Monday, January 05, 2015

A lança na City


1. Sócrates. Duas citações de Camus que recolhi num livro surpreendente de Eduardo Graça (2013), Centenário de Albert Camus:

(…) Dilaceração por ter aumentado a injustiça julgando-se servir a justiça. Reconhecê-lo pelo menos e descobrir então essa dilaceração maior: reconhecer que a justiça total não existe. Ao cabo da mais terrível revolta, reconhecer que não se é nada, isso é que é trágico.
(…) Título da peça. A Inquisição em Cádis. Epígrafe: “A Inquisição e a Sociedade são os dois grandes flagelos da verdade” Pascal. Camus, Caderno n.º 6, Abril 1948 a Março 1951

Visitei José Sócrates, detido em Évora, em prisão preventiva, num dia de sol radioso e frio intenso. Na primeira citação creio que ele se reverá, mas não na expressão “reconhecer que não se é nada”. Na verdade, a forma como pensa, reage e age, em circunstâncias claustrofóbicas, representa tudo menos a perda ou redução da sua identidade. Quanto à segunda frase, sobre a peça que Camus escreveu naquele período, a memória dos “flagelos da verdade” terá que ser eterna, inapagável. Nunca estaremos suficientemente longe dos tempos rudes e perigosos da guerra fria, quando Camus, dissidente precoce do PC, afirmava “o fascismo é a glorificação do carrasco por ele próprio; o comunismo, mais dramático, a glorificação do carrasco pelas vítimas”.

Libertados do fascismo e do comunismo, ao ponto de já quase não os mencionarmos, permanece o contexto que gera inquisições. Acresce a impossibilidade de afastar a política da judicialização, ou vice-versa. Não apenas a política partidária – basta ouvir Marques Mendes e os que se lhe seguirão, ou lerem-me aqui e agora – mas sobretudo a política centrada no poder, sua conquista, afirmação e prática.

2. Ano Velho de má memória. Foi-se. Sem direito a epitáfios. Basta ler as mensagens de Passos Coelho, Portas e Cavaco para se ver que nem a agência trouxe pompas fúnebres. Ficou tudo em casa. A nota positiva na mensagem de quem mais deve foi o alerta para o populismo. Fixado o calendário de 2015, todos vão esperar. Passos espera que Portas reconheça as misérias próprias e exija menos da coligação. Portas espera que Passos enfraqueça internamente e as sondagens lhe mostrem que, sem o parceiro, a direita fenece. O Presidente, escolhido o redondel, espera que a lide decorra consoante o programa, certo de que, por qualquer motivo imprevisto, suspenso ou alterado o espectáculo, não se restitui a importância dos bilhetes. Mantém o trompetista atento, apenas para anunciar a mudança de lide. E mandou recolher a música, por desnecessária. Deixem-me citar Eduardo Graça;

Esperar é deixar o tempo passar, compreender que o tempo não nos espera. Não é o tempo que nos envelhece. O combate da nossa vida não é contra o tempo. É contra nós mesmos. O que somos para os outros e como nos vemos a nós próprios. É como nos sentimos quando nos olhamos ao espelho e nos vemos. Sós. Sem mais ninguém. Ver correr à desfilada as imagens dos que mais amamos. É isso viver. Na fronteira do vazio da vida que não deixa nada para contar. (…) As vidas comuns. (…).Vidas com prazo. Finitas. Escreveu Camus: “a imortalidade é uma ideia sem futuro”. Observação certeira.

Quem pense que basta deixar correr os nove meses que faltam, envelhece mais depressa. Perdeu o combate contra si mesmo, antecipou a perda da imortalidade.

3. Grécia. Pode a Grécia ajudar Portugal? Poderá uma experiência, ao menos diferente da terapêutica habitual, trazer alguma esperança a outros doentes? Poderão os médicos admitir a parte errada do diagnóstico e todo o erro da terapia?

Tantas dúvidas, tantas incertezas! Vamos por partes. Antes de mais, será necessário que o Syriza ganhe as eleições de 25 de Janeiro, o que pode bem ser apenas uma miragem de inverno. Depois, que consiga formar uma maioria, o que já seria uma montanha a vencer. A seguir, que convença os credores a tentar outra terapêutica, o que já será atravessar o Mar Vermelho caminhando sobre as ondas. Depois, que seja possível instalar o Rei Salomão na presidência do ECOFIN. Trabalhos de Cíclope, que podem degenerar em Sísifo. Muita coisa, mesmo para o país da mitologia, da filosofia e da democracia.

Seria pelo menos interessante que os pressupostos do erro europeu fossem questionados. Que o BCE, finalmente disposto a injectar liquidez nos mercados para tamponar o esgoto da deflação, o conseguisse. Que os credores levassem a sério os economistas gregos autodenominados de marxistas, e aceitassem negociar inovações em troca da conclusão de reformas apenas esboçadas. Que o Syriza convencesse os seus militantes a tais reformas, o que parece hoje mais difícil que convencer a Europa. Coragem e arreganho não lhe faltaram e até duas reuniões com grandes credores já abriram espaço negocial. Incidentalmente, teríamos nós “unhas” para cravar uma lança na City?

(Artigo publicado hoje no PÚBLICO, de autoria de António Correia de Campos, que cita o livrinho que publiquei para os amigos em 2013, pelo Centenário do nascimento de Albert Camus.)