Thursday, March 31, 2005

"UMA LÂMPADA DE SALA QUE ILUMINE A TODOS"

“Aprendemos que, em política, a arte maior é a de exigir a lua não para tê-la ou ficar numa fúria por não tê-la mas como ponto de partida para ganhar-se, do compromisso, uma lâmpada de sala que ilumine a todos."

Jorge de Sena

No passado dia 20 de Fevereiro os portugueses viram-se livres de um pesadelo. O governo de direita (ou, melhor dito, “das direitas”) cessou funções.

Não uso palavras pesadas demais. Tenho até a percepção de que são pesadas de menos. Tenho ouvido, visto e sentido, por toda a parte, gente abandonada e ressentida, à beira da ruína, da marginalidade e do desespero, com fome e sem trabalho, humilhada e ofendida, sem futuro e sem esperança. Não só no mundo do trabalho como também no mundo dos negócios.

O pesadelo resultou de muitos e variados factores mas, entre eles, avulta o facto de o governo anterior ter sido “sequestrado” por um partido extremista minoritário que ostentou um nome, um chefe e um ideólogo. O nome: CDS/PP; o chefe: Paulo Portas; o ideólogo: Bagão Félix.

Aliás a vocação totalitária do CDS/PP, de Paulo Portas/Bagão Félix, é bem evidenciada pelos ataques a Freitas do Amaral e pelo recente episódio do retrato devolvido. Só os partidos totalitários suprimem a figura dos seus pais fundadores. O episódio, aparentemente irrelevante, tem um significado profundo: mostra à evidência que Portugal foi governado por uma coligação que integrava um partido com uma ideologia totalitária.

As consequências desse facto, para o país, foram desastrosas. Em reforço destas preocupações o PPE, partido europeu em que se integra o PSD, de Durão Barroso, prepara-se para expulsar Freitas do Amaral. A UE que se cuide.

A direita portuguesa, em si mesma, não será nunca um pesadelo se for uma direita moderna, aberta ao diálogo social, liberal, europeísta e empenhada na defesa dos valores da dignidade humana, da democracia e da liberdade. Mas não foi o caso. A direita que ocupou o poder político, nos últimos três anos, abdicou desses valores em favor de uma deriva nacional/populista.

Paulo Portas, Santana Lopes, Bagão Félix e José Manuel Barroso, foram (e são) os protagonistas do exercício de um modelo de poder que se não recomenda num país membro de pleno direito da UE. É salutar que ninguém o esqueça como lição para o futuro.

Eles foram os responsáveis pela aplicação de um conjunto de medidas avulsas, ao arrepio do programa político do PSD, que lançou o país e os portugueses na descrença e humilhou a imagem de Portugal na Europa e no mundo. Desde o “discurso da tanga” à “pesada herança”, desde a “fuga” de Durão Barroso às trapalhadas de Santana, desde a encenação de “homem de estado” de Portas à dissimulação beatífica de Bagão.

Eles não cuidaram, afinal, de assegurar o equilíbrio das contas públicas e desbarataram parte substancial do património nacional. Eles alargaram o fosso entre os mais ricos e os mais pobres, sem contrapartidas no desenvolvimento estrutural da economia.

Eles não combateram a corrupção antes deixaram medrar a promiscuidade entre os interesses privados e o interesse público.

Eles favoreceram e fomentaram o julgamento sumário de dirigentes políticos da oposição e da administração pública, através de autênticos autos de fé, queimando na praça pública, através de relações promiscuas com uma parte da comunicação social, o bom nome de centenas de cidadãos honestos.

Eles distribuíram milhares de lugares de chefia da administração do estado pelos dirigentes mais obscuros das estruturas nacionais, regionais e locais dos seus partidos a coberto do combate aos designados “jobs for the boys”.

Eles lançaram o caos na administração da coisa pública e depreciaram a nobreza da verdadeira política fazendo-a descer ao nível da conversa de café e da zaragata entre comadres desavindas.

Eles encenaram, sem vergonha, uma espécie de revisitação, adornada de folguedos pós-modernos, do salazarismo. É verdade que muitos dos valores ainda dominantes na nossa sociedade são herança de um passado que fomentou o medo, a resignação e a cobardia cívica, a subserviência e a dependência absolutas face aos poderes político e económico.

A ditadura obrigava a que os portugueses “fechassem a boca”, suprimindo o “espaço público”, em nome da ordem e dos bons costumes e uma ínfima nomenclatura de poderosos ditava as leis em nome da defesa de um Portugal “uno e indivisível do Minho a Timor”.

Mas é triste ter de reconhecer que, nos últimos três anos, o país viveu paredes meias com o regresso a essa “normalidade” em que, durante 48 anos, o medo, o terror e a intriga imperaram suprimindo a democracia ou usando-a, quanto muito, como um meio para adulterar a sua própria essência.

Finalmente o povo foi chamado às urnas e ditou o fim do pesadelo. Haja Deus!

Assim os novos governantes sejam dignos da confiança que o povo neles depositou pois Portugal precisa de um bom governo.

A essência da política que o novo governo socialista deve aplicar é simples: restituir a decência à vida pública, actuar com bom senso e ambição, olhar pelo equilíbrio entre os poderes e pela salvaguarda da separação dos mesmos, não esquecer os mais fracos e não espoliar os mais fortes.

Em suma um governo com coragem, que coloque a cobardia no sótão do esquecimento. Um governo que não faça fretes aos poderosos e não pratique a caridade com os mais fracos. Um governo justo e honrado. Que cumpra com as suas promessas e não esqueça a raíz da sua legitimidade: o voto de um povo sequioso de justiça.

Um governo que não vacile perante as corporações. Um governo que não ceda à chantagem dos extremismos, de direita ou de esquerda, nos quais a maioria do povo português se não revê.

Um governo que preze a liberdade e que, como diz o poeta, trabalhe para que se ganhe “do compromisso, uma lâmpada de sala que ilumine a todos."

Artigo publicado hoje, 1 de Abril de 2005, no "Semanário Económico".

Sunday, March 27, 2005

"O Corvo" de Edgar Allan Poe

Tradução de Fernando Pessoa

1
Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de algúem que batia levemente a meus umbrais.
"Uma visita", eu me disse, "está batendo a meus umbrais.
É só isto, e nada mais."

2
Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro,
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu qu'ria a madrugada, toda a noite aos livros dada
P'ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais
- Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,
Mas sem nome aqui jamais!

3
Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundido força, eu ia repetindo,
"É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.
É só isto, e nada mais".

4
E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,
"Senhor", eu disse, "ou senhora, decerto me desculpais;
Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,
Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,
Que mal ouvi..." E abri largos, franqueando-os, meus umbrais.
Noite, noite e nada mais.

5
A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais
- Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais.
Isso só e nada mais.

6
Para dentro estão volvendo, toda a alma em mim ardendo,
Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.
"Por certo", disse eu, "aquela bulha é na minha janela.
Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais."
Meu coração se distraía pesquisando estes sinais.
"É o vento, e nada mais."

7
Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais,
Foi, pousou, e nada mais.

8
E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
"Tens o aspecto tosquiado", disse eu, "mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais."
Disse o corvo, "Nunca mais".

9
Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,
Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.
Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
Que uma ave tenha tido pousada nos meus umbrais,
Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,
Com o nome "Nunca mais".

10
Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,
Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.
Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento
Perdido, murmurei lento, "Amigo, sonhos - mortais
Todos - todos já se foram. Amanhão também te vais".
Disse o corvo, "Nunca mais".

11
A alma súbito movida por frase tão bem cabida,
"Por certo", disse eu, "são estas vozes usuais,
Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono
Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais,
E o bordão de desesp'rança de seu canto cheio de ais
Era este "Nunca mais".

12
Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,
Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;
E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira
Que qu'ria esta ave agoureira dos maus tempos ancestrais,
Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,
Com aquele "Nunca mais".

13
Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo
À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,
Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando
No veludo onde a luz punha vagas sobras desiguais,
Naquele veludo onde ela, entre as sobras desiguais,
Reclinar-se-á nunca mais!

14
Fez-se então o ar mais denso, como cheio dum incenso
Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.
"Maldito!", a mim disse, "deu-te Deus, por anjos concedeu-te
O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais,
O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".

15
"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus umbrais,
A este luto e este degredo, a esta noite e este segredo,
A esta casa de ância e medo, dize a esta alma a quem atrais
Se há um bálsamo longínquo para esta alma a quem atrais!
Disse o corvo, "Nunca mais".

16
"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais.
Dize a esta alma entristecida se no Édem de outra vida
Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".

17
"Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!", eu disse.
"Parte! Torna à noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!
Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!
Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".

18
E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha cor de um demônio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão há mais e mais,
Libertar-se-á... nunca mais!

Friday, March 25, 2005

Breves Despedidas

Clara Ferreira Alves, in Expresso de 25 de Março de 2005

O anterior Governo despediu-se bem.

Lê-se no «Diário de Notícias» que o ministro Nobre Guedes fez publicar louvores no «Diário da República» a 22 membros do seu gabinete (todos), louvando-os pelas qualidades que qualquer ser humano deve ter num lugar daqueles, ou seja, discrição, competência, diligência, zelo, disponibilidade, dedicação, eficiência, sentido de responsabilidade, capacidade de decisão. 4 assessores, 1 assessor de imprensa (sobrinho do ministro), 3 motoristas, 9 secretárias e 5 adjuntos (5 adjuntos, repito) são todos louvados, incluindo-se no louvor a enorme vontade de aprender, qualidade estimável nestas coisas.

Lê-se no «Público» que o antigo (bela palavra) ministro da Defesa Paulo Portas resolveu ter como último acto público a atribuição de medalhas da Defesa Nacional, criadas pelo Governo de Durão Barroso em 2002 (e ainda dizem que o homem nunca fez nada por Portugal). Curiosamente, o antigo ministro resolveu condecorar o seu antigo (que bela palavra) ministro das Finanças, Bagão Félix (o que só lhe fica bem) e, surpresa das surpresas ou talvez não, deu mais uma medalha ao antigo (que belíssima palavra) embaixador americano em Portugal Frank Carlucci.

O que fez Frank Carlucci por Portugal nos últimos tempos que justifique esta medalha? Ou melhor, o que fez o Grupo Carlyle por Portugal nos últimos tempos que justifique esta medalha (a não ser tratar-nos como uma coutada)? Ou melhor, o que fez o Grupo Carlyle nos últimos tempos por Paulo Portas que justifique esta medalha (perguntar não ofende)? Recorde-se que já Santana Lopes, a mando e em substituição do (defunto) Barroso, tinha aproveitado uma ida a Nova Iorque para, num intervalo discreto, condecorar o mesmo Frank Carlucci (isto foi há meses) com uma daquelas medalhas grandes e pesadas do Presidente da República, tendo o mesmo Presidente da República aceite a sugestão do (defunto) Barroso para condecorar Carlucci. Porquê agora?

Tirando a atitude e o apetite da Carlyle face aos negócios de petróleo da Galp, e o excelente trabalho desenvolvido pela Euroamer e Artur Albarran na detenção de uma funcionária corrupta da Procuradoria-Geral da República (instituição que todos sabemos acima de qualquer suspeita) por causa da suspeita da Euroamer no crime de branqueamento de capitais, suspeita que consta de um recente Relatório da Inspecção-Geral de Finanças, não se vislumbra motivo actual para este desejo desenfreado de dar medalhas (e medalhas grandes) a Frank Carlucci, personagem sinistra quanto baste. Ver, para o efeito, o excelente documentário «CIA, Guerras Secretas», de William Karel (disponível em DVD) onde Carlucci aparece em todo o seu esplendor. Ou consultar a Net sobre a personagem, as suas ligações perigosas, e a sua amizade com os falcões da Casa Branca, incluindo Donald Rumsfeld.

Muito bom jornalismo de investigação (actividade extinta entre nós) se escreveu já sobre este Carlucci, o antigo amigo de Mário Soares (in illo tempore, ou como quem não tem cão caça com gato, ou como a realpolitik existe e Soares encontrou-a) e o «amigo dos portugueses», que está sentado no centro do poder americano, no centro de todos os segredos da política americana, no centro do mundo. E os portugueses, de repente, devem ser o único povo no mundo que resolveu medalhar o homem de seis em seis meses.

Deseja-se ao antigo ministro Paulo Portas uma boa viagem para os Estados-Unidos (se chegar a ir, e se for, que trabalhe e aprenda mais que o defunto Barroso, que nunca fez nada de jeito em Washington, a não ser «contactos» que muito lhe viriam a ser úteis) e que fique por lá uns bons tempos, até esquecer as amarguras e os rancores que o fizeram ir ao Parlamento no dia da apresentação do Programa do Governo, para ajustar contas com Diogo Freitas do Amaral. E para defender o amigo americano.

Suspeita-se que Freitas do Amaral não vai dar mais medalhas a Carlucci (esperemos que não).
Deseja-se que a Euroamer não passe incólume das suspeitas de branqueamento de capitais só por ter «ajudado» a apanhar uma clique de criminosos e corruptos que traficava informações e praticava a extorsão (crime, como se sabe, que não aflige as nossas instituições judiciárias).

O antigo primeiro-ministro Pedro Santana Lopes criticou o Governo chamando ao seu programa um filme de ficção. Fê-lo fora da cidade de Lisboa, num encontro do PSD. Se, verdadeiramente, Pedro Santana Lopes queria criticar o Governo, tinha à sua disposição um belo lugar no Parlamento português para o qual foi eleito e ao qual disse nada, assim que se soube que tinha perdido as eleições. Se não fazia tenções de lá sentar o rabo, para que resolveu candidatar-se? Mais valia ter dado o lugar a outro.

Pacheco Pereira disse numa das suas tribunas que não contassem com ele para fazer a vida fácil ao Governo de José Sócrates. E que Sócrates era igual a Santana Lopes. Miguel Sousa Tavares disse (e bem), que não só Sócrates não tem sido nada igual a Santana Lopes como ninguém estava a contar com Pacheco para dizer bem do que quer que seja, excepto de Cavaco Silva (e mesmo assim...).

Quanto ao silêncio imposto por Sócrates aos jornalistas, que Pacheco num arroubo compara a tentativa de mordaça, só a demasiada imaginação do colunista sustenta o argumento. E os que não estão silenciados seriam cúmplices da infâmia. Silêncio e discrição (essa qualidade que o antigo ministro Nobre Guedes tanto preza) não são o mesmo que silenciamento e censura, e atenção e espera não se confundem com cumplicidade, a não ser na imaginação de Pacheco. Mas, percebe-se o dilema de Pacheco, está a ficar com falta de inimigo, visto que o seu partido é chão que deu uvas. Ainda bem que vêm aí as autárquicas, senão a míngua de assunto seria pior do que a seca.

E termino com outra frase (e muito boa) do Miguel Sousa Tavares, a pedir uma chuva que nos lavasse. Veio a chuva, a chuva que precisamos. A chuva boa e primaveril. Chova, pois. Lavemo-nos.

Friday, March 18, 2005

Imigração - Programa de Governo do PS

“VII. Para uma política de imigração inclusiva

Portugal optou por uma política de abertura regulada à imigração, adoptando uma estratégia em torno de três eixos: regulação, fiscalização e integração. Esta estratégia foi inspirada na estratégia da União Europeia de criação de políticas comuns de estrangeiros e de asilo, a qual merece total adesão do Governo.

A partir da segunda metade dos anos noventa do século passado, assistiu-se a um notório acréscimo do número de imigrantes que procuraram o nosso País. Hoje o número de estrangeiros que vivem e trabalham em Portugal aproxima-se, ou talvez exceda, os 4% da população residente. Este acréscimo deveu-se a um período de prosperidade que pôs a descoberto as limitações de mão-de-obra em alguns sectores da actividade económica. Ficou claro que um acentuado ritmo de crescimento – para já não falar da necessidade de inversão do défice demográfico – não prescinde do recurso a mão-de-obra estrangeira, podendo até suceder que no futuro esse recurso tenha de se acentuar, particularmente em áreas de mão de obra qualificada. Este surto recente de imigração diversificou dramaticamente as origens, as culturas, os graus de qualificação dos imigrantes.

Depois do ciclo de prosperidade veio a crise económica que atingiu os imigrantes tão duramente como os portugueses. Sabemos que muitos dos sem-abrigo mais recentes são cidadãos estrangeiros apanhados por uma crise que não conseguem enfrentar por falta de enquadramento social mínimo.

Esta situação faz com que a curto e médio prazo a vertente da integração assuma um cariz prioritário, sem esquecer as outras duas vertentes estratégicas da fiscalização e da integração.

Os imigrantes procuram-nos para melhorar a sua vida, mas cumprem um papel importante no nosso desenvolvimento. Por isso temos o dever de lhes proporcionar o acesso a condições mínimas de sustentação e de integração. Este dever não se funda apenas em motivos de ordem ética e humanista, funda-se também em relevantes motivos de interesse nacional: imigrantes insuficientemente integrados, instáveis, com problemas sociais, são um factor de perturbação que contribui para sentimentos de insegurança dos cidadãos. A contrapartida deste dever da comunidade nacional para com os imigrantes é o dever destes aceitarem e praticarem as regras mínimas de convivência social consagradas na Constituição.

Assim, numa perspectiva de integração, enfrentamos um duplo desafio: reforçar os mecanismos de integração dos imigrantes, e estender-lhes um conjunto mínimo de mecanismos de protecção social idênticos àqueles de que desfrutam os portugueses.

Para cumprir tais objectivos, promoveremos:

O reconhecimento de um estatuto de cidadania a quem tem fortes laços com Portugal, designadamente a indivíduos que nasceram em território nacional que são filhos de pai ou de mãe não nacionais nascidos em Portugal, ou filhos de quem já vive há alguns anos em Portugal, e se encontre integrado na sociedade, qualquer que seja a sua situação face à lei;

A garantia da igualdade de tratamento, particularmente nos domínios social e laboral;

A criação de mecanismos de protecção social mínima para imigrantes que tenham perdido o seu emprego;

A participação dos imigrantes na vida política, designadamente através da participação nas eleições autárquicas, após um período de permanência no território nacional;

A criação de mecanismos e programas de integração e de incentivo a quadros qualificados nas áreas em que o País mostra maiores carências, bem como a utilização adequada de recursos humanos qualificados já imigrados em Portugal;

A multiplicação de oportunidades de aprendizagem do português por estrangeiros, bem como da formação para a cidadania;

A facilitação dos processos de equivalência de diplomas e qualificações profissionais obtidas no estrangeiro;

O desenvolvimento de programas específicos para a integração plena de segundas e terceiras gerações;

O acesso dos filhos dos imigrantes e das minorias étnicas às creches, aos jardins-de-infância e ao pré-escolar;

O lançamento de campanhas de educação sexual e planeamento familiar, particularmente destinados aos jovens imigrantes, tendo em conta a diversidade e os códigos culturais;

A participação das associações de imigrantes no processo de integração;

A frequência de cursos de formação profissional por parte de imigrantes que residam ou permaneçam legalmente em Portugal;

O desenvolvimento de uma rede nacional de informação aos imigrantes e minorias étnicas, em colaboração com as autarquias locais;

A criação de material didáctico do ensino básico e secundário que contribua para atingir níveis satisfatórios de sucesso escolar das crianças e jovens filhos de imigrantes;

Programas de inserção social e ocupacionais da mulher migrante.

A aposta muito empenhada na integração será acompanhada por um reforço da regulação e da fiscalização.

A regulação procurará encorajar a imigração legal e desencorajar a imigração irregular. Para tanto, urge recuperar mecanismos de flexibilização da regulação dos fluxos, como as autorizações de permanência, desenvolver acordos com países de origem e criar mecanismos de resposta mais rápida e eficaz aos pedidos de imigração canalizados pelas vias legais.

A fiscalização centra-se na repressão das redes de recrutamento ilegal de mão de obra e de tráfico de seres humanos.

No plano institucional, será reforçada a figura do Alto Comissário para Imigração e as Minorias Étnicas.”

(Extracto do programa do Governo do PS aprovado e divulgado em 17 de Março de 2005)

Tuesday, March 15, 2005

"Do 11 de Setembro à Crise do Iraque" - Diogo Freitas do Amaral

Introdução

Este livro contém cerca de uma dezena de artigos de opinião publicados entre 11 se Setembro de 2001 e 30 de Novembro de 2002, incluindo o texto de uma entrevista radiofónica realizada no mesmo período, bem como extractos de um depoimento escrito a publicar no início de 2003.

Nenhum dos trabalhos aqui publicado é inédito – salvo o prefácio e a conclusão.

Pareceu útil, no entanto, reuni-los todos em livro e dá-los à estampa, quer porque tratam todos da situação de crise internacional em que temos vivido desde o 11 de Setembro de 2001 e por causa dele, quer porque a abordagem do assunto contém alguma originalidade.

Na verdade, entre a direita pró-americana que aplaude incondicionalmente a política externa e de segurança nacional do presidente Bush, e a esquerda antiamericana que condena irremediavelmente tudo quanto a América faz ou deixa de fazer, tenho-me situado numa linha intermédia (quiçá, centrista) que se caracteriza por dois elementos fundamentais:

– Um sentimento básico, estrutural, permanente, de amizade e admiração pelos EUA;

– Uma atitude crítica bastante forte, na conjuntura actual, contra a política externa e de segurança nacional do Presidente George W. Bush.

Com efeito, pode ser-se estruturalmente pró-americano e conjunturalmente anti-Bush. Pretender, como têm dito alguns dos meus críticos, que rejeitar a política externa e de segurança nacional de Bush é ser antiamericano é uma atitude mental muito próxima daqueles que, durante o Estado Novo, afirmavam que quem era anti-salazarista era necessariamente antipatriota ou mau português.

A verdade é que, em Democracia, pode ser-se, no plano interno, contra um Presidente ou contra um Governo sem se ser antipatriota; e, no plano das relações internacionais, pode discordar-se de certas políticas seguidas por determinados governos sem se ser inimigo ou mau amigo do respectivo país.

O direito à crítica, fruto da liberdade de opinião, e o direito à oposição, corolário da liberdade de posicionamento político, são direitos que não existem em ditadura, mas que fazem parte essencial das liberdades democráticas. É tão legítimo, numa democracia, ser a favor do Governo como ser a favor da oposição: ambas as atitudes são legítimas e contribuem para o bem comum. Ninguém exprime melhor essa filosofia do que os ingleses, que falam em Her Majesty’s Government e na Her Majesty’s Oposition. O que quer dizer que Governo e oposição, como elementos essenciais da democracia, são ambos acolhidos e legitimados como servidores da Coroa, expressão e símbolo da unidade nacional.

O mesmo se passa, mutatis mutandis, no plano internacional. Qualquer pessoa pode criticar a política externa do Presidente norte-americano sem que isso permita dizer, automaticamente, que essa pessoa é antiamericana; não é por se criticar, por hipótese, o liberalismo conservador do Governo francês que se é, necessariamente, antifrancês; nem é ser antigermânico criticar a política europeia do chanceler alemão.

Pode-se gostar muito de um país, do seu povo, da sua história, das suas instituições, dos seus êxitos e vitórias contra a adversidade, e no entanto discordar desta ou daquela política de um ou outro dos seus governos.

A não ser assim, se um europeu que critica a política externa e de segurança nacional do Presidente Bush é necessariamente antiamericano, então isso significará que já estaremos, hélas!, a resvalar para uma situação em que a Europa tem a sua «soberania limitada» pela hegemonia dos EUA, tal e qual como a Polónia, a Hungria, a Checoslováquia e os restantes países do «Pacto de Varsóvia» foram declarados pelo Presidente soviético Brejnev como «países de soberania limitada», que não tinham o direito de criticar a União Soviética, por esta ser o país líder do bloco soviético antiocidental, nem de seguir uma linha política diferente da aprovada por Moscovo.

Pessoalmente, considero que ainda não somos – nós, países europeus – países de soberania limitada, colocados sob a tutela e superintendência dos Estados Unidos da América. Nem queremos ser. Pelo menos, eu não quero. Quero que a Europa, unida e forte, seja amiga e aliada da América – mas não seja seguidista, possa criticar e critique o que achar mal nas posições internacionais assumidas pela América, e tenha o direito de dizer «não» quando estiver em desacordo.

Desejo uma aliança entre iguais, não uma parceria com um sócio dominante e sócios minoritários obrigados a segui-lo. O Presidente Bush disse há dias, na cimeira de Praga, que «se decidisse desencadear uma guerra contra o Iraque, consultaria os seus aliados e esperava que eles o acompanhassem».

Ora isso não é uma parceria entre iguais. Sê-lo-ia se, antes de tomar as suas decisões mais graves, o Presidente norte-americano consultasse os seus aliados europeus para todos decidirem, em conjunto, o que fazer a seguir. Mas o Presidente Bush já se permite olhar para nós, europeus, «de cima para baixo». O que ele diz é: nós decidimos sozinhos; depois informaremos os nossos aliados; pressioná-los-emos a seguirem connosco o nosso caminho; se não aceitarem, avançaremos sozinhos.

É isto uma parceria? É isto uma aliança entre iguais? É isto respeitar o princípio da igualdade de direitos dos Estados? A meu ver, não é.

Podem retorquir-me que a América é mais forte, não precisa para nada dos europeus e, portanto, tem o direito de decidir sozinha as suas políticas e de as executar sem os aliados, se estes não aceitarem a liderança americana.

Respondo que essa [sic] é o ponto de vista preconizado pelo actual Presidente americano e pela maioria da sua administração; mas não é a concepção que mais interessa à Europa e ao resto do mundo.

Os EUA podem ter ambição desmedida de querer mandar nos seus aliados; estes é que devem ter a coragem e a espinha dorsal suficientes para não se sujeitarem a ser mandados.

Infelizmente, a época actual conjuga uma América muito forte, mas errada nas suas opções internacionais, com uma Europa muito fraca, que apenas esboça tímidas críticas mas não é capaz de dizer «não» quando chega a hora da verdade. É assim que se começa, normalmente, a descer o plano inclinado da conciliação ao seguidismo, deste ao servilismo, e deste último à servidão.

*
Também tenho sido, acusado de ter virado à esquerda, com tanta crítica aos americanos. É esse o preço que tem de pagar, em Portugal, uma pessoa que gosta de pensar livremente pela sua cabeça – e que por isso não alinha sistematicamente com as posições de direita, nem considera que signifique ser de esquerda tomar posições idênticas às que, em certas matérias, são tomadas, por motivos bem diversos, por uma parte da esquerda.

O Presidente Chirac discorda, em nome da França, da ideia americana de um ataque imediato ao Iraque: passa a ser, por isso, um homem de esquerda?

O papa João Paulo II apela ao mundo (quer dizer: aos EUA) para que procurem evitar mais uma dolorosa guerra no Médio Oriente: passa a ser considerado, por isso, um Papa esquerdista?

O General Bent Scowcroft, um conservador americano que foi assessor e amigo muito próximo do Presidente Bush-pai, critica abertamente a linha política seguida no plano internacional pelo presidente Bush-filho. Tornou-se esquerdista? Mudou do Partido Republicano para o Partido Democrata. [sic] O general De Gaule, quando criticava a política externa norte-americana, passava a ser um homem de esquerda? Começava logo a ser atacado pela direita e louvado pela esquerda? Santa ingenuidade…

De Gaulle criticava os EUA em nome do nacionalismo francês – no que era coerente com as suas opções de direita.

Hoje, muitos conservadores e liberais europeus criticam a política externa americana em nome da autonomia soberana dos seus países e da Europa unida – no que são coerentes com as suas opções ideológicas, que nada têm a ver com o socialismo ou o marxismo.

É preciso sofrer de grande miopia política para não perceber que a dicotomia «direita/esquerda» tem a ver com problemas internos de política económico-social, e não com grandes questões da política externa, sobretudo a partir do momento em que o mundo deixou de estar dividido em dois grandes blocos ideológicos.

*
De todas as afirmações por mim feitas sobre a crise mundial em que vivemos depois do 11 de Setembro, aquela que provocou mais ondas de choque, chegando a merecer a crítica de alguns amigos mais próximos, foi a que fiz no artigo «A extrema-direita no governo dos EUA», de 12 de Setembro de 2002.

Não fiz essa afirmação de ânimo leve, mas muito de caso pensado: é que, quando vivi durante um ano em Nova Iorque, como Presidente da Assembleia Geral da ONU, apercebi-me (sem margem para dúvidas) de que havia uma extrema-direita legal na América, a qual correspondia, essencialmente, à ala mais radical do Partido Republicano. Agora, essa facção ganhou a Presidência dos EUA, no ano 2000, e domina maioritariamente o governo americano: são seus principais representantes, além do próprio Bush-filho, o Vice-Presidente Dick Cheney, o Secretário da Defesa Donald Rumsfeld e a Secretária Nacional de Segurança Condoleeza Rice. Do outro lado, quase sozinho como moderado, está apenas Colin Powell.

Porque é que eu chamo àquele grupo de pessoas «políticos de extrema-direita»? Por várias razões.

Primeira razão: são nacionalistas exacerbados, que advogam não dever o seu país respeitar o Direito Internacional, do qual só extraem direitos para os EUA e deveres para o resto do mundo. O mesmo pensavam e faziam o fascismo italiano e o nazismo alemão, na primeira metade do século XX.

Segunda razão: acreditam sinceramente que a missão história do seu país, no século XXI, é controlar e dominar o mundo, espalhando e impondo por toda a parte o american way of life. O mesmo pensava e tentou Hitler, embora por razões racistas, com a sua Deutschland über alles!

Terceira razão: desprezam em absoluto a ONU, que não consideram uma organização supranacional destinada a (tentar) garantir a paz e a segurança internacionais, mas uma estrutura que só interessa, e só deve ser apoiada e financiada, na medida em que funcionar como instrumento ao serviço dos objectivos da política externa americana. Desenvolvem uma campanha muito ampla, generosamente financiada, para denegrir a imagem da ONU perante a opinião pública, ameaçando abandonar a Organização se esta continuar a aprovar resoluções contrárias aos EUA. O mesmo pensava e dizia o doutor Salazar, que nunca reconheceu à ONU o direito de se pronunciar sobre a descolonização do Ultramar português, e desencadeou uma campanha de opinião sem precedentes para tentar denegrir a desacreditar a ONU, ameaçando mesmo que Portugal estaria «entre os primeiros países a abandoná-la».

Quarta razão: levaram os EUA a retirar-se da lista dos Estados que aceitam a jurisdição do Tribunal Internacional da Haia, com o argumento de que a América nunca deverá aceitar nenhuma decisão de qualquer organismo internacional que condene, reprove ou obrigue os EUA a fazer ou não fazer o que o Executivo ou Legislativo americanos não acharem bem. Assim pensaram e pensam, assim agiram e agem, todos os ditadores e extremistas que colocam a soberania nacional acima do Direito Internacional.

Quinta razão: recusam dar aos talibãs e guerreiros da Al-Qaeda o estatuto de «prisioneiros de guerra», que as Convenções de Genebra lhes garantem, com o argumento de que esses perigosos terroristas não são seres humanos, mas autênticos animais. O mesmo pensava Hitler dos judeus, dos ciganos, dos polacos, dos homossexuais e dos deficientes mentais ou físicos que mandou matar nas câmaras de gás.

Sexta razão: aconselharam o Presidente Bush a criar, por decreto do Poder Executivo (e não por lei do Congresso), tribunais especiais criados de propósito, após o 11 de Setembro, para julgar (e condenar) os indivíduos, americanos ou estrangeiros, acusados de serem terroristas, suspeitos da prática de actos de terrorismo, ou meramente auxiliares, directos ou indirectos, de qualquer acusado de ser terrorista. Assim pensava e agiu o Doutor Salazar, criando os tristemente célebres «tribunais plenários» para julgar (e condenar) os portugueses acusados ou suspeitos de serem comunistas ou de lhes darem apoio ou abrigo.

Sétima razão: apesar de a Constituição americana (a mais antiga do mundo, já com 225 anos de vida) estabelecer, de forma clara e firme, o princípio da separação entre as igrejas e o Estado, fazendo deste um Estado laico, eles pretendem voltar a impor que em todas as salas de aula das escolas oficiais haja na parede um crucifixo e seja rezada diariamente uma oração de inspiração cristã. O mesmo pensava e fez o Generalíssimo Franco, em Espanha, reeditando com dois séculos de atraso a antiga aliança pré-liberal entre «o trono e o altar».

Oitava razão: contra o disposto na Constituição americana, que garante como nenhuma outra, em termos praticamente ilimitados, a liberdade de expressão (free speech), levaram o Presidente Bush a pressionar – sabe-se lá por que meios – a imprensa de referência e os principais canais de televisão e [sic] não publicarem mensagens de Bin Laden, ou outros suspeitos de ligação a organizações terroristas, e a aceitar a censura prévia dessas mensagens por razões de segurança nacional. Assim pensavam e fizerem todos os ditadores nacionalistas europeus quando os seus países entravam em guerra, ou faziam campanhas de histeria colectiva contra um invisível «inimigo externo».

Nona razão: conduzem e orientam sempre a política orçamental do seu país no sentido de aliviar a pressão fiscal sobre os ricos, porque produzem riqueza e criam postos de trabalho, diminuindo significativamente as despesas sociais do Estado benéficas para os pobres, porque Cristo terá dito que «pobres sempre os tereis convosco» e porque as estatísticas demonstram, segundo eles, que todos os auxílios, ajudas, subsídios e pensões pagos aos pobres são gastos inúteis, uma vez que os utilizarão logo em álcool, tabaco, jogo ou drogas. Assim pensavam e fizeram todos os ditadores de extrema-direita que exerceram o poder, com particular destaque para Pinochet, aliás apoiado política e financeiramente pela referida ala mais radical do Partido Republicano.

Décima razão: porque estes homens e mulheres, em pleno século XXI, se consideram – e orgulhosamente o proclamam – como os herdeiros directos de [sic] melhor tradição «conservadora» americana, que não via mal nenhum na escravatura, que foi contra a sua abolição, que fez uma guerra civil em nome do direito à manutenção da escravatura nos Estados do Sul, que prolongou o seu racismo congénito em mil e um esquemas mais ou menos «legais» de segregação racial, que combateu Martin Luther King e os seus esforços não-violentos de consecução da igualdade racial, que esteve por trás da acção violenta e racista do Ku-Klux-Klan, e que ainda hoje, nos círculos judiciais que influencia, absolve polícias brancos que matam indivíduos de raça negra, mas condena com penas severas os negros apanhados a roubar fruta ou peças de vestuário barato em minimercados populares.

Como democrata que sou, não posso deixar de reconhecer a quem pensa da maneira acima exposta o direito de pensar como pensa e de livremente exprimir as suas ideias. Mas penaliza-me verificar que, após dois séculos de tolerância e moderação, a política americana caiu nas mãos dessa facção e se orienta hoje pela intolerância e pelo radicalismo.

Como escreveu recentemente Emmanuel Todd, com grande lucidez, «os Estados Unidos, até há bem pouco tempo factor de ordem internacional, surgem, cada vez com maior nitidez, como um elemento de desordem. (…) Os Estados Unidos estão em vias de se tornar um problema para o mundo. Estávamos mais habituados a vê-los como uma solução» (in Após o Império, Lisboa, Edições 70, 2002, pp. 9-11).

Não partilho da visão catastrófica deste autor, nem do seu (actual) antiamericanismo. Acho que os EUA se libertarão, mais depressa do que poderemos pensar, da influência governamental da sua «extrema-direita legal», tal como se libertaram do pesadelo do Vietname ou do Watergate. A juventude irreverente das universidades e a imprensa livre farão o seu trabalho – e melhores dias virão.

Mas lá que a conjuntura actual é particularmente perigosa, é. Conviria que os europeus relessem a História, recordassem os seus valores fundamentais, e fizessem da Europa unida um pólo de civilização exemplar, capaz de enfrentar e resistir aos riscos do radicalismo que hoje domina a política externa e de segurança nacional norte-americana.

Foi neste espírito, e com as convicções e ideias básicas antes expostas, que escrevi os dez textos agora publicados. Espero que se tornem ainda mais compreensíveis à luz do que digo neste prefácio.

Novembro de 2002

Diogo Freitas do Amaral

Wednesday, March 09, 2005

O Fim do Pesadelo (quase em forma de diatribe)

No próximo sábado os portugueses vão ver-se livres de um pesadelo. O governo de direita (ou, melhor dito, “das direitas”) vai cessar funções.

Não uso palavras pesadas demais. Tenho até a percepção de que são pesadas de menos. Tenho ouvido, visto e sentido, por toda a parte, gente abandonada e ressentida, à beira da ruína, da marginalidade e do desespero, com fome e sem trabalho, sem futuro e sem esperança. Não só no mundo do trabalho como também no mundo dos negócios.

O pesadelo resultou de muitos e variados factores mas, entre eles, avulta o facto de o governo ter sido “sequestrado” por um partido extremista minoritário que tem um nome, um chefe e um ideólogo. O nome: CDS/PP; o chefe: Paulo Portas; o ideólogo: Bagão Félix.

Aliás a natureza totalitária do CDS/PP, de Paulo Portas/Bagão Félix, ficou bem evidenciada pelo recente episódio do retrato de Freitas do Amaral. Só os partidos totalitários suprimem a figura dos seus pais fundadores. O episódio, aparentemente irrelevante, tem um significado profundo: mostra à evidência que Portugal tem sido governado por uma coligação que integra um partido com vocação totalitária. As consequências desse facto, para o país, foram desastrosas.

A direita portuguesa, em si mesma, não seria um pesadelo se fosse uma direita moderna, aberta ao diálogo social, liberal, europeísta e empenhada na defesa dos valores da dignidade humana, da democracia e da liberdade. Mas não é o caso. A direita que tem ocupado o poder político, nos últimos três anos, abdicou desses valores em favor de uma deriva nacional/populista.

Durão Barroso, Paulo Portas, Santana Lopes e Bagão Félix foram (e são) os principais protagonistas do exercício de um modelo de poder que se não recomenda num país membro de pleno direito da UE.

Eles foram os responsáveis pela aplicação de um conjunto de medidas avulsas (mais do que de um “programa político”) que lançou o país e os portugueses na descrença e humilhou a imagem de Portugal na Europa e no mundo. Desde o “discurso da tanga” à “pesada herança”, desde a “fuga” de Durão Barroso às trapalhadas de Santana, desde a encenação de “homem de estado” de Portas à dissimulação beatífica de Bagão.

Foi o “salva-se quem puder” favorecendo, até aos limites da abjecção, os interesses particulares em desfavor do interesse público.

Eles não cuidaram, afinal, de assegurar o equilíbrio das contas públicas e desbarataram parte substancial do património nacional. Eles alargaram o fosso entre os mais ricos e os mais pobres, sem contrapartidas no desenvolvimento estrutural da economia. (Espera-se que o governo socialista realize um balanço sério e rigoroso desta herança).

Eles favoreceram e fomentaram o julgamento sumário de dirigentes políticos da oposição e da administração pública, através de autênticos autos de fé, queimando na praça pública, através de relações promiscuas com uma parte da comunicação social, o bom nome de centenas de cidadãos honestos.

Eles conduziram campanhas de devassa da vida privada de muitos portugueses sem cuidar de impedir o uso abusivo e ilegítimo do aparelho judicial e policial.

Eles distribuíram milhares de lugares de chefia da administração do estado pelos dirigentes mais obscuros das estruturas nacionais, regionais e locais dos seus partidos a coberto do combate aos designados “jobs for the boys”.

Eles lançaram o caos na administração da coisa pública e depreciaram a política fazendo-a descer ao nível da conversa de café e da zaragata entre comadres desavindas.

Eles encenaram, sem vergonha, uma espécie de revisitação, adornada de folguedos pós-modernos, do salazarismo.

É verdade que muitos dos valores ainda dominantes na nossa sociedade são herança de um passado que fomentou o medo, a resignação e a cobardia cívica, a subserviência e a dependência absolutas face aos poderes político e económico.

A ditadura obrigava a que os portugueses “fechassem a boca”, suprimindo o “espaço público”, em nome da ordem e dos bons costumes e uma ínfima nomenclatura de poderosos ditava as leis em nome da defesa de um Portugal “uno e indivisível do Minho a Timor”.

Mas é triste ter de reconhecer que, nos últimos três anos, o país viveu paredes meias com o regresso a essa “normalidade” em que, durante 48 anos, o medo, o terror e a intriga imperaram suprimindo a democracia ou usando-a, quanto muito, como um meio para adulterar a sua própria essência.

Finalmente o povo foi chamado às urnas e ditou o fim do pesadelo. Haja Deus!

Assim os novos governantes sejam dignos da confiança que o povo neles depositou pois Portugal precisa de um bom governo.

A essência da política que o novo governo socialista deve aplicar é simples: restituir a decência à vida pública, actuar com bom senso e ambição, olhar pelo equilíbrio entre os poderes e pela salvaguarda da separação dos mesmos, não esquecer os mais fracos e não espoliar os mais fortes.

Em suma um governo com coragem, que coloque a cobardia no sótão do esquecimento. Um governo que não faça fretes aos poderosos e não pratique a caridade com os mais fracos. Um governo justo e honrado. Que cumpra com as suas promessas e não esqueça a raíz da sua legitimidade: o voto de um povo sequioso de justiça.

Um governo que não vacile perante as corporações. Um governo que não ceda à chantagem dos extremismos, de direita ou de esquerda, nos quais a maioria do povo português se não revê.

Um governo que preze a liberdade acima de todos os valores em que se fundamenta o regime democrático. Um governo, enfim, que trabalhe para nos restituir o orgulho de ser portugueses.

Thursday, March 03, 2005

As Novas Políticas Sociais e o Governo Socialista

Será possível que em Portugal, nos próximos anos, com um governo socialista, apoiado numa maioria estável, se desenvolva um processo de desenvolvimento sustentável e de modernização com coesão social? Será possível conduzir esse processo com taxas de desemprego relativamente elevadas? Será possível redefinir o padrão de especialização da economia, estimular o crescimento económico e assegurar o controle do deficit das contas públicas?

A margem de credibilidade de uma resposta positiva a estas perguntas é estreita: o Estado carece de uma reforma profunda e difícil, assente num acordo social, com incidência no longo prazo e o discurso dominante, na sociedade civil, é, passe a simplificação, do género: “Não faças ondas!”, “não dês nas vistas”, “olha que te queimas!”, “isso não foi nada comigo!”, “ele, ou ela, que explique”, “eles, ou elas, é que sabem”, “venha amanhã que já cá estará o responsável”... e passam dias, meses e anos!

O discurso político, por sua vez, tem sido um carrossel de omissões e “passa culpas”, assentes na mentira, na hipocrisia e na dissimulação de que os governantes da direita foram, cada um ao seu estilo, paradigmas inigualáveis.

O resultado das últimas eleições foi, pelo menos, portador de dois sinais positivos: para mudar alguma coisa, não só no Estado, como na sociedade civil, é necessário um poder político forte que, no entanto, carece de ser exercido com o apoio da opinião pública pois se nas campanhas eleitorais se podem tornear os problema com respostas evasivas no governo não será possível escapar às decisão controversas e difíceis.

O problema é quando se trocar por miúdos o “plano tecnológico” que Sócrates anunciou, ou seja, um projecto, ousado e realista, de modernização do país. Será necessário mudar quase tudo! É como se os portugueses, de forma imaginária, passassem a seguir à risca a palavra de ordem: “Trabalhe no Luxemburgo, cá dentro!”.

Todas as corporações vão defender os seus privilégios, colocando-se na primeira linha para obter os benefícios desse projecto, fingindo-se, ao mesmo tempo, “distraídas” para escapar aos esforços necessários para o tornar possível.

É que a qualificação dos recursos humanos, organizada e impulsionada em turbilhão, como terá de ser, tal o nosso atraso relativo face à média europeia, e a introdução acelerada das novas tecnologias de informação, promoverá a “morte” de empresas, serviços públicos e postos de trabalho.

Por isso só há uma solução para abordar, de forma séria, a crise social e, em particular, o desemprego: admitir a sua realidade, conter os custos económicos e humanos da sua eclosão e promover políticas activas que estimulem o investimento (nacional e estrangeiro) e uma mudança do padrão de especialização da nossa economia.

Mas às velhas questões, antes enunciadas, vieram juntar-se as “novas questões” do envelhecimento demográfico, da imigração e a do insucesso/abandono escolar precoce (esta com muita incidência no caso português) que, em conjunto, são uma verdadeira “bomba ao retardador” que poderá fazer implodir os princípios fundadores do “estado social”.

Certamente sem direito a ministério próprio estas questões atravessam transversalmente todas as áreas da governação condicionando decisivamente o crescimento económico, a sustentabilidade das finanças públicas e o sucesso das políticas sociais de raíz solidária.

Daí que seja inevitável que o novo governo socialista enfrente os desafios do “envelhecimento activo”, da inovação do conceito de trabalho (e de lazer), da flexibilização da idade de reforma, da penalização das reformas antecipadas, de uma nova ética de responsabilidade social de empresários e trabalhadores, de um novo papel dos sindicatos...

Estas são questões que podem e devem ser assumidas pela esquerda retirando à direita a iniciativa de as transformar num campo de batalha no qual os mais fracos serão sempre penalizados, provavelmente, de forma brutal e desumana fechando, ao mesmo tempo, o caminho ao populismo que sempre se insinua quando os defensores da liberdade vacilam na afirmação e actualização dos valores do estado social.

O PS deu sinais que permitem antever uma resposta afirmativa às perguntas iniciais acolhendo no programa de governo, de forma aprofundada e integrada, as novas políticas sociais sem receio de assumir a sua carga ideológica, bandeiras da defesa das forças do trabalho, não obrigatoriamente “despesistas” e “anti-liberais”, entre as quais se inclui o verdadeiro combate ao desemprego.

(Artigo publicado no "Semanário Económico" - Edição de 4 de Março de 2005)