja na disposição de fazer uma revolução no sistema das carreiras e remunerações na ap então estou de acordo em rever a minha posição acerca do estatuto remuneratório do actual dgi. Seria necessário criar um sistema de indexação das remunerações dos dirigentes e funcionários à produtividade dos serviços públicos.

Pois se no passado foram sendo criados entes públicos da mais diversa natureza para ultrapassar a rigidez da administração pública tradicional permitindo pagar remunerações diferenciadas e nalguns casos principescas aos seus dirigentes porque razão não prosseguir no mesmo caminho? O actual PR tem uma larga experiência nessa matéria.

Mas nesse caso teria o governo que reduzir drasticamente a dimensão da ap, muito além do que está previsto no PRACE, circunscrevendo as funções do estado aos mínimos que as teorias liberais identificam com pouco mais do que as funções de soberania e de regulação ou seja avançar a fundo no caminho do desmantelamento do chamado estado social. Não me parece que seja essa a linha política do governo nem sequer que a sociedade pudesse suportar as consequências da conflituosidade que tal solução acarretaria.

Seria fastidioso enumerar as direcções gerais e organismos congéneres que pela sua natureza e influência directa e indirecta em delicados assuntos de estado ou em decisões que envolvem negócios milionários deveriam ter à sua frente directores remunerados ao mesmo nível do actual dgi.

Enumero à mão levantada os dirigentes dos serviços secretos, os titulares dos tribunais superiores, os altos comandos das forças armadas, os embaixadores, os militares em teatros de operações, os dirigentes da protecção civil, os juízes, os magistrados, os directores ligados ao ambiente e ao planeamento do território, os presidentes de câmara e vereadores do urbanismo, os directores gerais ou presidentes de organismos vocacionados para o controle da despesa pública …o primeiro ministro e o presidente da república!!!

A conversa parece um pouco ridícula mas é mesmo ao que leva a discussão que está lançada em volta da manutenção de um director geral que ganha mais do que o mais alto magistrado da nação. Eu sei que há outros dirigentes de organizações públicas – não directores gerais – nas mesmas condições alguns deles a caminho da Índia mas isso não muda nada ao essencial da questão.

É que o grande problema das nossas contas públicas não está do lado da receita – amamentada a impostos – mas do lado da despesa – no qual ironicamente se coloca o problema da altíssima remuneração do actual dgi. Já agora para aqueles mais distraídos destas coisas das remunerações na ap lembro que a remuneração mensal bruta do actual dgi é muito semelhante à remuneração anual bruta de um assessor técnico próximo do topo da carreira da ap ou seja qualquer coisa como 27.500 euros, sem levar em conta as alcavalas que acrescem à remuneração daquele tal como automóvel com motorista, etc. etc. … as quais nem sequer questiono.

E quem nos garante que a produtividade de um assessor técnico em determinadas áreas da administração pública não seja igual ou superior à do actual dgi? Quem garante que muitos técnicos da ap através da sua acção honesta e competente não contribuem directamente para que o estado arrecade benefícios materiais – financeiros e outros – e imateriais superiores aos que dizem ter ajudado a arrecadar em impostos o actual dgi?

Seria necessário conhecer a natureza das decisões de cada um e a influência das mesmas em matérias de relevante interesse público … Mas uma coisa é certa: há poucos a ganhar muito e muitos a ganhar pouco. Dos poucos que muito ganham nem todos serão competentes; dos muitos que pouco ganham nem todos serão incompetentes. Que lhes parece?

É para o equilíbrio desta balança que qualquer reforma da ap tem que contribuir. Mas sempre haverá limites para as remunerações de cada um dos dirigentes da ap e nesses limites nunca caberá no Portugal contemporâneo a remuneração do actual dgi. Ou muda a remuneração ou muda o titular do cargo. Qualquer engenharia remuneratória para tornear o essencial da questão deixará ao governo um pesado encargo político para o futuro.

Arriscando uma conclusão: se o actual Director Geral dos Impostos, Paulo Macedo, for renomeado, nas actuais condições remuneratórias, vence a lógica do privilégio à arrecadação de receitas no ataque ao deficit público; se for afastado ou, renomeado com uma remuneração compatível com o estatuto de director geral, vence a lógica do privilégio à contracção da despesa em coerência com a reforma da ap.

Estou pela minha parte disponível para indicar ao governo uma meia dúzia de nomes de dirigentes da ap nos quais não me incluo capazes de assumir a função com competência e galhardia. Não sei é se os sindicatos e os banqueiros gostarão deles!

* dgi – Director-Geral dos Impostos
** ap – Administração Pública
----------------------------------------------------------------------------

Thursday, January 04, 2007

A LUTA DE CLASSES SEGUE DENTRO DE MOMENTOS ...

Ao abrir um novo ano verifico que vivemos um tempo em que o estado social está no centro de todas as atenções e todas as reformas são inadiáveis. Neste contexto apetece-me perguntar se, por acaso, a reforma dos sindicatos não deverá ser também considerada inadiável.

O papel dos sindicatos corresponde às exigências de uma sociedade em mutação? O programa de acção dos sindicatos corresponde aos anseios dos trabalhadores, em particular, dos trabalhadores “por conta de outrem”?

Ouço muitas interrogações, desde logo a minha própria, acerca da fúria reformista do governo. Compreendo a avalanche das medidas reformistas num país que carece absolutamente de ser capaz de sair do ciclo infernal do empobrecimento relativo face aos parceiros ricos do clube europeu cuja casa decidiu partilhar.

Mas sempre restará na mente de muitos a eterna dúvida de como será possível, em democracia, fazer mudanças profundas com o apoio dos que delas duvidam, por elas são prejudicados ou, pura e simplesmente, as rejeitam. Um mundo de contradições cuja superação parece, por vezes, ultrapassar a capacidade de gestão dos políticos tradicionais que polvilham todas as instância do poder político democrático.

Mas entre esses políticos encontram-se também os sindicalistas, em particular, os dirigentes, que têm ocupado, por regra, o lugar dos protagonistas da oposição a todas, ou a quase todas, as medidas reformistas do governo. De que forma esses dirigentes se interrogam acerca da reforma dos próprios sindicatos em prol da criação das bases de um sindicalismo moderno.

Não sou pelo menosprezo dos sindicatos e muito menos pela sua domesticação ao estilo do corporativismo do Estado Novo. Os sindicatos querem-se rebeldes e activos, poderosos e actuante, livres e acutilantes.

Mas os tempos mudaram e o paradigma da acção sindical, em Portugal, estagnou na lógica da correia de transmissão dos partidos com o chamado movimento de massas. O sindicalismo em Portugal vive das facilidades que lhe são oferecidas pelo patronato e pelo estado. Funcionalizou-se e luta mais para auto sustentar a sua nomenclatura e burocracia do que para defender os interesses dos seus associados.

A tendência para a acomodação dos sindicatos vem de longe, acompanhando as mudanças induzidas pelo chamado processo de globalização. Os sindicatos encarniçam-se, quase exclusivamente, na luta pela defesa dos interesses dos funcionários públicos.

Acantonaram-se, à velha maneira bolchevique, na luta pelo controlo do aparelho de estado, em particular, nas áreas que influenciam a formação da ideologia (educação), o exercício do poder de estado (justiça, forças militares e policiais) e a defesa da prevalência do estado social (saúde e segurança social).

Nas actividades de produção de bens transaccionáveis, na agricultura, indústria e na maior parte dos serviços, das quais o estado já se apartou, quase não soa uma palha reivindicativa que faça lembrar o sindicalismo revolucionário, social-democrata ou mesmo social-cristão, como se todos os direitos dos trabalhadores por “conta de outrem” estivessem salvaguardados e as suas conquistas de classe garantidas.

Os verdadeiros problemas dos trabalhadores assalariados, em particular, os mais jovens e os mais idosos, tais como as reformas precoces, o envelhecimento activo, a discriminação pelo género ou raça, a higiene e segurança no trabalho, entre outros, não motivam qualquer espécie de reivindicação, inovadora e estimulante, que tenha expressão pública.

Não será chegado o momento de abrir caminho para a restituição dos sindicatos aos seus associados criando as bases de um sindicalismo moderno que constitua uma alternativa credível ao que muitos designam como o sindicalismo “de via reduzida” hoje dominante no nosso país?

A verdade é que o panorama do sindicalismo contemporâneo revela uma triste realidade: os sindicatos são tanto mais fracos quanto mais afastados dos organismos do estado. Os sindicatos precisam do estado para mostrar a sua força e, dessa forma, esconder a sua submissão aos ditames do patronato.

A luta de classes segue dentro de momentos …

(Artigo publicado na edição de 5 de Janeiro de 2007 do "Semanário Económico".)