Sunday, December 19, 2010

CAMUS, A POLTRONA E A HISTÓRIA - Ou três razões para ler Camus

Maria Luísa MALATO BORRALHO
Professora e ensaísta 1

1944. Ouviam-se ainda os tiros dos combates nas ruas de Paris. A libertação da cidade fazia-se casa a casa, bairro a bairro. É preciso tomar a Comédie Française. Talvez Sartre. Mas ninguém sabe onde está. Será Albert Camus que o vai encontrar adormecido, numa sala de espectáculos vazia. Comenta com uma gargalhada: “Tu as mis ton fauteuil dans le sens de l’histoire!”

1952. Há alguns meses tinha sido publicado L’Homme Révolté. Ainda que contasse com a reacção crítica de Sartre e dos seus apóstolos, Camus não esperava a virulência do artigo que Sartre encomendara a Francis Jeanson, publicada em Les Temps Modernes. Pensa responder a Jeanson, mas acaba por escrever ao autor da encomenda: insurge-se no final contra a censura brutal daqueles que “n’ont jamais placé que leur fauteuil dans le sens de l’histoire”.

Há poucas coisas que ofendam mais que a traição de uma gargalhada dada em uníssono. Quando se tinham encontrado em 1943, durante a guerra e na estreia de Les Mouches, cada um apreciava a obra do outro. Em 1938-1939, Camus tinha manifestado admiração pelas obras de Sartre, La Nausée e Le Mur. E Sartre seria desde logo sensível ao inusitado estilo de Camus em L’Etranger, publicado em 1942. Toda a amizade sincera é paritária, mas Sartre sempre acreditou demasiado na sua superioridade e Camus sistematicamente duvidava de qualquer uma que pudesse ter. Frequentariam os mesmos círculos, as mesmas esplanadas, mas brincavam sobre a confusão que os mesmos rótulos lhes causavam: a Camus desagradava sobretudo o de existencialista, se por isso se entendesse a filosofia de Sartre:

“Sartre et moi nous nous étonnons toujours de voir nos deux noms associés. Nous pensons même publier un jour une petite annonce où les soussignés affirmeront n’avoir rien en commun et se refuseront à répondre des dettes qu’ils pourraient contracter respectivement.” (Camus, 1981: 1424)

Depois de 1952, acentuar-se-ão velhas e novas rupturas. Camus não gosta daquela razão concreta, de uma natureza que se descreve abstracta. Não partilha a ideia dos outros como inferno. Suspeita que o Existencialismo alimenta um niilismo que desresponsabiliza o indivíduo e o entrega inteiro ao fatalismo da História. Depois da ruptura, Sartre reservará a Camus (com alguma maldade) a admiração estilística, e a incompetência filosófica: talvez porque Camus gostava que o seu estilo se não notasse e apreciava especialmente a força dos argumentos óbvios. E ainda quando comenta a morte de Camus, Sartre lhe louva ambiguamente o “Humanismo teimoso, estreito e puro”. Sartre cultivava o seu estatuto de “condutor das massas”. E Camus parecia ter o condão de defender causas perdidas. Já em 1945, no meio da euforia da vitória dos aliados, quase só Camus tinha lamentado o lançamento da bomba atómica sobre Hiroshima:

“On nous apprend, en effet, au milieu d’une foule de commentaires enthousiastes, que n’importe quelle ville d’importance moyenne peut être totalement rasée par une bombe de la grosseur d’un ballon de football. Des journaux américains, anglais et français se répandent en dissertations élégantes sur l’avenir, le passé, les inventeurs, le coût, la vocation pacifique, et les effets guerriers, les conséquences politiques et même le caractère indépendant de la bombe atomique. Nous nous résumons en une phrase: la civilisation mécanique vient de parvenir à son dernier degré de sauvagerie.” (Camus, 1981: 291) 2

Comme il était agaçant, “le chieur”… O que acaba por dividir Sartre e Camus é, afinal, aquela poltrona da Comédie Française, virada para o sentido da História, aquela em que Sartre adormeceu, embalado pelo ritmo fácil de dizer o que os outros queriam ouvir. O dogmatismo bipolar, que sempre seduz as almas simplistas e preguiçosas, fará o resto. Camus era incompreensível com a mania das “nuances”, as ideias de “révolutions relatives”, “utopies modestes”, “efforts relatifs”. Não se entendiam aquelas críticas inoportunas aos campos de concentração russos para dissidentes políticos, os seus discursos contra a repressão dos movimentos operários em Berlim-Leste, a disponibilidade com que queimava a sua imagem juntando-se ao protesto dos pobres escritores húngaros depois da invasão de um país distante, aquela “moral de Cruz Vermelha” (segundo acusação de Francis Jeanson), que fazia Camus defender colaboracionistas e colonos brancos ou trotskistas e árabes nacionalistas, a ingenuidade da trégua para a população civil argelina ou a infantilidade da sua solução federativa, que uniria colonos e árabes sob uma mesma bandeira. Até a “Castor” o ataca, em defesa do seu amor canino: ah, La Force des Choses!

Quase tudo Camus defendeu em vão na sua época, até porque “la vérité en histoire s’identifie au succès”, o sucesso imediato, ainda que transitório (Actuelles I): “Mas em política adiar não é ganhar?” (Mathias, 2010: 34). Hoje parece óbvio que Sartre mentiu “objectivamente”, ainda quando Camus afirmava “subjectivamente” a verdade. Hoje parece óbvio o que na época não se queria ver. Basta por vezes que as almas sejam menos preguiçosas para que o mundo seja menos doloroso. E por isso escrevemos este texto para imaginar Camus, na década de 50, do século XX, prometaicamente sozinho. “Cible de toutes les flèches” (Giraud, 2010: 105). É preciso imaginá-lo assim, “solidário e solitário”, para tomarmos consciência do nosso comodismo, em muitos sentidos, a origem do absurdo que ajudamos quotidianamente a construir, como se a nossa vida não tivesse nada a ver connosco e muito menos nos importasse a vida dos outros ou as consequências que em todas elas tem a nossa profunda e indelével indiferença: “Ça m’est égal”, repetia sistematicamente Meursault.

Ao contrário dos outros, contrariando-os, Albert Camus importa-se. E esta é talvez a primeira razão porque o devemos ler. Ou porque o leio. A admiração veio inesperadamente, ao ler La Chute, aos vinte anos, e encontrei um juiz-penitente em “Mexico City”. Lá dentro, Clamence confundia a acusação e a defesa das suas cobardias, e eu confundia-as com as minhas. É noite. Ouve-se o impacto de um corpo que cai à água, um grito que desce o rio. Silêncio.

“Je voulus courir et je ne bougeai pas. Je tremblais, je crois, de froid et de saisissement. Je me disais qu’il fallait faire vite et je sentais une faiblesse irrésistible envahir mon corps. J’ai oublié ce que j’ai pensé alors. ‘Trop tard, trop loin…’ ou quelque chose de ce genre: j’écoutais toujours immobile.” (Camus, 1981b: 1511)

Paul Ginestier (de quem eu era então aluna, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra) chamou-nos a atenção para o momento em que Clamence piscava o olho a Sartre:

“Surtout je m’obligeais régulièrement à visiter les cafés spécialisés où se réunissaient nos humanistes professionnels.” (Camus, 1981b: 1521) 3 

O humanismo de Camus, persistente, grandioso e cheio de nuances, permite ainda hoje ver mais longe do que a poltrona de Sartre, baixa e acomodada ao sentido da história, feita à medida da nossa vontade de adormecer. A longo prazo (por vezes tão longo), há coisas mais importantes do que vencer: uma certa forma de resistência e persistência, a mesmíssima honestidade das amendoeiras argelinas que, da noite para o dia, se cobrem de flores nas margens do deserto e do Inverno.

“Ne pas céder, tout est là. Ne pas consentir, ne pas trahir. Toute ma violence m’y aide et le point où elle me porte mon amour m’y rejoint et, avec lui, la furieuse passion de vivre qui fait le sens de mes journées.” (Camus, 1962: 76)

Camus sempre se preocupou muito (nos outros, mas desde logo em si) com a honestidade intelectual, a honestidade estética, a honestidade profissional. Em suma, com a honestidade moral, cúmulo de todas as outras. Porque a honestidade não é mais do que esta leitura do sentido literal da palavra. “Honesta” era a planta cuja força do caule lhe permitia crescer direita, a que não se acomodava à força das outras, nem vivia enrolada no poder alheio, confundindo-se com ele. Voltamos à questão da poltrona virada para o sentido da história. Mas ainda, através dela, a outras duas razões para ler Camus.

Segunda razão: Albert Camus acorda-nos para a vitalidade do real. No limite, a amendoeira não precisa de razões metafísicas para florir e dar fruto. Nem espera que a Primavera surja para florir: antecipa-se, tal é a força do seu tronco.

“Je m’émerveillais de voir ensuite cette neige fragile résister à toutes les pluies et au vent de la mer. Chaque année, pourtant, elle persistait, juste ce qu’il fallait pour préparer le fruit.” (Camus, 1981: 836)

Assim devia ser o homem que, à sua imagem, em estado são e pela “força do seu carácter”, naturalmente criaria beleza e multiplicaria os bons frutos. Ou o escritor que, para ser do seu tempo, não pode ficar reduzido ao seu tempo, mas há-de romper o presente e projectar-se no futuro.

“Notre tâche d’homme est de trouver les quelques formules qui apaiseront l’angoisse infinie des âmes libres. Nous avons à recoudre ce qui est déchiré, à rendre la justice imaginable dans un monde si évidemment injuste, le bonheur significatif pour des peuples empoisonnés par le malheur du siècle.” (Ibid: 835-836)

Camus dizia não ter nunca conseguido resistir à luz, à felicidade de existir, à vida livre em que tinha crescido. Marcello Duarte Mathias, numa época em que o desejo de felicidade era inconfessável, escreveu um magnífico livro sobre A Felicidade em Albert Camus (Mathias, 1978: passim). Se a tal formos sensíveis, o melhor será começar por retirar da prateleira Les Noces, o primeiro livro em que Camus se liberta de uma estética da abstracção para consolidar uma estética da sensação. Aos adjectivos prefere os substantivos, menospreza os advérbios se para eles encontrar um verbo. Pol Guillard repara que desaparece a expressão “comme si”, demasiado frequente na primeira versão de L’Envers et l’Endroit (Guillard, 1973: 52). Em Les Noces, a linguagem “concreta” é um desejo de nudez, que alguns aproximam da sua sensualidade, mas que é muito mais a proximidade táctil com a vida. Le Premier Homme, o seu último livro, deixado incompleto, parece-nos ser aquele que melhor retoma esta estética da sensação. Mas entre os dois livros, nunca a lição será esquecida. No mesmo sentido em que Sophia de Mello Breyner escreve o ensaio sobre O Nu na Antiguidade, também Camus vai descrevendo as núpcias, o compromisso sacralizado, do indivíduo com a natureza que o rodeia: o paraíso são os outros, o que está para além de nós e nos dá a sensação de estarmos vivos, essa ternura de uma mão que toca na nossa:

“Je décris et je dis: ‘Voici qui est rouge, qui est bleu, qui est vert. Ceci est la mer, la montagne, les fleurs’ […] Aux mystères d’Eleusis, il suffisait de contempler. Ici même, je sais que jamais je ne m’approcherai assez du monde. Il me faut être nu et puis plonger dans la mer, encore tout parfumé des essences de la terre, laver celles-ci dans celles-là, et nouer sur ma peau l’étreinte pour laquelle soupirent lèvres à lèvres depuis si longtemps la terre et la mer.” (Camus, 1981: 57)

Grande parte da alma religiosa de Camus está aqui, paradoxalmente, no reiterado ateísmo, nesta ausência de Deus a quem queira pedir prémios: a glória, os favores ou a imortalidade. Um verso de Píndaro serve de epígrafe a Le Mythe de Sysiphe: “Ô mon ame, […] épuise le champ du possible”. Segundo Camus, para toda a utopia basta o que existe, para tudo tem de bastar, para tudo deve bastar. Estranha e belíssima oração a Santa Bárbara de Orão:

“Vous qui êtes comme un quai où l’on fume une cigarette en rêvant, en attendant un coup de sifflet qui vous relancera vers les paysages de la terre, vous savez que je ne suis pas souvent religieux. Mais s’il m’arrive de l’être, vous savez que je n’ai pas besoin de Dieu et que je ne puis l’être qu’au moment où je veux jouer à l’être, parce qu’un train va partir et que ma prière sera sans lendemain.” (Camus, 2006: II, 57).

Religiosos, nós? Toujours ou souvent? Quantas vezes na vida, quantas vezes por dia? Até para Meursault conhecer a eternidade bastará a clarividência de um instante.

Terceira razão: a liberdade dos caminhos a percorrer. Abro um livro do liceu: L’Etranger, em edição de bolso. Na altura, pouco me disse filosoficamente. Mas, saída dos romances de Herculano, Eça e Camilo, surpreendeu-me a secura das frases. Ou talvez essa secura fosse a das estacas que julgamos mortas e depois ganham raízes e folhas e frutos. “Aujourd’hui maman est morte”. Porquê a ternura de “maman”? Experimentava variantes do mesmo ritmo: “Aujourd’hui ma mère est morte”: mais seco ainda. Haveria uma literatura sem estilo? Mais parecia que a ausência de estilo era ainda uma ambiguidade do estilo. Procurei realçá-lo quando, em 1984, publiquei um livro sobre Camus: o que ao longo da vida fui admirando nele prendia-se quase sempre com essa inteireza, no estilo como no carácter de Albert Camus (Borralho, 1984: passim). Pierre-Louis Rey sintetizou o que era uma crítica comum: “Simplicité de L’Etranger, virtuosité de La Chute, lyrisme du Premier Homme, on lit chaque fois un nouveau Camus” (Rey, 2010: 19). E viu nela uma intenção, já expressa em Carnets, em 1943:

“En fait il [le roman] exige le style le plus difficile, celui qui se soumet tout entier à l’objet. On peut ainsi imaginer un auteur écrivant chacun de ses romans dans un style different.” (Camus, apud Rey, 2010: 19)

A plasticidade estilística de Camus equivale às nuances do pensamento preciso, àquela plasticidade ideológica que tanto impacientava Sartre.

Em tudo se deve ponderar o “ajuste do fundo à forma”, velha máxima horaciana. Nos dois espaços privilegiados por Camus, o Deserto e o Mar, as rotas são sempre caminhos provisórios e tanto o berbere como o marinheiro os vai sulcando com liberdade, mas atendendo à duna e à onda, procurando uma oscilante “justa medida”, um fugitivo “fio da navalha”. Voltamos à poltrona estática, disposta no sentido da História. Mas qual é o sentido da História? Como pensar que ela é uma via de sentido único e veredas estreitas?

“Créer, c’est ainsi donner une forme à son destin.”, dirá Camus em Le Mythe de Sysiphe. Melhor se diria que a História é Deserto e tem dunas. Que é Mar e tem ondas. Mas para onde viraremos a poltrona?


1  Membro do Projecto U&D “Utopias literárias e pensamento utópico: a cultura portuguesa e a tradição intelectual do Ocidente – II”, financiado pela FCT e sedeado no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa, Faculdade de Letras da Universidade do Porto (POCTI/ELT/46201/2002).

2 Cf. “Il va falloir choisir, dans un avenir plus au moins proche, entre le suicide colectif ou l’utilisation intelligente des conquêtes scientifiques.” (“Combat”, 8 août 1945, in Camus, 1981: 291).

3 Cf. Ginestier, 1979: 65.


BIBLIOGRAFIA

BORRALHO, Maria Luiza, 1984, Camus, Porto: Rés

CAMUS, Albert, 1962, Carnets, Paris: Gallimard

CAMUS, Albert, 1981, Essais, Paris: Pléiade/ NRF

CAMUS, Albert, 1981b, Théâtre, Récits, Nouvelles, Pléiade, Paris: Gallimard

CAMUS, Albert, 2006, Œuvres complètes, 4 vols., Pléiade, Paris: Gallimard

GINESTIER, Paul, 1979, Pour Connaître la Pensée de Camus, Paris: Bordas

GIRAUD, Henri-Christian, 2010, Politique de Camus, “Le Figaro. Albert Camus: l’Ecriture, la Révolte, la Nostalgie”, Hors-Série, Jan., p. 105.

GIULLARD, Pol, 1973, Camus, Paris: Bordas

MATHIAS, Marcello Duarte, 1978, A Felicidade em Albert Camus, Amadora: Bertrand

MATHIAS, Marcello Duarte, 2010, Os Dias e os Anos. Diário. 1970-1993, Lisboa : D. Quixote

REY, Pierre-Louis, 2010, “Lire Camus aujourd’hui”, Le Magazine Littéraire. Hors-Série, n.º 18, jan-fév., p. 19