Friday, March 31, 2006

INATEL - CONFIRMAÇÃO DE UMA REFORMA TARDIA

O organograma representando a reforma da administração pública surgiu hoje à luz do dia. Deixando de lado considerações mais profundas acerca do significado desta reforma, que conjuga uma espécie de “limpeza do sótão” do estado, sem relevância especial, com mudanças de real impacto na modernização da administração pública, lá encontrei a “casinha” do INATEL.

O que dá para entender, a respeito do INATEL, é um processo designado por “externalizar para fundação” que, neste contexto, deverá representar a sua transformação em fundação de natureza privada. Tudo aquilo que já estava desenhado, ao pormenor, desde 1998 e que tenho vindo a revelar nestas crónicas de arqueologia institucional mas que, para mim, assumem uma especial importância.

Deverá, hoje, ter-se confirmado que a presente reforma do INATEL retomou o projecto elaborado há oito (8) anos atrás adoptando a figura de “Fundação de Direito Privado e Utilidade Pública” alcançando, assim, o objectivo da chamada “externalização”, ou seja, a retirada do INATEL do OE, que integrou só a partir de 1997, e a sua subtracção à obrigatoriedade da sujeição a um conjunto de legislação e regulamentação próprias das organizações da administração, directa ou indirecta, do estado.

A manter-se o espírito da proposta de 1998/99 – não conheço o projecto actual – não se tratará de uma privatização pois, apesar de gestão assumir uma natureza próxima das entidades privadas, o estado manterá poderes decisivos de tutela e o património da instituição não sairá da esfera pública mantendo-se afecto ao prosseguimento de fins de interesse geral, ou seja, públicos.

Resta saber qual o papel dos sindicatos que, no projecto inicial, estava previsto assumisse funções de gestão não executiva. De facto as Centrais Sindicais – UGT e CGTP – tomavam protagonismo nos órgãos de gestão ao contrário da sua actual limitada participação num órgão consultivo (Conselho Geral).

Voltando á cronologia do processo, que eu próprio dirigi pessoalmente, após aprovação pela direcção do INATEL, como referido anteriormente, a proposta de decreto-lei que consagraria a reforma estatutária do INATEL foi enviada, pelo gabinete do Ministro da tutela, às centrais sindicais, para efeitos de emissão de pareceres, no mês de Maio de 1999 tendo os mesmos sido emitidos e enviados ao Gabinete do Ministro em Junho desse mesmo ano.

O teor do parecer da CGTP expressava uma discordância de fundo acerca da natureza jurídica que se pretendia atribuir ao INATEL (fundação privada) argumentando, no essencial, com o facto do próprio governo, por despacho publicado em 13 de Maio de 1999, reconhecer que o regime jurídico das fundações privadas se encontrava profundamente desactualizado e que inexistia um regime jurídico das fundações públicas o que, para minha surpresa, inviabilizava, mesmo que tal se revelasse uma solução razoável, o que não era minha convicção, a criação de uma fundação de natureza pública.

A CGTP preconizava, em conformidade, que se aguardassem os resultados os resultados do grupo de trabalho nomeado pelo governo, ao qual, salvo erro, presidia Vital Moreira, para tomar uma opção que, segundo a CGTP, deveria certamente ser, no futuro, a de fundação pública.

A UGT, por sua vez, no parecer emitido, em Junho de 1999, afirmava, na generalidade, o seu apoio à proposta de reforma, afirmando que a solução encontrada era que a melhor defendia a instituição, no prosseguimento das suas finalidade, e salvaguardava a preservação do seu património apresentando um conjunto de propostas de alteração, de detalhe, ao projecto de estatutos.

Um pouco mais tarde a CGTP havia de alterar a sua posição viabilizando a adopção do projecto que previa a criação da fundação de direito privado.

(“A Verdade de Uma Reforma” – 5 de 10)

Sunday, March 26, 2006

APRESENTAÇÃO DO ESTUDO DE IMPACTO SÓCIO ECONÓMICO DOS PROGRAMAS DE "TURISMO SÉNIOR" E DE "SAÚDE E TERMALISMO SÉNIOR" (1995/2000)

O impacto económico e social da participação alargada de novos públicos na actividade turística

BTL/AUDITÓRIO DA FIL - PARQUE DAS NAÇÕES
LISBOA, 25 DE JANEIRO DE 2002


Caras (os) Convidadas (os)

Minhas Senhoras e meus Senhores

O “Turismo para Todos” é uma realidade de contornos históricos e políticos muito complexos e cuja génese se situa na segunda metade do século XIX quando o progresso dos meios de comunicação, terrestre e marítima, veio possibilitar o estabelecimento de programas fixos de viagens, permitindo que a eles acedessem as classes sociais mais activas.

Na génese deste movimento poderemos também identificar o contributo de um conjunto de actividades de lazer e turismo [1] que no final do século XIX, princípios do séc. XX, surgem de iniciativas de sectores de inspiração cristã ou do movimento operário[2], como as práticas associativas de natureza desportiva e promotoras do contacto com o meio ambiente[3], as actividades de lazer para jovens e as colónias de férias[4].

São um conjunto de actividades que podem ser entendidas como precursoras de princípios e valores que, hoje, consideramos património do "Turismo para Todos", nomeadamente a recusa de uma dimensão ostentatória do Turismo e do lazer enquanto objecto de simples consumo e a defesa da emergência do lazer enquanto actividade com um alto valor para o bem estar físico e psíquico do ser humano promotora do enriquecimento cultural.

O século XX desenvolve novos cenários de actuação no âmbito do "Turismo para Todos", assistindo-se, principalmente depois de 1914, a um crescente papel do Estado neste domínio, marcado por dois modelos que se distinguem pelo grau de intervencionismo.

O modelo menos intervencionista, praticado nos países de maior tradição liberal, caracteriza-se pelo aparecimento de um conjunto de legislação social que tende a facilitar o acesso de um cada vez maior número de cidadãos ao turismo, bem como a implantação de políticas sociais de diversa natureza.

No modelo mais intervencionista, desenvolvido principalmente na vigência dos regimes totalitários que assolaram alguns países europeus, entre os quais Portugal, a partir dos anos 20 e 30, e onde devemos também incluir os regimes comunistas, existe uma clara utilização da organização do lazer de massas como promoção de um verdadeiro controle social.

Foi em França, em 1936, sob os auspícios do Governo da Frente Popular, logo seguida, no mesmo ano, pela Bélgica, que as "férias pagas" foram consagradas, sendo mesmo criado o Ministério dos Lazeres, resgatando para as políticas próprias dos regimes democráticos, o modelo de uma maior intervenção do Estado no domínio do que hoje entendemos ser o Lazer Social.

Após a segunda guerra mundial, este movimento foi precursor da democratização do Turismo, permitindo a milhares de trabalhadores e suas famílias descobrirem outros territórios, verificando-se uma autêntica transumância no mês de férias, materializando o que hoje conhecemos por Turismo de massas.

É a afirmação desta linha de actuação na Europa que nos permite situar, já em plena actualidade, as quatro ideias chave da nova Carta do Turismo Social, publicada pelo BITS, em 1996, e que ficou conhecida como “Declaração de Montreal":

1. Contribuir para dar resposta aos modernos desafios da exclusão e integração sociais;

2. Criar condições de acesso aos benefícios do turismo ao maior número de cidadãos trabalhadores;

3. Desempenhar um papel activo no reforço da economia e na criação de emprego constituindo-se como factor de coesão social;

4. Conciliar o desenvolvimento turístico, protecção do ambiente e respeito pela identidade cultural das comunidades locais.

Da análise, não definitiva e por defeito, de alguns indicadores deste segmento da actividade turística, relativos ao ano de 2000, resulta bem clara a importância económica e social do "Turismo para Todos" no quadro da União Europeia que motivou, em 2 de Julho do ano passado, em Bruges, aquando da presidência belga, um Seminário de nível Ministerial.

Tendo registado um volume de negócios superior a 8 mil milhões de Euros, o "Turismo para Todos" promoveu mais de 130 milhões de dias de férias, acolheu cerca de 35 milhões de pessoas e disponibiliza mais de 1 milhão de camas. De referir que em 2000 o "Turismo para Todos" garantiu cerca de 300 mil empregos, tendo envolvido 6 mil estruturas de alojamento.

Em Portugal os programas "Turismo Sénior” e “Saúde e Termalismo Senior”, de iniciativa governamental, organizados pelo INATEL, no seu conjunto, mobilizaram, desde 1995 até ao presente, mais de 250 mil utentes.

Nesta área de actividade, em Portugal, fez-se um progresso notável nos últimos anos quer do ponto de vista da quantidade (18.000 semanas em 1995 para mais de 50.000 em 2001) como da qualidade como é demonstrado, entre outros aspectos, pela iniciativa de promover um estudo de avaliação que inclui o próprio desempenho da entidade gestora o que, diga-se, não é prática comum no nosso país.

Estes programas para seniores representam um investimento público considerável que beneficia os operadores de turismo em geral, sendo já uma realidade económica incontornável, especialmente na chamada época baixa turística.

Os impactos económicos do "Turismo para Todos" estão identificados e quantificados em estudos, como é o caso do que hoje se apresenta, assumindo particular relevância o incremento das receitas geradas directamente pelos programas em benefícios dos agentes económicos privados (hotelaria, agências de viagens, transportes, publicidade, seguros, guias turísticos, restaurantes, casinos, animadores, agrupamentos artísticos, etc.), as poupanças em despesas de saúde e o incremento das receitas fiscais arrecadadas pelos Estados e Regiões.

É assinalável a conclusão de um retorno, por via fiscal, de 49% do financiamento público atribuído pelo Governo ao programa Turismo Sénior, assim como os impactos sociais positivos pois os Programas são, para uma larga maioria de seniores, a única oportunidade de gozo de férias de que estes beneficiam ao longo do ano.

O Estudo apresenta um cenário do impacto sócio económico dos programas que nos surge por defeito, mas cuja influência nos indicadores económicos globais deixa antever que o "Turismo para Todos", parte integrante da Economia Social, é um factor incomparável de desenvolvimento local e regional pelo volume de negócios que suscita, pelo numero de empregos directos e indirectos que gera, e por numerosas oportunidades profissionais que oferece a camadas da população mais penalizadas pelo mercado de emprego.

Esta reflexão não escapa ao designado “paradoxo do século da igualdade”, ou seja, a um quadro de conflito entre competitividade diferenciadora e distributivismo igualitário que atravessou todo o Século XX, e que tem estado a ser resolvido a favor da desigualdade, apesar da dominância de um discurso político favorável à igualdade.

A diferença de rendimentos entre os 25% mais pobres e os 25% mais ricos era, no princípio do século XX, em termos mundiais, de duas vezes; no fim do século essa diferença é de dez vezes.

É à luz desta situação de profunda desigualdade que as contradições entre os interesses do Norte e do Sul, do Leste e do Ocidente da Europa, envolvendo interesses privados e públicos, diferenciadas políticas de promoção do acesso a benefícios sociais, opondo culturas, ideologias e sensibilidades, atravessando gerações, governos e instituições europeias, devem ser encaradas e relativizadas.

A acção das organizações e instituições que promovem e divulgam o turismo, na perspectiva de o tornar acessível a contingentes cada vez mais numerosos de cidadãos, carentes de recursos financeiros, sejam novos pobres, idosos ou trabalhadores com baixos rendimentos, imigrantes ou deficientes, geram dinâmicas que beneficiam a coesão social e dinamizam as economias dos Estados e Regiões da União.

Estes milhões de cidadãos europeus ameaçados pela ditadura da solidão e pela exclusão, gozam já hoje, parcialmente, do benefício do acesso a férias no âmbito de programas com apoio da iniciativa privada, associativa ou pública, permitindo-lhes usufruir dessa extraordinária aquisição civilizacional que é o direito ao tempo livre.

Pensamos, na sequência da nossa experiência na gestão do INATEL, ser estimulante promover o debate acerca do papel do "Turismo para Todos" na promoção de uma cidadania activa em Portugal e na Europa, para a consagração do tempo de “não trabalho” e de defesa do “ócio livre”, como uma aquisição das nossas sociedades democráticas, não só no plano ideológico, mas também programático e legal.

Propunha-vos, neste contexto, que considerassem, no cerne das vossas preocupações, a questão do envelhecimento das populações de todo o mundo e, em particular, dos países da Europa Ocidental, recentemente comprovada, em Portugal, pelos dados do Censo de 2001.

Nenhuma reflexão, preocupada com a cidadania e com um desenvolvimento económico e social sustentável, será susceptível de ter acolhimento nos programas políticos do presente e do futuro se não se estribar na aceitação da dura realidade de uma inevitável evolução demográfica que exigirá às nossas sociedades mudanças profundas de mentalidades e comportamentos.

Desde as políticas de trabalho e emprego, garantindo uma actividade profissional útil e digna ao maior número de cidadãos, ao longo de toda a vida, a melhorias dos sistemas de educação, privilegiando as vertentes tecnológica e humanista, a uma corajosa política de abertura à imigração, aceitando e integrando culturas diferenciadas, até ao estímulo das taxas de renovação das gerações, tudo será certamente questionável e sujeito a fortes tensões.

Aos Estados e Governos serão exigidas, face a estes desafios, novas políticas promotoras do acesso aos benefícios do turismo que se integrem no espírito de profundas reformas do modelo social europeu.

Nesse sentido destaco algumas sugestões programáticas que tendo já obtido reconhecimento por diversas instâncias internacionais, de que se destaca a OMT[5], suscitariam a maior aceitação e entusiasmo das organizações promotoras do "Turismo para Todos" se viessem a ser adoptadas:

- reconhecimento político e institucional do "Turismo para Todos" na legislação nacional de turismo;

- continuidade do apoio político e financeiro do governos a programas de promoção do acesso ao turismo, em particular na época baixa, das famílias de trabalhadores no activo, seniores, deficientes e imigrantes, de mais baixos rendimentos;

- estimulo à criação de programas de intercâmbio internacional de grupos de cidadãos, em particular, imigrantes, oriundos de comunidades deslocados ou em risco de exclusão;

- promoção de programas destinados a favorecer a quebra de barreiras arquitectónicas, bem como programas de viagens para cidadãos com deficiência.

Um último desafio para citar Albert Camus, Nobel da literatura que, nos anos 50, proclamou que “o conformismo é o problema mais sério que se põe aos espíritos contemporâneos”.

O conformismo é um problema de todos os tempos, a que o nosso não escapa, não tendo sofrido emendas de vulto com as longas experiências do exercício do poder nas democracias ocidentais e o amadurecimento das sociedades contemporâneas.

Refiro e sublinho o conformismo porque é uma praga que está nas antípodas da cidadania e cria as condições para a eliminação das condições do exercício da liberdade, abrindo o caminho à tirania.

Nada interessa menos aos que se batem pelo progresso das economias e das sociedades de cada país e da União Europeia, em liberdade e democracia, do que o conformismo e todos os momentos são indicados para o combater pelo que vos peço que aceitem com benevolência o lado inconformista das nossas ideias e experiências.

Obrigado pela vossa atenção.

Lisboa, 25 de Janeiro de 2002.

O Presidente do INATEL

(Eduardo Graça)

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[1] Como o faz "Les Différentes notions du tourisme social:L'évolution de l'offre et de la demande" estudo da Direction Génerale XXIII Unité Tourisme, Comission des Communautés Européennes, 1993
[2] As Casas Familiares, promovidas no final do séc. XIX em Inglaterra pelos Sindicatos.
[3] British Alpine Club (1857), Club Alpin Italien (1863), Club Alpin Autrichien (1862), Club Alpin Français (1874), "Touring Club Cycliste Italien" (1894), l'Association Viennoise des Amis de la Nature (1865).
[4] Albergues da Juventude na Alemanha (1900), escotismo em Inglaterra depois de 1905 e, na mesma época, as colónias de férias na Suíça e na França.
[5] Organização Mundial do Turismo.

Friday, March 24, 2006

ABANDONO ESCOLAR

UE/Cimeira: Abandono escolar é o fenómeno mais deprimente em Portugal – Sócrates

Bruxelas, 24 Mar (Lusa) – O primeiro-ministro de Portugal, José Sócrates, afirmou hoje, em Bruxelas, que o elevado abandono escolar em Portugal constitui o "fenómeno mais deprimente e negativo", uma causa do atraso estrutural do país.

"Não há dúvida que o insucesso escolar é talvez o fenómeno mais deprimente, mais negativo que causa um atraso estrutural a Portugal e condiciona o nosso desenvolvimento", admitiu o chefe do Governo português.

Os chefes de Estado e de Governo, reunidos em Bruxelas, instaram hoje os Estados-membros a intensificar os esforços para reduzirem o abandono escolar para 10 por cento e assegurar que pelo menos 85 por cento dos jovens com 22 anos tenham concluído o último ciclo do ensino secundário em 2010.

Portugal é o país da União Europeia com a taxa mais elevada de abandono escolar (41,1 por cento), mais do dobro da média comunitária (18,1 por cento), segundo dados de 2005.

Por isso, Sócrates considerou esta meta, traçada no âmbito da Estratégia de Lisboa, "muito ambiciosa para Portugal", mas não deixa de ser mobilizadora.

"Temos que fazer mais que os outros, é verdade, mas sempre tivemos consciência de que temos que correr mais depressa justamente porque partimos mais de trás", acrescentou o chefe de Governo.

"É uma meta muito ambiciosa, em particular para um país como Portugal mas essa meta deve ser assumida como um incentivo e funcionar como um estímulo", salientou ainda.

Os líderes consideraram também "urgente melhorar a situação dos jovens no mercado de trabalho e reduzir significativamente o desemprego entre a juventude" para que, até ao final de 2007, seja oferecido um emprego, formação complementar ou outras medidas a todos os jovens que saiam da escola e estejam desempregados, de modo a favorecer a empregabilidade, no prazo de seis meses e, até 2010, num limite máximo de 100 dias.

Sócrates considerou a medida uma prioridade para o cumprimento das metas da Estratégia de Lisboa, que visa tornar a Europa na economia mais competitiva do Mundo baseada no conhecimento.

TC.

Friday, March 03, 2006

LIBERDADE

“Liberdade, liberdade, tem cuidado que te matam.”
Jorge de Sena

Julgava eu que a questão da liberdade era uma questão esclarecida – senão adquirida e inegociável – nas chancelarias e nas opiniões públicas ocidentais. Afinal parece que não é! A liberdade é, pasme-se, uma alínea na agenda dos políticos ocidentais que carecem de sobre ela se debruçar, opinar, duvidar, relativizar …

O movimento radical islâmico que, a propósito da chamada “crise dos cartoons”, desencadeou uma onda de violência, aparentemente programada, preenchendo os horários nobres das televisões e as primeiras páginas dos jornais, trouxe consigo uma pequena vantagem: colocou no primeiro plano da actualidade a discussão da liberdade.

Trata-se da subida à ribalta, como se fora uma novidade, da questão em torno da qual sempre se jogou, nos tempos modernos, o modelo de sociedade, a sorte da paz e o próprio futuro do sonho da construção da União Europeia. Em torno do debate acerca da liberdade perfilam-se as questões da justiça, da dignidade do homem e da honra das nações.

Face ao dilema da escolha que, historicamente, sempre se colocou à consciência dos dirigentes políticos ocidentais, com verdadeira formação democrática, entre a justiça e a liberdade, é fácil cair na tentação de relativizar ou sacrificar a liberdade.

Albert Camus escreveu, no período pós 2ª guerra mundial, algo que sintetiza, com clareza, o alcance deste dilema:

"Se me parecia necessário defender a conciliação entre a justiça e a liberdade, era porque aí residia em meu entender a última esperança do Ocidente. Mas essa conciliação apenas pode efectivar-se num certo clima que hoje é praticamente utópico. Será preciso sacrificar um ou outro destes valores? Que devemos pensar, neste caso? (...) Finalmente, escolho a liberdade. Pois que, mesmo se a justiça não for realizada, a liberdade preserva o poder de protesto contra a injustiça e salva a comunidade..."

Não se trata, pois, de defender um valor abstracto que nos descanse a consciência social ou nos salvaguarde de longínquas ameaças para a paz advindas de um qualquer fanatismo religioso ou ideológico. Trata-se de defender a liberdade como um valor em si mesmo essencial à própria dignidade da vida nas sociedades democráticas tal como as concebemos com os seus vícios e as suas virtudes.

Por mim, sem prejuízo, de todos os apelos acerca das virtualidades do papel da justiça nas sociedades que, em particular, a chamada “esquerda intelectual” gosta de valorizar, sou defensor do primado da liberdade.

Liberdade de expressão do pensamento, liberdade de imprensa, liberdade religiosa, liberdade de comércio, ou seja, liberdade sempre, contra todas as tiranias mesmo as que se encobrem nos pequenos gestos em defesa das limitações à liberdade para a salvar dos pretensos exageros do seu exercício!

É que os inimigos da liberdade estão dentro das nossas fronteiras, têm rosto e nome, frequentam os nossos partidos, igrejas, corporações, a nossa sociedade, ocupam o espaço público, a mais das vezes, encobertos nas vestes pudicas e seráficas de democratas, beatos, publicistas, comentadores, defensores da justiça e da ordem, assistindo, embora, impávidos ao crescimento da xenofobia, do racismo e da arruaça populista.

O que me preocupa, tanto como o alastramento do radicalismo islâmico, é o facto da relativização do valor da liberdade, venha de onde vier, da esquerda ou da direita, de laicos ou de crentes, do ocidente ou do oriente, poder ser o fermento no qual medre, no mundo ocidental, a ascensão da influência social e política dos verdadeiros inimigos da liberdade. E um dia, como a história ensina, pode ser tarde!

(Artigo publicado na edição de hoje, 3 de Março de 2006, do "Semanário Económico").

Wednesday, March 01, 2006

ÁCIDOS E ÓXIDOS

É uma coisa estranha este verão
E no entanto ia jurar que estive aqui
Não me dói nada, não. A tia como está?
Claro que vale a pena, por que não?
Sim, sou eu, devo sem dúvida ser eu
Podem contar comigo, eu tenho uma doutrina
Não é bonito o mar, as ondas, tudo isto?
Até já soube formas de o dizer de outra maneira
Há coisas importantes, umas mais que outras
Basta limpar os pés alheios à entrada
e só mandarmos nós neste templo de nada
E o orgulho é a nossa verdadeira casa
Nesta altura do ano quando o vento sopra
sobre os nossos dias, sabes quem gostava de ser?
Não, cargos ou honras não. Um simples gato ao sol,
talvez uma maneira ou um sentido para as coisas

Ó dias encobertos de verão no meu país perdido
mais certos do que o sol consumido nos charcos no inverno,
estas ou outras formas de morrermos dia a dia
como quem cumpre escrupulosamente o seu horário de trabalho
Não eras tu, nem isto, nem aqui. Mas está bem,
estou pelos ajustes porque sei que não há mais
Pode ser que me engane, pode ser que seja eu
e no entanto estou de pé, rebolo-me no sol,
sou filho desta terra e vou fazendo anos
pois não se pode estar sem fazer nada
Curriculum atestado testemunho opinião...
que importa, se o verão mesmo é uma certa estação?
Escolhe inscreve-te pertence, não concordas
que há cores mais bonitas do que outras?
Sou homem de palavra e hei-de cumprir tudo
hão-de encontrar coerência em cada gesto meu
Ser isto e não aquilo, amar perdidamente
alguém alguma coisa as cláusulas do pacto
Isto ou aquilo, ou ele ou eu, sem mais hesitações
Estar aqui no verão não é tomar uma atitude?
A mínima palavra não será como prestar
em certo tipo de papel qualquer declaração?
Há fórmulas, bem sei, e é preciso respeitá-las
como o gato que cumpre o seu devido sol
São horas, vamos lá, sorri, já as primeiras chuvas
levam ou lavam corpos caras
Sabemos que podemos bem contar contigo em tudo
Amanhã, neste lugar, sob este sol
e de aqui a um ano? Combinado
Não achas que a esplanada é uma pequena pátria
a que somos fiéis? Sentamo-nos aqui como quem nasce

Será verdade que não tens ninguém?
Onde é o teu refúgio, ó sítio de silêncio
e sofrimento indivisível? É necessário
Vais assim. Falam de ti e ficas nas palavras
fixo, imóvel, dito para sempre, reduzido
a um número. Curriculum cadastro vizinhança
Acreditas no verão? Terás licença? Diz-me:
seria isto, nada mais que isto?
Tens um nome, bem sei. Se é ele que te reduz,
aí é o inferno e não achas saída
Precário, provisório é o teu nome
Lobos de sono atrás de ti nesses dez anos
que nunca conseguiste e muito menos hoje
Espingardas e uivos e regressos, um regaço
redondo - o único verdadeiro espaço, o
sabor de não estar só, natal antigo,
o sol de inverno sobre as águas, tudo novo,
a inspecção minuciosa de pauis, de cômoros, marachas
Viste noites e dias, estações, partidas
E tão terrível tudo, porque tudo
trazia no princípio o fim de tudo
A morte é a promessa: estar todo num lugar,
permanecer na transparência rápida do ser
E perguntar será para ti responder

Simples questão de tempo és e a certas circunstâncias de lugar
circunscreves o corpo. Sentas-te, levantas-te
e o sol bate por vezes nessa fronte aonde o pensamento
- que ao dominar-te deixa que domines - mora
Estás e nunca estás e o vento vem e vergas
e há também a chuva e por vezes molhas-te,
aceitas servidões quotidianas, vais de aqui para ali,
animas-te, esmoreces, há os outros, morres
Mas quando foi? Aonde te doía? Dividias-te
entre o fim do verão e a renda da casa
Que fica dos teus passos dados e perdidos?
Horário de trabalho, uma família, o telefone, a carta,
o riso que resulta de seres vítima de olhares
Que resto dás? Ou porventura deixas algum rasto?
E assim e assado sofro tanto tempo gasto

Ruy Belo

Tempo Duvidoso

In Boca Bilingue, “Todos os Poemas-I”
Assírio & Alvim