Friday, November 28, 2008

MARIA DE LURDES RODRIGUES - MINISTRA DA EDUCAÇÃO - PARA QUE CONSTE

Para uns é corajosa e determinada. Para outros arrogante e inflexível. Tem mantido um braço-de-ferro com os sindicatos, mas admite voltar a sindicalizar-se. Para já, a ministra da Educação, que diz que se sente anarquista, tenta ter uma vida normal - ainda que tenha menos tempo para ir aos concertos da Gulbenkian e para fazer o jantar. Por Andreia Sanches, in Público.

Cansada? "Estou cansada como há muitos outros portugueses que estão cansados. Não dramatizo." Arrependida de ter suspendido a vida académica para assumir o cargo de ministra da Educação? "Todas as pessoas têm momentos em que sentem que não têm forças, tudo isso é normal, uma pessoa acha que não vai conseguir e depois consegue, porque vê que tem recursos que às vezes nem imaginava que tinha. Quando fiz o doutoramento, houve tantas vezes em que me apeteceu arrumar os papéis e desistir!" Chegou alguma vez a pedir a demissão ao primeiro-ministro? "Não vou partilhar isso com ninguém."

Maria de Lurdes Rodrigues tem 52 anos, é socióloga, professora universitária, investigadora, independente (nunca se filiou no PS porque "não aconteceu"). E mais? "A vida de uma pessoa não se resume em duas páginas." Um perfil de alguém é sempre uma coisa simplista, continua. Não acha sequer que tenha interesse.

Uma amiga próxima descreve-a como "uma pessoa low profile", com "uma vida normal", que gosta de música, de cinema, de ler e de cozinhar e que separa a esfera privada da profissional. "Há pessoas com quem trabalho há anos e que ainda assim sabem pouco da minha vida", diz a ministra da Educação.

Admite que, apesar do esforço de manter as mesmas rotinas de sempre, algumas acabaram por alterar-se, nomeadamente no último ano, o mais conturbado do mandato. "Não vou ao cinema com a mesma frequência, faço menos vezes o jantar em casa, este ano não consegui comprar os bilhetes para a Gulbenkian", onde não costuma perder a temporada de música. Mas insiste: "Ter momentos da nossa carreira em que fica mais difícil fazer o jantar para os amigos também não me distingue em nada. Toda a gente tem."

Antes avisa: "Só falo da minha vida como ministra." Comece-se por aí.

Reunir no aeroporto

Por regra entra às nove da manhã no Ministério da Educação, na movimentada Avenida 5 de Outubro, em Lisboa, e às nove da noite está em casa. Raramente faz noitadas de trabalho e, tanto quanto se lembra, houve apenas três ou quatro vezes em que foi necessário manter "as equipas a trabalhar pela noite fora". O que é preciso é que "quando se está a trabalhar se trabalhe mesmo".

Gosta de ir ao Parlamento. Diz que leva muito a sério essa função e que se prepara com cuidado. Lamenta que nem sempre os debates decorram de forma a que a opinião pública faça uma apreciação mais positiva da actividade política.

Recebe muitas cartas, não lê todas, tem uma equipa que faz a triagem. Mas já tem pegado no telefone para falar directamente com professores que lhe escrevem.

Quem com ela tem negociado nota que "não deixa transparecer muito os humores" - palavras de Albino Almeida, presidente da Confederação Nacional das Associações de Pais. O homem que foi em diversos momentos o único dos parceiros do ministério a defender publicamente Maria de Lurdes Rodrigues - "com ela, os pais apresentaram um conjunto de propostas que foram atendidas pela primeira vez em 30 anos, como a generalização das refeições no 1.º ciclo", sublinha Almeida - não consegue quantificar as horas de reunião que teve com ela, porque foram muitas. "Até no aeroporto nos reunimos para tratar de assuntos urgentes."

Mesmo nos momentos mais conturbados a ministra "não revela desânimo, nem euforia, diz sempre: 'Vamos ver! ‘

Já a comunicação com os sindicatos está longe de ser tão pacífica. Um ano depois de o Governo ter tomado posse, o discurso da Federação Nacional dos Professores (Fenprof) era bem revelador de uma relação tempestuosa (já tinha havido uma greve aos exames). Comunicado de Junho de 2006: "Os professores e educadores estão fartos dos descontrolados impulsos persecutórios da ministra da Educação e Portugal não suporta mais o seu olhar de medusa."

Medusa é uma figura da mitologia grega com capacidade de transformar em pedra o que fixa com os olhos.

Mário Nogueira, secretário-geral da Fenprof, diz que esta ministra se mostrou menos dialogante do que alguns dos seus antecessores; que por vezes é inflexível; e que se disponibilizou menos para encontros "destinados a discutir questões políticas".

"Provavelmente podia ter feito mais reuniões ou devia ter feito mais – é um balanço que não fiz ainda", admite Maria de Lurdes Rodrigues.

Nas escolas, o clima foi-se tornando mais tenso. A aprovação de um estatuto da carreira docente que criou duas categorias diferentes de professores e o novo modelo de avaliação do desempenho acabaram por resultar numa contestação inédita. O Presidente da República apelou à serenidade. No PS várias vozes criticaram Maria de Lurdes Rodrigues. Publicamente, a ministra mostrou-se, em diferentes situações, exasperada quando questionada pelos jornalistas.

Nos últimos oito meses, a professora universitária que até Março de 2005 era desconhecida do grande público assistiu às duas maiores manifestações de professores de que há memória. Na última, há menos de um mês, 120 mil dos 140 mil que dão aulas no país saíram à rua. "É má, é má, é má e continua", gritaram.

Nogueira diz que Lurdes Rodrigues "teve demasiadas afirmações infelizes" contra os professores. "Lembro-me de uma frase: 'Antes de um aluno ter abandonado a escola foi abandonado pelo professor.'" E os professores não a desculpam. Mesmo depois de ela ter ido ao Parlamento dizer: "Peço desculpa aos senhores professores por ter causado tanta desmotivação."

A ministra considera que muitas vezes o que aconteceu foi pior do que ser mal interpretada: "Houve um uso ilegítimo do que eu dizia... Pode ser culpa minha, admito. Os sindicatos e alguma imprensa tiveram alguma habilidade em rotular as medidas como sendo contra os professores. Por exemplo: [criar] as aulas de substituição é chamar faltosos aos professores."

Mas os críticos da ministra estão longe de estar apenas nas fileiras da oposição ou dos sindicatos. "Tenho uma longa relação de amizade e colaboração com a Maria de Lurdes Rodrigues e não queria estragar essa relação mais do que provavelmente já está", começa Manuel Villaverde Cabral, 68 anos, investigador, presidente do conselho directivo do Instituto de Ciências Sociais.

"Vai arrastar Sócrates "

Apesar das reservas, continua. "Não se pode ser 'autoritário' com os professores", fazer deles "o bode expiatório do insucesso escolar", ser "'liberal' com os alunos e completamente 'populista' com as chamadas famílias - que, de forma geral, não são capazes nem fazem qualquer esforço para apoiar os filhos no processo de aprendizagem -, quando toda a gente sabe que, em qualquer sociedade, os alunos só têm êxito quando os pais entram com a sua quota-parte de esforço!"

O sociólogo acha que o raciocínio político de Lurdes Rodrigues foi este: "O sistema educativo não funciona; a culpa é dos professores; o castigo será a avaliação!" Resultado: "A carreira dela como ministra não tem salvação. E, como o primeiro-ministro não pode demiti-la, sob pena de perder a face, é ela quem vai arrastar o engenheiro Sócrates para o 'inferno'." Villaverde Cabral, que falou ao P2 dois dias antes de o Governo anunciar que iria rever aspectos da avaliação do desempenho docente, faz questão de sublinhar que esta é a sua apreciação de "analista político".

"Eu?!" - é a resposta espontânea da ministra quando se lhe pergunta se vai arrastar o primeiro-ministro para o inferno.

Depois, recorda o que se passou nos últimos 30 anos ("Uma das marcas da política educativa tem sido a permeabilidade daquilo que é a instabilidade política ou eleitoral, muitos ministros, muitas hesitações, muito pára-arranca.")

Garante que tem o apoio de Sócrates e de todos os colegas do Conselho de Ministros a quem, ainda na semana passada, explicou ao longo de três horas o que se está a passar. Acrescenta que as eleições estão longe. "Estar neste momento a discutir votos não ajuda à resolução do problema."

E acaba com uma confissão: "Tenho que confessar que caí na mesma armadilha... Não sei se é uma armadilha, mas tive a mesma ambição que outros ministros da Educação tiveram que é fazer e fazer rápido. Temos os piores lugares nos rankings do abandono escolar, da qualificação dos adultos, da formação contínua. É uma situação sem paralelo e precisamos de introduzir mudanças de uma forma mais acelerada. Porque temos que apanhar o comboio do progresso. Há este sentido de urgência nos últimos 30 anos na Educação.

Parecemos, por vezes, o coelho da Alice: 'Estou atrasado, estou atrasado.'"

Para António Dornelas, professor no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE), em Lisboa, instituição onde Lurdes Rodrigues trabalhava quando foi chamada para o Governo, a contestação "atingiu níveis inaceitáveis". Houve ovos - atirados por alunos contra o carro ministerial durante os protestos contra o regime de faltas - "e insultos", lembra. "Mas quem não se recorda dos rabos ao léu em frente a São Bento contra as políticas de Manuela Ferreira Leite?", ministra da Educação no segundo Governo de Cavaco Silva, continua o ex-secretário de Estado do Emprego, antigo aluno da governante.

Assim, "não é verdade que ela [Lurdes Rodrigues] atraia conflitualidade social; é corajosa, competente, rigorosa e comparável, na ambição reformista, a Veiga Simão", ministro de Marcelo Caetano.

"Ela é obsessiva, intransigente, arrogante", contrapõe Fernando Rosas, historiador, militante do BE. Das várias reuniões que teve com ela no mundo académico ficou com boa impressão.

"Rigorosa e competente." Agora tem outra opinião. "O princípio da avaliação, por exemplo, é correcto. Mas a forma como o fez foi desastrosa. Não tem perfil político."Workaholic? Também
"O que tem revelado são características que já tinha antes", afirma, por seu lado, Maria Eduarda Gonçalves, doutorada em Ciências Jurídicas, investigadora do ISCTE. "Muito organizada, muito persistente, muito convicta; já o era nos trabalhos científicos e nas negociações", quando Lurdes Rodrigues presidia ao Observatório das Ciências e das Tecnologias.

"A minha experiência pessoal com ela no mundo académico é a de que trabalha bem em equipa. Não diria que é autoritária - diria convicta, persistente, com uma personalidade muito forte. O que na minha opinião são indicadores de que tem personalidade para resistir até à última."

Tem mesmo?

A ministra diz simplesmente que tem um mandato de quatro anos para cumprir e não se alonga. "Fazem-se análises simplistas: 'Não tem condições, não pode!' Essa análise cabe em primeiro lugar ao senhor primeiro-ministro."

Quando tudo acabar, e regressar à academia, até "pode acontecer" voltar a sindicalizar-se. Porque a sua carreira é a de professora e investigadora. Uma carreira que, diz, começou não se recorda bem como. "Quando tinha 20 anos, achava que podia ser muitas coisas diferentes."

Terá sido mais tarde que decidiu que iria ensinar. Já depois de ter passado por Moçambique, onde trabalhou como cooperante, e de ter terminado o curso de Sociologia em 1984, um ano depois do nascimento da filha (de cujo pai acabaria por divorciar-se).

António Firmino da Costa, sociólogo, colega do ISCTE, diz que Lurdes Rodrigues "era uma professora e investigadora entusiasta e muito bem preparada". Workaholic? Também.E antes disso? Sabe-se que fez o ensino primário no Colégio de Santa Clara da Casa Pia de Lisboa. Mas aí está um tema sobre o qual a ministra não fala. "Não respondo a perguntas sobre a minha vida privada ou sobre a minha infância."

Maria Alexandre Lousada, doutorada em Geografia, professora da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, conheceu-a já como estudante universitária, depois do 25 de Abril. Encontraram-se na sede do jornal anarco-sindicalista A Batalha. "Achávamos que podíamos contribuir para um mundo melhor." Mas nenhuma achava que um dia ia ter um cargo político.

Também estiveram juntas na Ideia, uma revista anarquista, de cultura e pensamento libertário. "Planeávamos, escrevíamos artigos, levávamos à tipografia, depois íamos com uns molhinhos distribuir pelas livrarias, fazíamos tudo", recorda Lousada.

"Ainda me sinto anarquista"

Lurdes Rodrigues acede a falar desse período do anarquismo - começa por dizer que não fala do passado, mas esta fase faz parte das memórias que já tem abordado nas entrevistas. "Havia uma tarefa que me dava muita paz, que era colar selos e cintas nos jornais ou nas revistas que iam ser expedidos."

Passou muitos fins-de-semana à volta de uma mesa grande a dobrar e colar, dobrar e colar, dobrar e colar. "É uma coisa muito mecânica, não exige nenhum pensamento elaborado, basta ritmo, o que permite fazer aquilo e conversar, contar histórias. É uma actividade desqualificada que mobiliza imenso outros aspectos da relação com as pessoas e essas tardes de sábado ou de domingo a colar cintas no jornal A Batalha e selos na Ideia é um trabalho de que guardo muito boa memória."

Há outros trabalhos manuais que lhe agradam, conta uma amiga. Talhava os seus vestidos. E as bonecas das filhas das amigas têm roupa feita por ela.

Mais tarde, Lurdes Rodrigues trabalhou no Arquivo Histórico-Social, na organização de espólios de diversos militantes anarquistas doados à Biblioteca Nacional. E participou na organização da exposição sobre os 100 anos do anarquismo em Portugal. "Ainda me sinto anarquista." O que é que isso significa? "É ter um quadro de valores, de pensamento que orientam a nossa acção."

Dedicou-se especialmente à sociologia do trabalho, doutorou-se em 1996 e a tese foi publicada em livro (Os Engenheiros em Portugal). No ano seguinte, o ministro da Ciência Mariano Gago convidou-a para ser presidente do Observatório das Ciências e das Tecnologias. O seu trabalho foi muito elogiado. E depois de sair, em 2005, foi sendo chamada a participar em colóquios e debates, ao mesmo tempo que no ISCTE reformulava o curso de Sociologia do Trabalho.

"Ela é uma pessoa que olha para as políticas educativas como um problema que é antes de mais de resultados. Como é que a Educação pode resolver os problemas do país?" Dar resposta a isto "implicava alterar a forma como se olha para as relações laborais dos professores, para as sujeitar à obtenção de resultados", diz Dornelas.

A carta do menino

A contestação não acabou. Esta semana houve mais protestos na rua e há uma greve marcada. "Tem-se dito que não se fazem as reformas sem os profissionais, mas a história ensina-nos que não se fazem com." Pede-se à socióloga do trabalho que explique: "Não gosto de fazer comparações, mas lembro o que foi o processo de reforma da Saúde levado a cabo pela ministra Leonor Beleza. Hoje percebemos que uma parte das medidas foram essenciais para a qualidade do sistema de Saúde. Mas foram incompreendidas na altura pela classe médica."

Actualmente, identifica como ponto crítico "a estruturação vertical da carreira" - o facto de ter passado a haver professores e professores titulares (sendo estes últimos os que assumem os cargos de coordenação e de liderança). "Os professores consideram que todos são colegas e que não há diferenças. Mas há. Mais salário e mais experiência não correspondiam a mais responsabilidade. O que estamos a propor contraria isto. Precisamos que as escolas estruturem o seu trabalho em torno de princípios de maior responsabilização."

Na rua, é por vezes abordada - "umas vezes dão-lhe os parabéns, outras vezes vão dizer que não concordam", diz Maria Lousada. A amiga acha que, apesar do clima que se vive, as abordagens não são excessivas.

Lurdes Rodrigues garante estar aberta a discutir "se a avaliação se faz com esta ou aquela componente mais". Mas entende que "não há razão para suspender o processo". E os dias de tensão vão provavelmente continuar.

Garante, contudo, que também tem tido bons momentos. "Muitos." Pede-se-lhe que partilhe um. "Uma carta que recebi de um menino que recebeu um computador para ter em casa, não sei já em que circunstância, e escreveu-me a dizer: 'Quando for grande, vou inscrever-me no PS.' É tocante."

Thursday, November 06, 2008

ENTREVISTA A D. JOSÉ POLICARPO

“Desconfiança em relação à banca seria um desastre para o país”

Cardeal Patriarca de Lisboa afirma que a confiança é um valor fundamental. Apoia o novo aeroporto, tem dúvidas sobre o TGV e pede ao Governo para não ceder a políticas eleitoralistas. D. José Policarpo aborda de forma directa os temas que têm concentrado a atenção do país. Das obras públicas (que “não devem ser abandonadas de uma maneira fácil”), à oposição (que tem sido “mais frágil do que a governação”), passando pela crise e os novos pobres (que o “discurso inflacionado dos políticos tende a esconder”).

A Igreja Católica e o senhor cardeal não têm partido político, mas não são imunes à instabilidade política do país. Um Governo de maioria ajuda a dar estabilidade?

Teoricamente sim. Uma das características dos governos democráticos que conhecemos é que são frágeis. A meio do mandato começam a pensar no próximo ciclo eleitoral. Mas não é só por isso, é também porque estão sujeitos (e bem) a mecanismos complexos de aferimento das decisões. Graças a Deus as ditaduras já acabaram. Houve ditadores que decidiram bem, mas por outro lado não estão sujeitos às peritagens das decisões. Os governos eleitos têm de convencer e não impor. Uma maioria é saudável.

E, ainda mais, no momento actual do país?

Não sei dizer, também não sou contra governos de coligação desde que apresentem perspectivas idênticas. Se uma corrente política está no governo e outra tem soluções parecidas, a convergência de soluções é boa.

Disse há pouco que esta crise vai fazer repensar modelos…

A civilização ocidental criou um paradigma de estilo de vida e de nível de vida. Há um estrato dentro da população que se sente injustiçada porque o Estado, as empresas, os sindicatos, porventura a Igreja, não lhes proporcionaram que atinjam esse nível de vida. Uma divisão social é inevitável. Todas as crises podem ter aspectos positivos. Aliás é nas grandes crises e nos grandes sofrimentos colectivos que a humanidade dá saltos qualitativos em frente.

Se fosse primeiro-ministro quais seriam as suas prioridades?

Não estou preparado para dar essa resposta. Há uma prioridade que é mais psicológica: penso que devemos fazer tudo para não criar o alarme. Já está suficientemente claro que a humanidade vai passar por um momento difícil. A pior coisa que podia acontecer agora era a desconfiança, por exemplo, em relação ao sistema bancário. Seria um desastre colectivo. Mas não é só essa confiança imediata, é também uma co-responsabilização de todos para ajudar com generosidade.

Tem visto esse discurso?

Penso que sim, esse é um dos dados positivos da reacção positiva de governos e empresas. Eu não percebo nada da Bolsa (nem da minha percebo quanto mais da dos outros...), mas é engraçado vê-la como barómetro da confiança ou desconfiança. O mundo empresarial é o que vai demorar mais tempo a recuperar porque é o que está mais ligado à circulação do dinheiro. Neste momento, é preciso um Orçamento do Estado que não renuncie ao funcionamento normal de Portugal, mas que seja muito objectivo e que dê prioridade ao problema das famílias e dos trabalhadores. Se as pessoas sentem que mais uma vez são elas que vão pagar o preço pela crise, isso não ajuda a confiança colectiva.

É uma preocupação que tem notado?

Tem havido no discurso político… mas há também uma confiança porventura inflacionada de que Portugal não correrá riscos.

O desenvolvimento do país passa por essas obras públicas?

Numa percentagem muito diminuta. Passa onde traz riqueza, emprego, desenvolvimento. Um país que não tenha as infra-estruturas necessárias não se desenvolve. Agora, se as infra-estruturas que se pretendem são mesmo essenciais, isso não sei dizer. Um bom aeroporto internacional é importante. Isso é fácil de compreender.

E as novas concessões rodoviárias?

A construção de mais uma auto-estrada pode trazer emprego a uma série de famílias, o que contribui para resolver o seu problema. Há um dado de que se tem falado pouco, que é o problema do endividamento. O que é que estes projectos significam em termos de endividamento público? Se às tantas devermos mais ao estrangeiro do que o que produzimos...

Não fazer as obras não era uma forma de parar o país?

As obras públicas devem-se fazer, se for possível. Tenho uma atracção pela modernidade, tudo o que são maravilhas da tecnologia sempre me fascinaram, por isso, ter um TGV a passar pelo nosso país fascina-me. Não vejo porque não. O problema é se é possível, necessário e há dúvidas sérias sobre isso. A minha tese em relação a estes grandes empreendimentos é que foram muito bem estudados e não há razão para serem abandonados de uma maneira fácil. Mas há-de haver a coragem para os retardar se houver razões sérias para isso.

Gostava que avaliasse os dois grandes poderes políticos e institucionais do país: por um lado, estes três anos e meio de Governo (com o momento importante de que nos aproximamos, três actos eleitorais que podem trazer importantes mudanças), por outro lado o desempenho do Presidente da República.

É evidente que não lhe vou fazer isso. Sou amigo das pessoas. Em relação ao Presidente da República- como em relação ao anterior - não tenho problemas em dizer que aprecio muito a serenidade e o equilíbrio com que tem seguido a alta magistratura da Nação. E o que digo do actual – de quem sou amigo pessoal há muito tempo -, digo em relação ao mandato de Jorge Sampaio. São pessoas que têm exercido muito dignamente o cargo. Quanto ao Governo, pessoalmente, relativizo a filiação partidária para estar mais atento às ideias, à qualidade e à acção. Nesse aspecto, penso que este Governo tem coisas notáveis, de abordagem dos problemas e de os implementar. Porventura não conseguiu todas as soluções anunciadas, como os governos anteriores também não.

Considera este um Governo reformista ?

Este Governo apareceu com algo que me foi simpático que foi a coragem de decidir – o que é bom, tendo em conta que os governos democráticos são normalmente frágeis. Há sectores da governação que me parecem globalmente positivos.

Quer dar um exemplo?

Não. Mas a este Governo, se me é devido pedir-lhe uma coisa, peço algo (que provavelmente é o impossível): que não sacrifique esta objectividade da governação ao desejo de ser eleito daqui a uns meses. Penso que os portugueses apreciariam muito um Governo que mantivesse a frieza e o objectivo de análise, mesmo em campanha eleitoral.

Disse recentemente que lhe faz muita confusão como um sistema global da economia e das finanças é tão frágil ao ponto de um banco ir à falência de um momento para o outro. Pediu “criatividade” para que se mude o sistema financeiro. Que criatividade é essa de que fala?

Penso que existem duas vertentes que se devem encontrar em busca de uma solução. Um desafio científico que envolve as ciências económica e política (que devem rever a convergência entre o papel do Estado e dos agentes da liberdade económica). A liberdade económica tem-se afirmado com uma das principais expressões de liberdade, mas como toda a liberdade tem que ser compensada com responsabilidade em ordem ao colectivo. Isto pressupõe uma dimensão ética e uma regulação de quem tem obrigação da harmonia de conjunto.

Foi-se longe de mais na liberdade económica?

Não sou técnico. Mas foi-se longe demais na ausência de dimensão ética. Hoje antes de chegarem estava a dar uma vista de olhos aos jornais e aparece mais um caso de um homem insuspeito, foi governador de velha data [no Alasca], símbolo da probidade e que está à beira de ir para a cadeia.

Mas a ética é muito difícil de regular…

A ética passa antes de mais por uma moderação na corrida ao lucro, à ganância. O sentido de todos os bens deste mundo é o bem comum. A doutrina social da Igreja sempre defendeu que a propriedade privada não é desligada do destino social dos bens. Mas parece que não houve apenas imprudência houve também incompetência e ganância na gestão destes produtos financeiros.

O Estado é co-responsável por esta matriz?

Repare, neste sistema de liberalismo económico como sabem tem-se oscilado entre uma demasiado intervenção do Estado e uma nula de intervenção do Estado. Por isso digo que a criatividade passa pela ciência política. Não sou apologista da nula intervenção do Estado mas também não sou partidário de um intervencionismo tal que condicione e limite a liberdade económica. A razão de ser do Estado é a harmonia da sociedade na medida em que a regulação ajude todos sem cortar a liberdade. Mas, por ventura, o Estado tem que ser dinamizado por dimensões éticas claras. Agora a desconfiança em relação à banca seria um desastre para o país.

A Igreja Católica acompanha de perto a evolução das franjas mais necessitadas da sociedade, nomeadamente, através das IPSS. Qual é, neste momento, o principal problema social do país?

O curioso desta crise, num certo aspecto, foi não termos a possibilidade e, porventura, critérios para embarcar nesses fundos que fazem parte do problema e ainda não se percebeu se fazem parte da solução. Portugal desse modo está numa situação menos grave porque num determinado momento (não sei por que razão, certamente porque não tinha possibilidade de o fazer) não embarcou nesses fundos. Por outro lado esta crise cai em cima de dados preocupantes: conheceis todos a taxa de desemprego, conheceis todo o trabalho precário, a institucionalização do recibo verde, conheceis bem a quantidade de cidadãos portugueses que mesmo tendo trabalho têm um ordenado que não dá para as despesas de todo o mês…

Os novos pobres, os que trabalham mas que não conhecem pagar as suas despesas…

Os novos pobres que não entram nos ‘rankings’ como desprotegidos mas que são pobres porque a sua situação económica não é suficiente. Sem me pronunciar sobre o ponto de vista técnico, acho que o sentido das medidas tomadas para ajudar estas pessoas é o correcto. Mas o consumo tem limites e a publicidade como tem sido feita também deve ser posta em causa com esta crise.

Mas qual é o maior problema social do país?

Os novos pobres são um novo dado que agrava a ideia que já tínhamos de que existe um sector vasto da nossa população nessas condições. É evidente que a Igreja não tem soluções globais para este fenómeno, nem deve tender tê-las, porque é uma função da sociedade enquanto um todo. Penso que todos devemos trabalhar para ter uma ideia mais exacta sobre isso, que o discurso político tende a esconder, a camuflar.

Não se diz a verdade em Portugal?

Penso que uma coisa ou outra se dirá. Mas o cidadão comum está numa situação de não saber se o discurso que está a ouvir é verdadeiro ou não. A desconfiança no discurso é um dos traumatismos da nossa convivência. O que não quer dizer que nunca se diz a verdade, Santo Deus! Mesmo os que mentem às vezes se distraem não é? (risos)

Mas no discurso político, mente-se?

Numa compreensão bastante global que não é apenas no discurso dos políticos. Às vezes há discursos que tem por detrás desconhecimento da realidade, incompetência. Aliás esse é um drama da nossa cultura contemporânea: o sentido das palavras esvaziou-se e não mobiliza. Essa desconfiança é perfeitamente justa. Nós sentimos esse fenómeno dentro da própria Igreja. Temos que ter sempre em conta que há duas componentes essenciais da credibilidade das palavras: ela corresponder à verdade e corresponder a um testemunho de vida (eu digo coisas em que me empenho). O fazer é mais importante do que o dizer - É um velho princípio da Sagrada Escritura.

E tem faltado esse fazer?

Não sei, não é minha intenção fazer juízos políticos. A governação também se complicou muito nos últimos tempos.

Porquê?

Porque a sociedade é complexa. Não vou transformar-me em analista político, mas tenho a sensação que o problema é tanto dos governos como da oposição. A oposição devia ser uma forma de apresentar alternativas.

E não apenas uma crítica.

A saúde e a harmonia do crescimento das sociedades ocidentais dependem muito disso. Quero dizer que as oposições têm sido mais frágeis ainda nos últimos anos do que a governação

Diário Económico - Entrevista conduzida por António Costa e Francisco Teixeira