Wednesday, April 04, 2007

O PROBLEMA CLÁSSICO DOS GOVERNOS PORTUGUESES

Um dia destes, precisamente em 17 de Março passado, deparei-me com uma crónica de Vasco Pulido Valente intitulada “Meio mandato” cujo conteúdo se consumia em demolir a governação de Sócrates.

Nada surpreendente na pena do cronista, nem sequer especialmente demolidor para o governo, tendo o dito tão-somente, assestado as baterias na banalização da meta do deficit afirmando, para fechar, que o governo “talvez com muito esforço, e bastante brutalidade, consiga baixar o deficit para três por cento? E daí?”

Noutro passo, reforçando essa ideia, avança com uma comparação surpreendente: “No princípio do mandato, Sócrates tinha o problema clássico dos governos portugueses, com excepção dos governos de Salazar: o deficit.”

Pura mentira pois se a diabolização da I República ajudou na tarefa central de “restaurar a ordem”, a caminho da “ditadura nacional”, Salazar, como ministro das finanças, entre 1928 e 1932, defrontou-se com “o problema clássico dos governos portugueses”: o deficit já com a certeza, porém, de que não teria que suportar as “maçadas” da democracia.

Não foi por acaso que Salazar dedicou o seu primeiro discurso, no acto de posse como Ministro das Finanças, em 27 de Abril de 1928, véspera do seu 39º aniversário, exclusivamente, ao problema do deficit. Transcrevo-o na íntegra:

"SR. PRESIDENTE DO MINISTÉRIO: (General Vicente de Freitas):

Duas palavras apenas, neste momento que V. Exa., os meus ilustres colegas e tantas pessoas amigas quiseram tornar excepcionalmente solene.

Agradeço a V. Exa. o convite que me fez para sobraçar a pasta das Finanças, firmado no voto unânime do Conselho de Ministros, e as palavras amáveis que me dirigiu. Não tem que agradecer-me ter aceitado o encargo, porque representa para mim tão grande sacrifício que por favor ou amabilidade o não faria a ninguém. Faço-o ao meu País como dever de consciência, friamente, serenamente cumprido.

Não tomaria, apesar de tudo, sobre mim esta pesada tarefa, se não tivesse a certeza de que ao menos poderia ser útil a minha acção, e de que estavam asseguradas as condições dum trabalho eficiente. V. Exa. dá aqui testemunho de que o Conselho de Ministros teve perfeita unanimidade de vistas a este respeito e assentou numa forma de íntima colaboração com o Ministério das Finanças, sacrificando mesmo nalguns casos outros problemas à resolução do problema financeiro, dominante no actual momento. Esse método de trabalho reduziu-se aos quatro pontos seguintes:

a)que cada Ministério se compromete a limitar e a organizar os seus serviços dentro da verba global que lhes seja atribuída pelo Ministério das Finanças;

b) que as medidas tomadas pelos vários Ministérios, com repercussão directa nas receitas ou despesas do Estado, serão previamente discutidas e ajustadas com o Ministério das Finanças;

c) que o Ministério das Finanças pode opor o seu «veto» a todos os aumentos de despesa corrente ou ordinária, e ás despesas de fomento para que se não realizem as operações de crédito indispensáveis;

d) que o Ministério das Finanças se compromete a colaborar com os diferentes Ministérios nas medidas relativas a reduções de despesas ou arrecadação de receitas, para que se possam organizar, tanto quanto possível, segundo critérios uniformes.

Estes princípios rígidos, que vão orientar o trabalho comum, mostram a vontade decidida de regularizar por uma vez a nossa vida financeira e com ela a vida económica nacional.

Debalde porém se esperaria que milagrosamente, por efeito de varinha mágica, mudassem as circunstâncias da vida portuguesa. Pouco mesmo se conseguiria se o País não estivesse disposto a todos os sacrifícios necessários e a acompanhar-me com confiança na minha inteligência e na minha honestidade – confiança absoluta mas serena, calma, sem entusiasmos exagerados nem desânimos depressivos. Eu o elucidarei sobre o caminho que penso trilhar, sobre os motivos e a significação de tudo que não seja claro de si próprio; ele terá sempre ao seu dispor todos os elementos necessários ao juízo da situação.

Sei muito bem o que quero e para onde vou, mas não se me exija que chegue ao fim em poucos meses. No mais, que o País estude, represente, reclame, discuta, mas que obedeça quando se chegar à altura de mandar.

A acção do Ministério das Finanças será nestes primeiros tempos quási exclusivamente administrativa, não devendo prestar larga, colaboração ao Diário do Governo. Não se julgue porém que estar calado é o mesmo que estar inactivo.

Agradeço a todas as pessoas que quiseram ter a gentileza de assistir à minha posse a sua amabilidade. Asseguro-lhes que não tiro desse acto vaidade ou glória, mas aprecio a simpatia com que me acompanham e tomo-a como um incentivo mais para a obra que se vai iniciar."

Quando, em 5 de Julho de 1932, quatro anos depois de ter proferido este discurso, Salazar assumiu a Presidência do Conselho (Primeiro Ministro), encontrou “as contas públicas em ordem” pela simples razão de que fora ele próprio que a tal tarefa se dedicara.

Nos dias de hoje a ideia de que pôr “as contas públicas em ordem”, escondendo um projecto de poder pessoal, é ridícula pois mesmo que se discorde do estilo, Sócrates, ao contrário de Salazar, não se pode dar ao luxo de oferecer ao país o sacrifício de uma vida inteira dedicada ao exercício do poder.

Em Portugal o autoritarismo e a solidão dos chefes continuam, no imaginário popular, a ser virtudes reconhecidas. Mas os chefes de hoje, beneficiando, subliminarmente, dessa perversa herança, estão limitados, quer no tempo quer nos poderes, por um regime que coloca nas mãos do povo, através de eleições livres, o seu destino.

A democracia, apesar de todos os defeitos, permite o exercício do máximo de liberdade possível na escolha dos governos e até a suprema felicidade, para as elites urbanas bem pensantes, de chorar as desgraças dos deserdados defendendo os privilégios dos que vivem à custa delas.

E eu até me posso dar ao luxo de publicar, na íntegra, o discurso de Salazar acerca do “problema clássico dos governos portugueses”: o deficit”, sem temer ser censurado ou perseguido. É a democracia e faz toda a diferença!

(Artigo publicado na edição de hoje do "Semanário Económico")