Sunday, October 13, 2013

ALBERT CAMUS - CENTENÁRIO (GRANDES TEXTOS)

ALBERT CAMUS - Alguns apontamentos para Nemésis


Por Maria Luísa Malato Borralho - Faculdade de Letras da Universidade do Porto

Fez no dia 4 de Janeiro cinquenta anos que Albert Camus morreu. Tinha uns dias antes, terminado uns apontamentos sobre a forma de aforismos: um nunca fechado ensaio sobre o que não convém esquecer, sobre o que convém arrastar ao longo do tempo. Chamara-lhe “Para Nemésis” (Nemésis, a deusa filha da Noite e do Oceano), e dedicara-o a Cerésol, um amigo de longa data. Evocar Camus poderia ser mais um ritual literário. Não é ele que nos move. Mas o pretexto para não o deixar morrer. Porque um escritor morre quando não é lido. E a avaliar pelas leituras das novas gerações que chegam aos cursos universitários de Literatura, a crer nos inquéritos que preenchem, e nos modelos de literatura que incorporam, Albert Camus caiu num indiferente silêncio. 

Quem é Albert Camus? Um escritor que não queria esquecer em si a amálgama de raças de que todos somos feitos. Amarguravam-no os rótulos, sacudia-os muitas vezes debalde, sobretudo depois de ter recebido o Prémio Nobel. Sempre demasiado filósofo para entrar na cúria dos escritores, demasiado escritor para entrar na quinta dos filósofos, demasiado instintivo para o coro dos existencialistas, demasiado existencialista para o hino dos neo-realistas, demasiado materialista para ser religioso, demasiado religioso para ser materialista. Andamos a perdê-lo entre estes e outros lugares-comuns. 

Albert Camus é um escritor para o nosso tempo, para em cada tempo questionarmos o que somos. Fala-nos por isso de coisas incómodas e não rotuláveis. Numa folha dos seus cadernos foi anotando as dez palavras que preferia. “Resposta à questão sobre as minhas dez palavras preferidas: Mundo, Dor, Terra, Mãe, Homens, Deserto, Miséria, Verão, Mar”. Antes o lêssemos com palavras-chave ou com aforismos. E dele fizéssemos apontamentos para Nemésis, formas de Memória, nascidas do escuro da Noite e da mobilidade do Oceano. As palavras-chave abrem livros e mundos. E os aforismos são uma sabedoria erudita, como provérbios de um povo de leitores.

Mundo: “O meu papel não é o de transformar o mundo. […] Ou transformar os homens. […] Mas talvez seja o de, na minha circunstância, somente servir aqueles valores sem os quais o mundo, mesmo transformado, não merece ser vivido”. Ler O Homem Revoltado. O absurdo do mundo não é uma conclusão. Mas pode ser um ponto de partida.

Dor: “Devemos servir ao mesmo tempo a Dor e a Beleza. A demorada paciência, a força, a secreta vitória que isso exigirá de nós tornar-se-ão as virtudes sobre as quais fundaremos o renascimento de que sentimos necessidade”. Ler O Avesso e o Direito. Nunca se deve escolher entre O Avesso e o Direito do mundo. Não se pode escolher.

Terra: “Bem pobres são aqueles que têm necessidade de mitos. Aqui os deuses transformam-se em leitos e miradouros ao longo dos caminhos. Descrevo e digo: ’Aqui está o vermelho, o azul, o verde. Isto é o mar, a montanha, flores’. Que necessidade tenho de falar de Dionísio para falar do gosto que tenho em esmagar as sementes de lentisco perto do nariz?” Ler O Estrangeiro. Há uma aprendizagem a fazer do que temos. E do que perdemos quando o esquecemos.

Mãe: “[…] o sentimento bizarro que um filho dedica a sua mãe constitui toda a sua sensibilidade. As manifestações dessa sensibilidade nos mais diferentes domínios explicam-se suficientemente por essa memória latente, o material da sua infância (cola que adere à alma) ”. Ler O Primeiro Homem. Crescer a tentar perceber os silêncios, as lacunas, os gestos, os actos. Mais importantes do que as palavras que foram faltando.

Homens: “Todos nós sabemos bem, sem qualquer sombra de dúvida, que a tão procurada nova ordem mundial, não pode ser a imposição de uma perspectiva nacional, nem mesmo continental, e muito menos ocidental ou oriental. Ela só pode ser universal”. Ler Os Justos. Ajuda a reflectir sobre o terrorismo e os seus limites. Entender a ordem é compreender a diversidade. Entender o Mal é desde logo exigir em nós a acção responsável do Bem.

Deserto: “O deserto tem algo de implacável. O céu mineral de Orão, as suas ruas, as suas árvores revestidas pela poeira, tudo contribui para criar esse universo espesso e impassível, onde o coração e o espírito nunca andam distraídos, nele encontrando sempre razões para crescer, para se afirmar”. Ler Calígula ou A Queda. O deserto nas cidades também. O das palavras indiferentes e o dos gestos brutais. E a teimosa lição de toda a vida que existe no deserto.

Miséria: Respondendo a um crítico que lhe observava que não podia ter aprendido o valor da liberdade em Marx: “- É verdade, aprendi-o na miséria”. Ler A Peste. A miséria que pode amesquinhar. A miséria que pode tolher. A miséria que pode desculpar o uso do sabre. Mas também a possibilidade de tudo perder. E da vitória possível do espírito sobre o sabre.

Verão: “Nunca falhamos na vida quando a colocamos na luz. Ao longo das situações, descontentamentos, desilusões, o meu zelo era o de voltar a encontrar os contactos do mundo. E mesmo mergulhado na minha tristeza, que desejo de amar, que inebriamento, à simples visão de uma colina ao cair da tarde”. Ler O Verão. Devia ser traduzido. Existe todavia na internet uma versão brasileira, disponível.

Mar: “Preciso de me despir e depois mergulhar no mar, o corpo perfumado ainda com as essências da terra, e nele as lavar, sentindo sobre a minha pele o beijo por que suspiravam há tanto tempo a terra e o mar”. Ler Núpcias. A voluptuosidade do volúvel. O prazer do que é indefinido e muda de forma. Como do que é palpável e rigoroso.

O sentimento do absurdo é fácil. Difícil é pegar no absurdo e teimar em derrotá-lo. Com “aquela vontade admirável de nada separar ou excluir que sempre reconciliou e reconciliará ainda o coração dorido dos homens e a primavera do mundo”.

[Publicado, no dia 15 de Janeiro de 2010, em As Artes Entre as Letras.]

Friday, October 11, 2013

ALBERT CAMUS - CENTENÁRIO (GRANDES TEXTOS)

No dia 18 de março de 2012, o jornal Le Monde publicou um manifesto inédito de Albert Camus. O texto ia ser publicado no Le Soir Républicain, um jornal argelino, mas foi censurado. Na época, estava começando a Segunda Guerra Mundial.

Você confere o texto original abaixo e uma tradução.

Original

L'article que nous publions devait paraître le 25 novembre 1939 dans "Le Soir républicain", un quotidien limité à une feuille recto verso que Camus codirige à Alger. L'écrivain y définit "les quatre commandements du journaliste libre" : lucidité, refus, ironie et obstination. Notre collaboratrice Macha Séry a retrouvé ce texte aux Archives nationales d'outre-mer, à Aix-en-Provence. Camus dénonce ici la désinformation qui gangrène déjà la France en 1939. Son manifeste va plus loin. Il est une réflexion sur le journalisme en temps de guerre. Et, plus largement, sur le choix de chacun, plus que celui de la collectivité, de se construire en homme libre.

Il est difficile aujourd'hui d'évoquer la liberté de la presse sans être taxé d'extravagance, accusé d'être Mata-Hari, de se voir convaincre d'être le neveu de Staline.

Pourtant cette liberté parmi d'autres n'est qu'un des visages de la liberté tout court et l'on comprendra notre obstination à la défendre si l'on veut bien admettre qu'il n'y a point d'autre façon de gagner réellement la guerre.

Certes, toute liberté a ses limites. Encore faut-il qu'elles soient librement reconnues. Sur les obstacles qui sont apportés aujourd'hui à la liberté de pensée, nous avons d'ailleurs dit tout ce que nous avons pu dire et nous dirons encore, et à satiété, tout ce qu'il nous sera possible de dire. En particulier, nous ne nous étonnerons jamais assez, le principe de la censure une fois imposé, que la reproduction des textes publiés en France et visés par les censeurs métropolitains soit interdite au Soir républicain (le journal, publié à Alger, dont Albert Camus était rédacteur en chef à l'époque), par exemple. Le fait qu'à cet égard un journal dépend de l'humeur ou de la compétence d'un homme démontre mieux qu'autre chose le degré d'inconscience où nous sommes parvenus.

Un des bons préceptes d'une philosophie digne de ce nom est de ne jamais se répandre en lamentations inutiles en face d'un état de fait qui ne peut plus être évité. La question en France n'est plus aujourd'hui de savoir comment préserver les libertés de la presse. Elle est de chercher comment, en face de la suppression de ces libertés, un journaliste peut rester libre. Le problème n'intéresse plus la collectivité. Il concerne l'individu.

Et justement ce qu'il nous plairait de définir ici, ce sont les conditions et les moyens par lesquels, au sein même de la guerre et de ses servitudes, la liberté peut être, non seulement préservée, mais encore manifestée. Ces moyens sont au nombre de quatre : la lucidité, le refus, l'ironie et l'obstination. La lucidité suppose la résistance aux entraînements de la haine et au culte de la fatalité. Dans le monde de notre expérience, il est certain que tout peut être évité. La guerre elle-même, qui est un phénomène humain, peut être à tous les moments évitée ou arrêtée par des moyens humains. Il suffit de connaître l'histoire des dernières années de la politique européenne pour être certains que la guerre, quelle qu'elle soit, a des causes évidentes. Cette vue claire des choses exclut la haine aveugle et le désespoir qui laisse faire. Un journaliste libre, en 1939, ne désespère pas et lutte pour ce qu'il croit vrai comme si son action pouvait influer sur le cours des événements. Il ne publie rien qui puisse exciter à la haine ou provoquer le désespoir. Tout cela est en son pouvoir.

En face de la marée montante de la bêtise, il est nécessaire également d'opposer quelques refus. Toutes les contraintes du monde ne feront pas qu'un esprit un peu propre accepte d'être malhonnête. Or, et pour peu qu'on connaisse le mécanisme des informations, il est facile de s'assurer de l'authenticité d'une nouvelle. C'est à cela qu'un journaliste libre doit donner toute son attention. Car, s'il ne peut dire tout ce qu'il pense, il lui est possible de ne pas dire ce qu'il ne pense pas ou qu'il croit faux. Et c'est ainsi qu'un journal libre se mesure autant à ce qu'il dit qu'à ce qu'il ne dit pas. Cette liberté toute négative est, de loin, la plus importante de toutes, si l'on sait la maintenir. Car elle prépare l'avènement de la vraie liberté. En conséquence, un journal indépendant donne l'origine de ses informations, aide le public à les évaluer, répudie le bourrage de crâne, supprime les invectives, pallie par des commentaires l'uniformisation des informationset, en bref, sert la vérité dans la mesure humaine de ses forces. Cette mesure, si relative qu'elle soit, lui permet du moins de refuser ce qu'aucune force au monde ne pourrait lui faire accepter : servir le mensonge.

Nous en venons ainsi à l'ironie. On peut poser en principe qu'un esprit qui a le goût et les moyens d'imposer la contrainte est imperméable à l'ironie. On ne voit pas Hitler, pour ne prendre qu'un exemple parmi d'autres, utiliser l'ironie socratique. Il reste donc que l'ironie demeure une arme sans précédent contre les trop puissants. Elle complète le refus en ce sens qu'elle permet, non plus de rejeter ce qui est faux, mais de dire souvent ce qui est vrai. Un journaliste libre, en 1939, ne se fait pas trop d'illusions sur l'intelligence de ceux qui l'oppriment. Il est pessimiste en ce qui regarde l'homme. Une vérité énoncée sur un ton dogmatique est censurée neuf fois sur dix. La même vérité dite plaisamment ne l'est que cinq fois sur dix. Cette disposition figure assez exactement les possibilités de l'intelligence humaine. Elle explique également que des journaux français comme Le Merle ou Le Canard enchaîné puissent publier régulièrement les courageux articles que l'on sait. Un journaliste libre, en 1939, est donc nécessairement ironique, encore que ce soit souvent à son corps défendant. Mais la vérité et la liberté sont des maîtresses exigeantes puisqu'elles ont peu d'amants.

Cette attitude d'esprit brièvement définie, il est évident qu'elle ne saurait se soutenir efficacement sans un minimum d'obstination. Bien des obstacles sont mis à la liberté d'expression. Ce ne sont pas les plus sévères qui peuvent décourager un esprit. Car les menaces, les suspensions, les poursuites obtiennent généralement en France l'effet contraire à celui qu'on se propose. Mais il faut convenir qu'il est des obstacles décourageants : la constance dans la sottise, la veulerie organisée, l'inintelligence agressive, et nous en passons. Là est le grand obstacle dont il faut triompher. L'obstination est ici vertu cardinale. Par un paradoxe curieux mais évident, elle se met alors au service de l'objectivité et de la tolérance.

Voici donc un ensemble de règles pour préserver la liberté jusqu'au sein de la servitude. Et après ?, dira-t-on. Après ? Ne soyons pas trop pressés. Si seulement chaque Français voulait bien maintenir dans sa sphère tout ce qu'il croit vrai et juste, s'il voulait aider pour sa faible part au maintien de la liberté, résister à l'abandon et faire connaître sa volonté, alors et alors seulement cette guerre serait gagnée, au sens profond du mot.

Oui, c'est souvent à son corps défendant qu'un esprit libre de ce siècle fait sentir son ironie. Que trouver de plaisant dans ce monde enflammé ? Mais la vertu de l'homme est de se maintenir en face de tout ce qui le nie. Personne ne veut recommencer dans vingt-cinq ans la double expérience de 1914 et de 1939. Il faut donc essayer une méthode encore toute nouvelle qui serait la justice et la générosité. Mais celles-ci ne s'expriment que dans des coeurs déjà libres et dans les esprits encore clairvoyants. Former ces coeurs et ces esprits, les réveiller plutôt, c'est la tâche à la fois modeste et ambitieuse qui revient à l'homme indépendant. Il faut s'y tenir sans voir plus avant. L'histoire tiendra ou ne tiendra pas compte de ces efforts. Mais ils auront été faits.

Tradução

O artigo que publicamos é de 25 de novembro de 1939, do Le Soir républicain, um jornal de folha única co-dirigido por Camus em Argel. O escritor define, no texto, os "quatro mandamentos do jornalista livre": a lucidez, a recusa, a ironia e a obstinação. Nosso colaborador Macha Sery descobriu o texto no Arquivo Nacional do exterior, em Aix-en-Provence. Camus denuncia a desinformação que assola a França em 1939. Seu manifesto vai mais longe. É uma reflexão sobre o jornalismo em tempo de guerra. E, mais amplamente, é a escolha de cada indivíduo, mais do que em comunidade, para construir um homem livre.

É difícil hoje para discutir a liberdade de imprensa sem ser taxado extravagante, acusado de ser uma Mata-Hari (famosa assassina e espiã holandesa), ou convencido de que se é sobrinho de Stálin.

No entanto, essa liberdade dos outros não é a face da própria liberdade e vamos incluir a nossa determinação em defendê-la se aceitamos que não há outra maneira de realmente ganhar a guerra.

Certamente, a liberdade tem seus limites. É também necessário que isso seja livremente aceito. Sobre os obstáculos presentes hoje à liberdade de pensamento, temos dito tudo o que se podia dizer e diremos de novo e de novo tudo o que se é possível dizer sobre. Em particular, nos surpreende bastante, o começo da censura imposta uma vez na reprodução de textos publicados na França e feita pelos censores metropolitanos de maneira ilegal no  Soir Républicain (um jornal, publicado em Argel, onde Albert Camus foi editor na época), por exemplo. O fato de que, sobre esse assunto, um jornal dependa do humor ou da competência de um homem acaba demonstrando melhor o grau de consciência que temos conseguido.

Um dos bons preceitos de uma filosofia digna desse nome nunca é espalhada em lamentações inúteis diante de uma situação que não pode mais ser evitada. A questão na França hoje não é mais falar de como preservar a liberdade de imprensa. É para saber como, diante da supressão dessas liberdades, um jornalista pode permanecer livre. O problema não interessa mais ao coletivo. Ela diz respeito ao indivíduo.

E justamente o que nós escolhemos para definir aqui as condições e os meios pelos quais, dentro da guerra e em suas servidões, a liberdade pode não apenas ser preservada, mas também manifestada mais uma vez. Estes meios são quatro: a lucidez, a recusa, a ironia e a obstinação. A lucidez requer treinamento de resistência aos aspectos do ódio e ao culto da desgraça. No mundo de nossa experiência, é certo que tudo pode ser evitado. A própria guerra, que é um fenômeno humano, pode ser evitada ou parada a todo o momento por meios humanos. Basta conhecer a história dos últimos anos da política europeia para ter certeza de que a guerra, seja qual for, tem causas óbvias. Essa visão clara das coisas exclui o ódio cego e o desespero que se formam. Um jornalista livre, em 1939, não se desespera e luta por aquilo que ele acredita ser verdade se a sua ação puder afetar o curso dos acontecimentos. Ele não publica nada que possa despertar o ódio ou que provoque desespero. Tudo isso está em seu poder.

Diante da crescente onda de loucura, também é necessário se opor a certas recusas. Todas as restrições do mundo não criarão um espírito que concorda um pouco em ser desonesto. O ouro, e pouco sabemos sobre os meios de informação, é fácil ser verificado em sua autenticidade. Um jornalista livre deve oferecer toda a sua atenção. Pois, se ele pode dizer o que ele pensa, ele não pode dizer o que ele não pensa ou o que ele acredita ser falso. E isso em um jornal livre é medido tanto pelo que ele diz quanto pelo que ele não diz. Essa liberdade negativa é, de longe, a mais importante de todas, se ela se mantiver. Porque ela prepara o caminho para a verdadeira liberdade. Consequentemente, um jornal independente gera suas informações, ajuda o público a avaliá-las, repudia o sensacionalismo, remove invenções, organiza os comentários padronizando a informação, em resumo, ele é a verdade, na concentração das forças humanas. Essa recusa, se ela está é assim, pelo menos, permite que se negue o que nenhuma força na terra pode fazer o jornal aceitar: submeter-se às mentiras.

Isso nos leva para a ironia. Podemos imaginar que uma mente que tem gosto e meios para impor restrições é impermeável à ironia. Nós não vemos Hitler, para dar apenas um exemplo entre outros, usar a ironia socrática. Isso mostra que a ironia continua a ser uma arma sem precedentes contra os poderosos totalitários. Ela complementa a recusa na medida em que permite, ao invés de rejeitar o que é falso, dizer o que é a verdade, muitas vezes. Um jornalista livre, em 1939, não se rende a muitas ilusões sobre a inteligência daqueles que oprimem. Ele é pessimista no que se refere ao homem. A verdade expressa em tom dogmático é recusada por ele nove em cada dez vezes. A mesma verdade de forma jocosa é aceita  em cinco de cada dez vezes. Esta disposição é quase igual às possibilidades da inteligência humana. A ironia também explica que jornais franceses como Le Canard e Le Merle se comprometem e podem publicar artigos corajosos conhecidos. Um jornalista livre, em 1939, é necessariamente irônico, mas ele é, muitas vezes, a contragosto. Mas a verdade e a liberdade são exigentes, uma vez que eles tem poucos amantes.

Tal atitude de espírito brevemente definida, obviamente não pode ser sustentada de forma eficaz sem um mínimo de obstinação. Muitos obstáculos são colocados contra a liberdade de expressão. Eles não são mais graves do que desencorajar um espírito. Porque as ameaças, as suspensões e a repressão na França geralmente conseguem o efeito oposto ao que é proposto. Mas devemos admitir que são obstáculos desencorajadores: a constância da estupidez, as organizações covardes, a desinteligência agressiva e, por isso, nós nos desgastamos. Aqui está o grande obstáculo que devemos superar. Obstinação é uma virtude cardeal. Por um curioso paradoxo é evidente que, em seguida, começa nela a objetividade e a tolerância.

Aqui está um conjunto de regras para preservar a liberdade até dentro da servidão, da repressão. E depois? Vai dizer, depois? Não vamos ter pressa. Se apenas a cada francês quiser se manter bem dentro da esfera do que ele acredita que é verdadeiro e correto, se ele quisesse ajudar com sua pequena parte na manutenção da liberdade, resistir ao abandono e descobrir a seu desejo, então, e só então, esta guerra seria vencida, no sentido mais profundo da palavra.

Sim, é muitas vezes a contragosto que um espírito livre do século percebeu sua ironia. O que é engraçado de se ver neste mundo em chamas? No entanto, a virtude do homem é se manter firme diante de tudo o que nega. Ninguém quer reviver esses vinte e cinco anos de experiência, tanto em 1914 quanto em 1939. Devemos, portanto, experimentar um método ainda muito novo de justiça e generosidade. Mas elas são expressas apenas em corações livres e em mentes ainda exigentes. Formar esses corações e mentes, que acordem de vez, é a tarefa tanto do homem modesto quanto do ambicioso que se torna independente. Devemos chegar nisso sem adiar mais. A história será contada ou não através desses esforços. E tudo depende se eles forem feitos.
 
(Daqui)