Wednesday, September 26, 2007

EUROPA: CULTURAS E CIVILIZAÇÃO NO MUNDO GLOBALIZADO

Confesso ter ficado surpreendido com o amável convite que a Senhora Ministra da Cultura me formulou para intervir nesta sessão, dando-me total liberdade para vos falar um pouco da minha visão do papel da Europa e das dimensões culturais europeias no mundo globalizado

Eu sou um simples técnico de relações internacionais, habituado a transportar para o quotidiano da minha acção aquilo que são os interesses portugueses, procurando fazê-los vingar no contraponto com os dos outros ou construindo pontes para a sua harmonização.

Noutras funções, tive a Europa, durante alguns anos, no meu horizonte diário de preocupações. Nessas tarefas, pude sentir a diversidade das perspectivas interiores sobre o modelo comum em mudança e, simultaneamente, pude atentar melhor na forma como o mundo exterior ia olhando o continente e o seu projecto político.

É talvez no cruzamento destes diferentes papéis, e das lições que deles possa ter tirado, que eu encontro uma justificação mais plausível para esta minha presença, hoje, perante vós.

Por isso, peço que não estranhem se o tom destas minhas palavras sair um pouco do “mainstream” deste debate e tente entrar por outros domínios que apenas se interligam comos aspectos culturais, vício a que um diplomata não escapa…

Estou aqui também como um português de uma geração que, tal como aconteceu com alguns de vós, teve o trágico privilégio histórico de viver num tempo de transição. Com efeito, experimentei já como adulto um ambiente de ditadura cuja principal perfídia foi conseguir adiar-nos decisivamente o futuro. E, tal como vós, vivo hoje numa democracia para cuja consolidação a Europa teve e tem um papel decisivo.

Na minha juventude, atravessar os Pirinéus era “ir à Europa”. A Europa era então uma entidade algo mítica, situada para lá de uma Espanha que éramos educados a desconhecer. Era um continente de que muitos de nós nos sentíamos sentimentalmente próximos, onde parte do meu país tinha já então ido à procura do seu futuro, mas que sabíamos fisicamente muito distante, até pela imperatividade do condicionamento que era imposto ao nosso quotidiano.

Enquanto nação, éramos naturais tributários das seculares culturas europeias, mas o isolamento que então sofríamos, ligado à prevalência no nosso quotidiano de um mito ideológico que assentava num patético imperialismo tardio, projectava-se em toda a nossa educação e tinha como objectivo deliberado afastar-nos da Europa.

A chamada “nação pluricontinental e pluriracial”, com que a ditadura portuguesa disfarçava o seu anacronismo histórico, tinha o projecto europeu como aberto inimigo. Recordo um jornal do regime que anunciava como lema: “Portugal não é um país europeu e tende cada vez mais a sê-lo cada vez menos”. E ainda há dias, a capa de um livro recém-publicado recuperava um mapa dos anos 40 do século passado que projectava Angola, Moçambique e a todas as restantes colónias portuguesas sobre uma carta da Europa, como que a sublinhar que, perante a importante dimensão conjugada desses territórios, na matriz do chamado “Portugal do Minho a Timor”, a Europa, enquanto entidade referencial, deveria ter para nós um peso muito relativo e, subliminarmente, ser vista como dispensável na construção do nosso futuro, que era “ultramarino” por vocação.

Nesse mundo irreal em que vivíamos “orgulhosamente sós”, como dizia Salazar, a Europa era pois o perigo maior, porque trazia em si a sinistra matriz dos direitos fundamentais, da detestada democracia, dos partidos políticos e da panóplia de ideias subversivas que tudo isso parecia comportar.

Para superar esse mundo de cinzenta fantasia, os sinais culturais da contemporaneidade eram a nossa ponte de ligação ao continente, eram a via de saída da “Jangada de Pedra”, que Saramago viria a fantasiar muitos anos mais tarde.

Quero com isto dizer que pertenço a um país e a uma geração que não foram sempre naturalmente europeus. Sendo europeus na raiz histórica, acabámos, na verdade, por apenas conseguir ser europeus contemporâneos pela vontade e, muito em especial, através da cultura.

É que ao contrário de um cidadão alemão, luxemburguês ou italiano, ou de um jovem português de hoje, a minha geração foi obrigada a olhar a Europa de fora para dentro. E é irónico notar que nem mesmo a democracia deixou de ser tocada por este dualismo: o slogan de promoção do apoio que Portugal recebia para entrar nas Comunidades Europeias era “a Europa está connosco”. Continuávamos, assim, a ver-nos fora da Europa, mas agora já com vontade afirmada de lhe pertencer.

Gostava, neste ponto, de vos deixar uma nota ainda mais pessoal. Nesse nosso pequeno mundo de então, e caminhando eu pelo lado esquerdo da vida, foi a cultura que me fez chegar à Europa, ou melhor, foi cultura que me fez ter o raro privilégio de a poder não perder de vista: foram as livrarias da Rive Gauche, os romances torturados da Alemanha do pós-guerra, as músicas dos Beatles e dos Stones nas ondas piratas da “Radio Caroline”, as vozes românticas, de Brel e Bécaud até à Eurovisão ou a San Remo, a imagem desencantada das paisagens áridas do realismo italiano e a produção mágica da geração dos “Cahiers du Cinema”. Além disso, o Maio de 68 trouxe-nos um inesperado remake de uma certa Europa mítica das revoluções na rua e vivíamos, simultaneamente, com a miragem das bolsas de estudo, em Lovaina ou na Suécia, para evitar as guerras coloniais, sentindo como nossos os debates acesos no “Nouvel Observateur” e no “Temps Modernes”. Mas arrastava-se já, saído das ruas de Praga, um pressentimento, ainda difuso, das tragédias que estavam por detrás do chamado socialismo real, de Djilas a Arthur London, de Soljenitzin a Sakharov.

Outros concidadãos meus, da mesma geração, seguiram caminhos diversos, uns mais radicais, outros mais serenos – e, nestes últimos, alguns tocados já pelas angustias do cristianismo crítico. Mas, lá no fundo, estávamos quase todos juntos na vontade de colocar o nosso país de acordo com a sua geografia. E todos acabámos por nos encontrar, numa bela manhã de Abril de 1974, com alguns de nós a ajudar a derrubar com alegria o nosso próprio muro, bem antes do de Berlim.

Por tudo isso, quando a vida profissional me atirou pelo mundo, eu talvez estivesse já mais equipado de que outros para perceber um pouco melhor o que é que a Europa política representava para quem estava fora dela, para quem ansiava juntar-se-lhe e para quem, no mundo, a via como parceiro.

E, nesse percurso, colocaram-se-me sempre duas questões que relevam muito da dimensão cultural que hoje aqui nos reúne.

A primeira é quase existencial: será que nós, os habitantes deste continente, que hoje tem a União Europeia como incontornável centro, temos, de facto, algo culturalmente em comum, identitário, que nos una e que sintamos que nos marca como europeus?

A segunda pergunta é apenas um corolário da primeira, mas prende-se mais directamente com a temática central que aqui me interessa abordar: como nos vêm do exterior? Projectamos uma imagem cultural própria e unívoca? Que expectativas e anseios criamos nos outros?

Como resposta à primeira pergunta – se nos sentimos culturalmente europeus – costuma dar-se o estafado exemplo de que sempre nos sentimos mais europeus quando estamos na América, sem revelarmos que a América dos últimos anos tem dado uma forte e involuntária ajuda a esse mesmo sentimento. Porém, tenho de confessar, eu sinto-me muito mais em casa num café de Buenos Aires ou numa livraria do West Side de Nova Iorque do que ainda me sinto em algumas paragens da Europa geográfica, cujo nome, como dizia Cervantes para um certo lugar da Mancha, no parágrafo de abertura do Dom Quixote, eu prefiro não lembrar.

Eu posso estar errado e, assumindo uma modéstia que é também uma forma da irresponsabilidade de um não especialista, quero dizer-lhes que interpreto o sentido de uma cultura comum como algo que se projecta na forma como partilhamos tradições, crenças, mitos, projecções e modos de vida, valores próprios, alguns até algo contraditórios entre si, mas com uma matriz que identificamos como muito próxima. É algo que decorre de uma sólida e contínua pertença a uma longa história colectiva, mais própria das nações, muitas vezes dos países ou das regiões, do que dos grandes espaços multinacionais.

O que na Europa se detecta, mas não fica delimitado nas suas fronteiras, e que faz com que nos liguemos a Nova Iorque ou a Buenos Aires, são as chamadas “esferas culturais”, são identidades culturais difundidas por camadas ou sectores, que têm menos a ver com a geografia e muito mais com níveis de percepção conjunta de certos sinais, onde quer que se encontre quem os partilha. Embora anterior à globalização, essa é uma realidade que ela potenciou e que, de certo modo, a internet tornou ainda mais evidente.

E daqui decorre a resposta à segunda pergunta, à questão do tipo de olhar que os outros têm sobre nós. Correndo uma vez mais o grande risco de estar a simplificar aquilo que é muito complexo, eu diria que me parece que o mundo está hoje muito longe de percepcionar sinais de uma cultura europeia comum, mas começa seguramente a construir a imagem da progressiva existência de um modelo civilizacional europeu – onde as várias e diversas dimensões culturais do nosso continente se projectam, influenciando-o e sobredeterminando-o.

Acho mesmo que o resto do mundo começa hoje a ter uma certa ideia da Europa que é superior, em nitidez de desenho, àquela que a Europa já tem de si própria. Para utilizar uma categoria de um filósofo alemão que não está na moda citar, eu arriscaria dizer que poderá haver já hoje uma Europa civilizacional “em si”, mas ainda talvez não haja uma civilização europeia “para si”.

Por isso, esse tal olhar exterior, embora detecte uma projecção civilizacional comum, distingue nela, de forma mais ou menos clara, as várias Europas culturais. Nota, em particular, as expressões dos países que mais se afirmam no mercado internacional da cultura, dos poderes de atracção dos seus produtos e conteúdos, bem como a força dos seus meios de suporte comunicacional.

Mas é minha convicção que esse estrangeiro não liga a sua ideia de Europa – seja a Europa em geral, seja a União Europeia em particular – a uma projecção cultural determinada, definida e bem recortada nos seus contornos. E faz bem: a meu ver, se fosse por esse caminho, estaria a sustentar uma falsa caricatura da cultura europeia.

Aliás, esse observador exterior tem cada vez mais razão para sustentar esse olhar multifacetado, por exemplo, quando lhe falam da União Europeia: à medida que a União Europeia se alargou, se legitimou como projecto, se reconciliou historicamente consigo mesma, a Europa tornou-se muito mais diversa culturalmente, muito mais pluralista e rica na variedade das respectivas expressões. A pressão da subsidiariedade, que hoje está politicamente protegida, tende mesmo a forçar a atenção para as comunidades locais, para as regiões, para as tradições minoritárias, para aquilo que se distingue e orgulhosamente resiste à força de um template comum. Basta um exemplo evidente: a Europa é hoje uma Babel saudavelmente incontrolável, por mais que alguns queiram espartilhá-la num quadro linguístico reduzido, feito das ambições de quem tem a ridícula tentação de impor, sob o alibi da eficácia, que a palavra demografia venha a ser sinónimo de democracia.

Mas, como antes já vos disse, há uma coisa que o estrangeiro começa a reconhecer, em especial depois que a Europa política passou a querer ser vista como um benigno soft power: esse estrangeiro vê a emergência no espaço europeu, centrada na União Europeia, de uma vontade comum em tentar afirmar, porventura sem ser capaz ainda de a construir por completo, uma matriz civilizacional específica, que vai já para além do padrão clássico da civilização europeia que as bibliotecas guardam, porque o prolonga em novas e actualizadas dimensões.

E onde é que está essa nova matriz ? Está, por exemplo, no modelo social europeu e na obstinação de alguns em tentar que ele se reconverta para conseguir sobreviver como um modelo de justiça social. Está na saudável teimosia de muitos para quem o secularismo continua a ser a imagem de marca da nossa modernidade. Está nos esforços para afirmar o multilateralismo como único eixo legítimo de uma ordem internacional baseada na busca incessante da paz e da justiça, sob a tutela do Direito Internacional, tendo o recurso ao diálogo, à diplomacia e à solidariedade como instrumentos de trabalho. E o mundo vê também os europeus preocupados com as causas colectivas de progresso, como a defesa ambiental, a protecção da biodiversidade e a luta contra as alterações climáticas, pelo fim da pena de morte e pelo combate contra a exploração infantil e das mulheres, contra o tráfico de seres humanos, entre tantas e tantas outras causas que a consciência universal contemporânea elege como prioridades de uma nova ordem ética internacional. Vê também o esforço de muitos, na Europa, em procurar garantir que a necessária luta contra as ameaças radicais, como o terrorismo e outras formas de extremismo, se faça sempre sob a égide da preservação dos Direitos Humanos e dos direitos fundamentais, no respeito pelas minorias e pelas crenças, na preocupação de entender as causas desse radicalismo e algumas determinantes regionais que o potenciam.

A agenda europeia de preocupações, como a que se expressa num fórum como são as Nações Unidas, comporta hoje um impressionante inventário de ideias que procuram responder aos anseios mais nobres da Humanidade, cada vez mais empenhada em alargar as “boas práticas” ao colectivo.

Alguns dirão que ainda estamos no terreno declaratório do “politicamente correcto”, da mera rightousness ideológica e desculpabilizante, e que, no final de contas, tudo isso tem um sentido muito mais formal do que prático. Concedo que possa ser assim em alguns casos, mas, pelo menos, a nova civilização europeia terá já escapado muito à hipocrisia dos cultores e admiradores da lógica de poder, que é hoje um desvio perverso da leitura correcta de um filósofo como Hobbes. A maioria da Europa – infelizmente não toda, como sabemos – tem tido a decência de não se deixar alinhar pelo pragmatismo neoconservador, presente numa deriva oportunista própria de quem vive ao sabor dos ventos prevalecentes, e que tem como objectivo ajudar a conferir uma patine de respeitabilidade ideológica a uma mera e cínica realpolitik unilateralista.

Porque este somatório de preocupações humanistas da Europa contemporânea é fruto de um árduo e negociado processo de entendimento e não de qualquer iluminação nacionalista, eu diria que a principal imagem que a nova civilização europeia hoje projecta, para além de um sentido de tolerância e de diálogo, é a de um apurado culto da liberdade. Talvez porque a perdeu durante muito tempo, de diversas formas e sob diversos terrores, a Europa apresenta-se hoje perante o mundo como o grande cultor e promotor dessa mesma liberdade.

Eu tenho de confessar que, como português e como europeu, entendo dever sentir orgulho em pertencer a um continente que, por cima de todas as suas imensas contradições, tem hoje o culto da liberdade no centro da sua matriz identitária, preocupa-se com a sua preservação à outrance, discute os seus necessários limites sempre sob um feroz juízo de ética, com opiniões públicas que controlam a deriva acrítica para as soluções assumidas pelos poderes políticos. Recordaria apenas o caso dos cartoons de Maomé para sublinhar como as sociedades europeias mostraram estar alerta, recusando, simultaneamente, o facilitismo da realpolitik e o temor reverencial face às tentativas de policiamento ideológico.

Alguns de vós, mais cépticos e talvez bastante realistas, devem estar a perguntar-se se não estarei a ser muito ingénuo: onde está esse culto às liberdades nas ruas de uma cidade como Minsk? E nos embaraçantes silêncios face à Chechénia? Porque deixaram os europeus morrer esse culto às portas de Srebrenika? Onde é que ele fica, perante os atentados através dos quais alguns poderes políticos, no espaço geográfico europeu, continuam a condicionar os “media” e as expressões das sociedade civil, restringem a liberdade das Organizações Não-Governamentais, fecham os olhos à propagação dos ódios étnicos seculares, aceitam, com uma triste complacência, os ataques a minorias que não dispõem de “back-up” nacionalista, como é o caso dos ciganos? Afinal, quais são as fronteiras dessa Europa ética e a que geografia europeia correspondem? E que podemos dizer a quem vê por aí crescer partidos políticos xenófobos,os quais, discretamente, afloram ao poder em democracias que nos habituámos a ter como sólidas e respeitáveis, sob o alibi da pluralidade democrática e a ausência de memória histórica?

É que essa é também a Europa para a qual o mundo exterior olha e cuja existência não pode deixar de abalar a sua crença na solidez e na coerência da primeira, daquela Europa dos princípios de que antes vos falei.

Mas, eles como nós, todos temos que perceber que a Europa é isso mesmo. Ela projectará sempre, de si própria, uma imagem confusa, frequentemente contraditória, uma ideia de permanente e endémica crise. Como disse um autor português do sec. XIX, que a Senhora Ministra da Cultura conhece como ninguém, Eça de Queirós, “a crise é a condição quase regular da Europa”. Talvez que essa dialéctica interna, saldo de sofrimentos e de êxitos, esse ar de “casa em obras” contínuas, seja porventura o segredo da vitalidade europeia que o mundo não deixa de apreciar em nós e, em especial, de contrastar muito positivamente com outras expressões de poder que hoje se afirmam à escala mundial. A Europa contemporânea tem os seus “buracos negros” civilizacionais, mas o debate sobre essas expressões negativas faz-se hoje de forma aberta e sempre tutelada por um referencial ético que já marca as suas instituições.

E, neste campo, vale a pena fazer um parêntisis para notar quanto seria desejável que a Europa pudesse ter uma Carta dos Direitos Fundamentais vinculativa, sem ninguém poder dar-se ao luxo de saltar para fora dela, por um critério negativo de subsidiariedade, furtando-se a ter o Tribunal Europeu como último juíz. Embora respeitando as ideosincrasias nacionais, que são, em si mesmas, uma prova da diversidade europeia, não posso deixar de considerar como muito triste que a Carta dos Direitos Fundamentais acabe por vir a ter, para uns, o mesmo carácter facultativo que o Tribunal Penal Internacional tem hoje para outros. Mas isso já seria motivo para outra palestra...

Voltando ao que vos estava a dizer, gostaria também de sublinhar que, para o seu exterior, a Europa não é apenas um objecto contemplativo: a Europa é um actor e um produtor de uma multiplicidade de sinais de cultura, que acabam por interagir com a própria realidade de quem está de fora dela. E a Europa sabe bem que, desde sempre, influencia, condiciona e até limita as expressões culturais dos outros.

Daí a questão de sabermos – nós, europeus – o que fazer com a força dessa nossa projecção e até onde, e em que medida, temos, ou não, legitimidade para actuar de forma pró-activa perante terceiros. Em especial, evitando que isso signifique ou seja lido, muito simplesmente, como um mero voluntarismo preselitista, uma espécie de recolonização pelos valores, à luz de um juízo, também assumido ou não, sobre a superioridade desses mesmos valores. É que o orgulho nos princípios pode ser, se levado ao extremo, uma deletéria forma de insuportável arrogância.

Esta questão pode parecer deslocada e sem sentido, num mundo de intensas interacções culturais como aquele em que hoje vivemos. Mas não o é, especialmente tratando-se das culturas dos países da Europa.

Não sendo cómodo estar a recordar isto, e prestando-se esta temática a óbvias polémicas, não posso deixar de notar que muitos países e regiões do mundo vivem ainda, no seu paradigma histórico-cultural, com uma memória algo traumática relativamente àquilo que foi a presença agressiva das culturas europeias, quer na sua imposição forçada, que muitas vezes passou pela anulação ou desprezo pelas expressões culturais locais, quer nas acções de pilhagem da sua memória patrimonial, que as vitrines dos museus europeus evidenciam à saciedade. Eu sei que este é um debate incómodo e que tem fóruns próprios para ser feito – mas afloro-o hoje aqui porque, por razões várias, ele acaba por renascer sempre que os contrastes entre civilizações emergem no horizonte da polémica, como actualmente está a ocorrer.

É nunca perdendo de vista este incontornável pano de fundo histórico que nós, europeus, sem complexos mas com respeito, devemos situar a nossa reflexão colectiva interna sobre o que fazer e como actuar culturalmente perante terceiros, seja no plano bilateral, seja através das nossas instâncias europeias comuns.

E termino com algumas com curtas reflexões derivadas da minha visão do papel da Europa no mundo, à luz de “duas ou três coisas que eu sei dela”, como diria Jean-Luc Godard. Não são novidades, não quero parecer estar, como se diz no meu país, a tentar “descobrir a pólvora”, mas pretendo-as reafirmar como constatações que se afiguram de mero bom-senso político.

A primeira prende-se com a necessidade de garantir que a dimensão cultural venha a estar presente em todos os quadros europeus de relações externas e de cooperação para o desenvolvimento, sejam eles multilaterais, sejam de natureza bilateral. É essencial que, a exemplo do que hoje se passa com as questões ambientais, que acabam por marcar quaisquer intervenções de natureza económica, a dimensão cultural atravesse todas as políticas europeias com repercussão externa. A cultura tem de ser a alma por detrás das políticas da Europa. Uma intervenção friamente tecnocrática, por mais bem intencionada que se apresente, tem uma capacidade de sobrevivência e uma eficácia no tempo e na memória colectiva muito limitada. Tal como acontece com as relações humanas, as relações externas são mecanismos criados com o objectivo de ajudar a tecer redes de solidariedades e de cumplicidades, uma forma de se identificarem pontos comuns, de se gizarem formas conjuntas de colaboração, com vista a potenciar a vontade de trabalhar futuramente também em conjunto. Ter a cultura no posto de comando das relações externas é apenas uma ideia da mais óbvia racionalidade. Se necessitássemos de um exemplo, pela negativa, bastaria olharmos para as lições a tirar do que se passa no Iraque.

A segunda linha liga-se à necessidade de intensificação do intercâmbio cultural, ao potenciar do conhecimento mútuo, ao esforço – que deve ser quase obsessivo – pela promoção no nosso próprio seio, da diversidade alheia, pelo trabalho incessante de compreensão do outro. Quanto mais nos abrirmos a expressões culturais que, à partida, nos sejam estranhas, mais enriquecidas passam a ficar as nossas próprias culturas, mais abertos ficam os espíritos dos nossos concidadãos, menos eurocêntrico fica o nosso olhar sobre o mundo. E talvez isso contribua para que fiquemos também mais tolerantes dentro da própria Europa, aceitando-nos melhor uns aos outros, às nossas múltiplas religiões, aos nossos mitos e às nossas idiossincrasias.

E, finalmente, adianto uma última linha, que pode parecer algo radical – e é: no meu entender, a Europa só pode prestigiar-se perante terceiros quando se revelar, aberta e radicalmente, intolerante contra a intolerância. Eu sei que este conceito tem sido alvos de aproximações não tão lineares, e Norberto Bobbio tratou-o já com alguma atenção. Mas a experiência recente parece recomendar que a Europa – e a Europa política tem aqui um papel fundamental – deva demonstrar uma disposição inquebrantável perante todas as manifestações que, no seu seio e fora dele, relevem do desprezo ou da menorização por quaisquer expressões culturais, por mais minoritárias que elas sejam. Em especial, devemos estar vigilantes quanto à acção os polícias do espírito que avaliam os desvios do modelo-padrão que, no passado e para muitos, caracterizava uma certa imagem da civilização dita ocidental, que nos habituámos a ter no centro do nosso mundo e a impor no mundo dos outros. Temos de derrotar os nossos próprios fantasmas e algumas vestais que ainda os representam, como aqueles que afirmam a superioridade da Europa cristã e se obstinam na criação de uma fortaleza política em seu torno. Este é um combate em que está em causa a nossa própria credibilidade e a nossa legitimidade como fonte de afirmação cultural e civilizacional. O combate para que a palavra Europa passe, definitivamente, aos olhos do mundo, a ser vista como sinónimo da palavra liberdade.

Muito obrigado pela vossa atenção e pela vossa paciência.

Intervenção do Embaixador Francisco Seixas da Costa na Sessão de abertura do Fórum Cultural para a Europa proferida, em Lisboa - Centro Cultural de Belém - 26 de Setembro de 2007

Friday, September 07, 2007

APETECIA-ME ESCREVER ...

"Quando se meditou muito sobre o homem, por ofício ou vocação, acontece-nos sentirmos nostalgia dos primatas. Esses ao menos não têm segundas intenções."

Albert Camus

Apetecia-me escrever acerca das relações entre a idiossincrasia dos povos e o mercado; entre a opressão e a criatividade; entre os regimes políticos e a economia; entre a liberdade e a justiça social. Apetecia-me descrever uma visita de férias a Cuba, incensar o seu belo povo, mais as suas conquistas sociais menos a falta de liberdade.

Apetecia-me escrever acerca de falências e taxas de juro, “modelos de governação” e “mercados de risco”, compras e vendas, salários e desemprego. Apetecia-me transcrever o poema “Uma sepultura em Londres”, de Jorge de Sena e a nota em que ele diz que, em 1969, “não podia anotar-se, para notícia dos distraídos, que esta sepultura era obviamente a de Karl Marx”. Estranho não é? Estávamos no tempo da ditadura.

Apetecia-me escrever, à saída de férias, acerca do clima. Das inundações nos países ricos e nos países pobres. De terramotos. De incêndios. De calamidades naturais, suas origens e trágicas consequências, que não escolhem nem os hemisférios nem os indicadores de desenvolvimento sócio económico dos países. Será o “desenvolvimento sustentável” levado a sério na agenda do futuro G8/13?

Apetecia-me escrever acerca da guerra do Iraque e da “tocata e fuga", ou “fuga sem tocata”, do quarteto dos Açores. Das mentiras planetárias inventadas para a justificar. Dos políticos vulgares que esquecem as promessas, mentem e se contorcem ao sabor das quotas de popularidade, fazendo do verbo omitir a sua religião de todos os dias. Sou dos que ainda acreditam que na política, a”boa moeda” haverá de expulsar a “má moeda”. Imaginem!

Apetecia-me escrever que uma das medidas que, em breve, deverá obter consagração legal, no âmbito da reestruturação do Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social (MTSS) é a que transformará o INATEL em “fundação de direito privado e utilidade pública”, consagrada no PRACE (“Programa para a Reestruturação da Administração Central do Estado”) da seguinte forma:

“Deixa de integrar o MTSS saindo da Administração Central do Estado: O Instituto Nacional para Aproveitamento dos Tempos Livres dos Trabalhadores, I. P. – INATEL, sob a forma de fundação de direito privado e utilidade pública.”

Apetecia-me escrever que esta reforma está atrasada uns sete anos, uma minudência, e, desculpem a imodéstia, tem direitos de autor pois foi elaborada, do princípio ao fim, com detalhe técnico e consenso com os parceiros sociais, no tempo em que eu próprio era presidente daquela instituição da qual saí vai para cinco anos.

Apetecia-me escrever, com detalhe, acerca do caso em apreço, que é somente um entre muitos que mostram como as reformas da administração pública, em Portugal, sempre se atrasam, prisioneiras de preconceitos ancestrais e cinismos beatos, e ai daqueles que as quiserem prontas, em tempo útil, que o Estado estrebucha, os privados salivam e o povo geme.

[Artigo publicado na edição de hoje do "Semanário Económico".]

*

Nota acerca do artigo “Apetecia-me escrever …”

O artigo que hoje dei à estampa no “Semanário Económico” merece, ao contrário do que tem sido hábito, uma nota complementar no que respeita às referências à reforma do INATEL.

1 – Não é a primeira vez que faço alusão pública a este tema o que decorre, naturalmente, da minha ligação de sete anos à gestão daquela organização.

2- Neste blog podem ser consultados diversos posts dedicados ao assunto, em particular, uma
“Entrevista ao "SE" (publicada em 31/01/2003)” e os artigos intitulados: “Há silêncios que não podem ser eternos”; “O SEU A SEU DONO” e “A VERDADE DE UMA REFORMA”;

3 – No que concerne às questões de gestão da organização que dirigi durante sete anos, não seria justo, nem proporcional, exigir o meu silêncio. Por isso escrevi o que escrevi, ao longo do tempo, e volto a escrever agora acerca da iminente reforma estatutária do INATEL. Mais tarde voltarei ao assunto mas por outras razões.

4 - Convém ressalvar que, apesar de não conhecer a formulação final desta reforma, caso se mantenha a filosofia que emana do item que integra o PRACE e que cito no artigo, ora publicado, estarei, certamente, de acordo com as suas grandes linhas que não podem deixar de ser aquelas que eu, e a equipa que me acompanhou, a seu tempo, formulamos.

5 – Por último uma palavra para esclarecer que nada me move, nem politica, nem pessoalmente, contra o actual ministro da tutela – José António Vieira da Silva – o que, para quem conheça a história política da esquerda, no passado recente, em Portugal, é uma evidência que dispensa demonstração. Nem as críticas podem ser guardadas, em exclusivo, para os nossos adversários políticos, nem as concordâncias, guardadas, em exclusivo, para os nossos amigos.

6 - No caso em apreço, quando me pronuncio acerca do INATEL e, em particular, acerca da reforma dos seus estatutos, não tenho em mente senão bater-me pela justiça, o que inclui não deixar cair no esquecimento o papel daqueles que, no passado, se bateram pela sua concretização entre os quais eu próprio me incluo. Tenho a certeza que, nesse particular, nada me separa daqueles que, no governo socialista, ou fora dele, avaliam o valor da reforma de uma instituição pública não só de um ponto de vista funcional como também, e primordialmente, do ponto de vista institucional e de solidariedade social.