Saturday, November 27, 2004

Aníbal Cavaco Silva - Os políticos e a lei de Gresham

Nos anos recentes, muito se tem falado de uma certa degradação da qualidade dos agentes políticos em Portugal, da sua credibilidade, competência e capacidade para conduzir os destinos do país. Independentemente de ser de facto assim, o certo é que há hoje uma forte percepção da parte da opinião pública de que, em geral, a qualidade dos agentes políticos tem vindo a baixar.

Para isso tem contribuído, entre outros factores, o afastamento crescente das elites profissionais, dos quadros técnicos qualificados da vida político-partidária activa. Os políticos profissionais de valor, com uma carreira seriamente estruturada, ficam, assim, mais mal acompanhados.

Num documento da Associação para o Desenvolvimento Económico e Social (SEDES), de Fevereiro de 2002, falava-se da «centrifugação de alguns dos melhores valores do pessoal político e da gestão superior do Estado e incapacidade de atrair novos valores, nomeadamente entre os mais jovens» como um dos sinais preocupantes da deterioração do nosso sistema político.

Três razões podem ser avançadas para explicar a atitude de afastamento das elites profissionais da vida político-partidária.

Por um lado, a sua convicção de que, fazendo Portugal parte da União Europeia, não há risco de retrocesso do regime democrático de tipo ocidental em que vivemos.

Por outro, o convencimento das elites de que a participação activa na actividade política tem custos elevados - custos materiais e de exposição pública - e de que podem influenciar as decisões políticas de outra forma - através de contactos pessoais, associações ou corporações de interesses.

Mas talvez a razão mais forte do afastamento das elites resida na ideia de que, nos dias de hoje, o mercado político-partidário não é concorrencial e transparente, de que existem barreiras à entrada de novos actores, de que não são os melhores que vencem porque os aparelhos partidários instalados e os oportunistas demagógicos não olham a meios para garantir a sua sobrevivência nas esferas do poder.

A ser assim, a lei da economia, conhecida pela lei de Gresham, poderia ser transposta para a vida partidária portuguesa com o seguinte enunciado: os agentes políticos incompetentes afastam os competentes. Segundo a lei de Gresham a má moeda expulsa a boa moeda.

O afastamento das elites profissionais (e também das elites culturais) da vida político-partidária, ao contribuir para a deterioração da qualidade dos agentes políticos, prejudica a credibilidade das instituições democráticas e a ética de serviço público, aumenta os erros dos decisores políticos face aos objectivos de bem-estar social definidos e favorece os comportamentos políticos em função de interesses particulares ou partidários, em lugar do interesse nacional. Daqui resulta menos desenvolvimento e modernização do país, mais injustiças sociais e maior desencanto dos cidadãos em relação à democracia.

Já em Outubro de 2001, num documento divulgado pela Associação Empresarial de Portugal, se manifestava preocupação pelos custos da «mediocridade na actividade política».

Sendo assim, uma questão que tenderá a assumir relevância crescente para a qualidade da nossa democracia e para o desenvolvimento e modernização do país será a de como trazer de volta à vida político-partidária pessoas qualificadas, dispostas a servir honestamente a comunidade.

Nesse sentido, interessaria desenvolver acções visando o reforço da transparência e democraticidade na actividade partidária, o aprofundamento da educação para a cidadania activa e a melhoria da informação sobre a actuação dos agentes políticos. Tal como interessaria promover debates sérios e aprofundados sobre as políticas públicas e ter a coragem de aumentar a remuneração dos agentes políticos, por forma a atrair quadros de reconhecido valor e que vivem dos rendimentos do trabalho.

Se nada for feito, é provável que a situação continue a degradar-se e só se inverta quando se tornar claro que o país se aproxima de uma crise grave. Então, algumas elites poderão chegar à conclusão de que está em causa o seu próprio futuro e dos seus familiares e que os custos de alheamento da actividade político-partidária são maiores dos que os custos de participação.

Mesmo assim, haverá que contar com a resistência à mudança dos aparelhos partidários instalados, o que pode levar ao arrastamento da situação.

Do ponto de vista nacional, seria desejável que o país não descesse até ao ponto de crise e que a inversão da tendência ocorresse o mais cedo possível.

Face aos sinais preocupantes que têm vindo a emergir nos mais variados domínios, do sistema educativo ao sistema de justiça, da administração pública à economia, penso que é chegado o momento de difundir na sociedade portuguesa um grito de alarme sobre as consequências da tendência para a degradação da qualidade dos agentes políticos, de modo a que os portugueses adoptem uma atitude mais participativa e exigente nas suas escolhas eleitorais e as elites profissionais acordem e saiam da posição, aparentemente cómoda, de críticos da mediocridade dos políticos e das suas decisões e aceitem contribuir para a regeneração da actividade política.

Por interesse próprio e também por dever patriótico, cabe às elites profissionais contribuírem para afastar da vida partidária portuguesa a sugestão da lei de Gresham, isto é, contribuírem para que os políticos competentes possam afastar os incompetentes.

Recordo que Portugal, desde 2001, tem vindo sistematicamente a afastar-se do nível de desenvolvimento da vizinha Espanha e da média da Europa dos quinze e que esta tendência irá manter-se no futuro, de acordo com as previsões para 2005-06 recentemente publicadas pela Comissão Europeia. Até quando?

Artigo de Cavaco Silva
In "Expresso", de 27 de Novembro de 2004

Sunday, November 14, 2004

Imigração - "O problema social mais grave da Europa"


Estatística


Quando eu nasci havia em Portugal
(em Portugal continental
e nas ridentes,
verdes e calmas
ilhas adjacentes)
uns seis milhões e umas tantas mil almas.
Assim se lia
no meu livrinho de Corografia
de António Eusébio e Morais Soajos.
Hoje, graças aos progressos da Higiene e da Pedagogia
já somos quase dez milhões de gajos

António Gedeão

Nos próximos decénios não será mais possível escrever um poema como o que serve de epígrafe a este artigo.

Não é, pois, possível levar a sério qualquer programa político que omita os problemas da demografia e da imigração quando todas as sociedades ocidentais estão confrontadas com as questões do envelhecimento demográfico e da chegada, em massa, aos seus territórios, de estrangeiros em busca e trabalho.

São estas questões que, paradoxalmente, não merecem ser abordados, com autonomia e de forma estruturada, nos programas políticos dos candidatos à liderança do PS.

Estes não são fenómenos conjunturais e passageiros. O envelhecimento demográfico e a imigração, sendo duas faces da mesma moeda, “vieram para ficar”, constituindo-se como problemas de cuja resolução depende, em boa medida, a própria sobrevivência do nosso modelo de sociedade.

Como resultado da queda da natalidade e do aumento da esperança de vida os mais “velhos” serão, muito em breve, em número superior aos jovens e todas as projecções confirmam que os descontos dos activos serão, a médio prazo, insuficientes para pagar aos pensionistas.

O estudo recente “Contributos dos imigrantes na demografia portuguesa”, de Maria João Valente Rosa, aponta para a necessidade de Portugal “importar” 188.000 imigrantes por ano, durante 20 anos, para que em 2021 não se tenha degradado a relação estatística entre pessoas activas e pessoas idosas que o país detinha em 2001.

Em Portugal, por outro lado, o número de beneficiários das pensões de invalidez, velhice, sobrevivência e de rendimentos provenientes do fundo de desemprego e do rendimento mínimo garantido, em 2003, elevava-se a 3,5 milhões, representando 64% da população activa. («Retracto Territorial de Portugal», divulgado pelo INE).

Estes dados, só por si, ilustram a dimensão do desafio político, económico e social que a demografia e a imigração comportam para o futuro de Portugal.

Convenhamos que é assustador que os programas políticos dos partidos com aspirações ao governo, como é o caso do PS, omitam ou desvalorizem, em particular, o problema da imigração. Por isso apoiei, colaborando na redacção da moção de política global “Uma Esquerda com Raízes e com Futuro”, no âmbito do Congresso do PS, que chama esse tema ao debate.

Ralf Dahrendorf num artigo recente, publicado no “Público”, assinala a importância do problema da imigração afirmando que “actualmente, na Europa, este talvez seja o problema social mais grave, porque ninguém tem uma ideia clara sobre a forma de resolver o choque de culturas que daí resulta.”

A imigração é uma daquelas questões que, no ocidente, torna cada vez mais pertinente a pergunta: afinal para que servem os partidos e os governos, senão para enfrentar e resolver os problemas mais graves e difíceis com que se deparam as nossas sociedades?



Friday, November 12, 2004

Guterres no I Congresso da Democracia Portuguesa

Intervenção integral de António Guterres no I Congresso da Democracia Portuguesa - Associação 25 de Abril

Caras e Caros Amigos,

Minhas Senhoras e Meus Senhores,

Sendo conhecido que há algum tempo decidi abster-me de qualquer intervenção na vida política portuguesa, canalizando para outras formas de agir uma vocação de serviço público a que não penso renunciar, poderá perguntar-se porque aceitei este convite da Associação 25 de Abril. A razão é simples. Precisamente por ser da Associação 25 de Abril, que representa todos aqueles a quem, em primeira linha, devemos a refundação da Democracia e da República.

O convite era, por isso, irrecusável e só por isso aqui estou.

Faço-o num clima carregado da vida política, não só portuguesa, mas europeia e global. Há um sentimento generalizado de insegurança e sinto o germinar das sementes do desinteresse ou da desorientação e do desânimo.

A insegurança é um fenómeno complexo, individual e colectivo. Diz respeito não apenas às ameaças físicas, quer locais, como o crime , quer globais, como o terrorismo, mas também aos riscos que afectam o emprego e o futuro do bem estar económico e social.

É um sentimento complexo e perigoso, por ser um caldo de cultura fácil para que se desenvolva a irracionalidade dos comportamentos – a adesão a populismos políticos ou fundamentalismos religiosos, a expressão da xenofobia e do racismo.

Tudo isto é tanto mais nocivo quanto mais deficiente o funcionamento da democracia e maior o divórcio entre o sistema político e os cidadãos e a sociedade civil, ou entre a substância dos problemas reais e a natureza do debate político.

Não sou dos que pensam que a democracia em Portugal esteja em risco, que a União Europeia possa implodir a qualquer momento, que a Terra esteja à beira de uma qualquer confrontação civilizacional catastrófica.

Mas compreendo perfeitamente a perplexidade que vejo à minha volta, com as pessoas a interrogarem-se sobre para onde vai o nosso país, as contradições do projecto europeu e o que está a acontecer ao mundo, em que todos os demónios se parecem ter libertado.

A equação nacional foi fácil de resolver a meio da década de 80. Portugal era o país de mão-de-obra barata num mercado europeu mais ou menos fechado. A adesão às então Comunidades Europeias oferecia a solução. Simultaneamente consolidava-se de forma irreversível a democracia e reuniam-se todas as condições para o progresso económico e social, estimulado pelas ajudas comunitárias e pelo investimento directo estrangeiro, para o qual constituíamos um destino particularmente apetecível.

Todo este panorama se alterou com a queda do muro Berlím, o fim da guerra fria e a abertura da Europa a leste, com a emergência de um novo paradigma - o da economia e da sociedade do conhecimento, e com o acelerar da globalização económica, derrubando progressivamente as barreiras à liberalização do comércio internacional.

Portugal confronta-se hoje com os seus próprios problemas de fundo: A muita baixa qualificação média da população activa, a fraca capacidade cientifica e tecnológica, os persistentes entraves da herança napoleónica, centralista e burocrática da nossa administração, o escasso dinamismo da sociedade civil. Felizmente que a opção por estar no centro do projecto europeu e a entrada para o euro nos protegem dos efeitos mais devastadores dos choques externos, embora não cheguem para evitar a estranha sensação de que corremos o risco de ir caminhando insensívelmente para uma situação cada vez mais periférica, irrelevante e medíocre.

Aliás a aliança entre a mediocridade e a inveja sempre foi o grande obstáculo ao desenvolvimento de centros de excelência no nosso país.

Não interessa hoje discutir os méritos da prioridade máxima em tempos atribuída à educação, à ciência, à cultura e ao investimento e do empenhamento de Portugal, aparentemente paradoxal para um país relativamente mais atrasado, no desencadear da chamada estratégia de Lisboa da União Europeia, como alavanca de modernização, competitividade e reforma da economia, com reforço do emprego a da coesão social, na convicção de que Portugal se transforma sempre mais facilmente por impulso exterior do que por dinâmica própria.

Poderá sempre questionar-se se as orientações então dadas foram as mais adequadas, se precisavam ou não de ser revistas, corrigidas ou melhoradas. O que me deixa realmente perplexo é o desprezo a que qualquer daqueles objectivos tem sido recentemente votado.

É como se o conhecimento não fosse hoje a principal fonte de criação de riqueza, a inovação o caminho para transformar conhecimento em riqueza, e a iniciativa o instrumento indispensável para essa transformação se concretizar.

Conhecimento, inovação e iniciativa, num quadro de solidariedade e coesão, parecem-me os três pilares de um projecto nacional capaz de combater a perificidade, a irrelevância e a mediocridade. Para eles deveriam convergir todas as políticas e todos os esforços de apelo à participação da sociedade.

Apesar do empenho determinado de alguns, a verdade é que o debate político tem passado ao lado destas questões.

Não tenho uma aproximação moralista ao proliferar do “big brother” e de outros chamados “reality shows”, como forma de entretenimento. Não vou sequer discutir a sua estética e o seu bom gosto. O que me preocupa é que, com uma promiscuidade crescente entre o poder político (e até o poder judicial) e os media, a expressão pública da vida política portuguesa cada vez se pareça mais com um permanente “reality show”, ofuscando o debate das questões essenciais.

Não vejam nisto um ataque à comunicação social, coisa que sempre me abstive de fazer. O problema está sobretudo nos responsáveis do poder político que sucumbem àquela promiscuidade e à tentativa de manipular os media sem perceberem que acabarão por ser destruídos por eles.

Mas não é caso para desespero. Reconhecendo os riscos da situação presente, sou dos que acreditam, no entanto, que ela não impedirá a afirmação crescente de uma alternativa que, apostando no conhecimento, na inovação e na iniciativa, possa estabelecer de forma participada com os portugueses um projecto mobilizador e ajudar a reconciliá-los em pleno com a vida política democrática.

Minhas Senhoras e Meus Senhores,

Idêntica incomodidade sentem hoje muitos dos que acreditam que a União Europeia é, não só um instrumento essencial para garantir o bem estar económico, social e ambiental do nosso continente, mas um factor indispensável a um maior equilíbrio nas relações internacionais.

Só que, num momento em que a sua unidade seria mais importante do que nunca, a Europa está hoje profundamente dividida, incapaz de falar a uma só voz ou agir com eficácia perante a generalidade das grandes questões de alcance global.

O alargamento a leste tem um significado histórico iniludível. É uma exigência irrecusável de solidariedade e de reencontro da Europa consigo própria e com o seu passado. Mas o alargamento deveria ter sido antecedido ou, pelo menos, acompanhado pelo aprofundamento da integração e não o foi.

Vivemos mesmo a situação paradoxal do ser preciso cada vez mais Europa, quando as opiniões públicas de diversos estados membros aceitam com cada vez maior relutância a própria Europa que temos, em larga medida empurrados pela obsessão eleitoralista com as agendas políticas nacionais de muitos dos seus dirigentes.

Se, na perspectiva de um alargamento continuado aos Balcãs ocidentais e à Turquia, a Constituição não for ratificada, o que é bem provável, então cresce a probabilidade de uma diluição do projecto político e social europeu, confinando-se a União a um mero espaço económico. Se assim for Margareth Thacther acabará por ganhar a sua aposta, embora com décadas de atraso.

Ninguém tem mais interesse que os portugueses em combater esta tendência e evitar que se concretize .

A aposta na Europa política não está perdida. Mas já não basta a vontade dos governos, se é que ela em alguns casos existe. É preciso trabalhar a todos os níveis pela criação progressiva de um espaço público europeu, de uma opinião pública europeia, de uma sociedade civil organizada à escala europeia, para que seja possível vencer o défice democrático que causa o divórcio entre a construção da Europa política e os cidadãos.

O movimento em favor da paz, antes e durante a guerra do Iraque, que mobilizou transversalmente todo o continente, mesmo quando os governos aprovavam a iniciativa unilateral da administração Bush, demonstra que a emergência desse espaço público europeu é, apesar de tudo, possível.

Mas, se a diluição que referi vier a mostrar-se inevitável, então poderá surgir em alguns países da Europa continental uma dinâmica política para construir, dentro da União Europeia e muito para lá do que hoje permitem as chamadas cooperações reforçadas, um núcleo duro de integração muito mais ambiciosa, envolvendo não só a segurança, defesa e política externa, mas também uma mais intensa cooperação económica, social e ambiental.

Se isso suceder é, em minha opinião, absolutamente indispensável que Portugal dele faça parte, o que implica que prossigamos permanentemente uma estratégia, no centro de todos os desenvolvimentos integradores da União, que o venha a tornar possível em qualquer momento.

Minhas Senhoras e Meus Senhores,

O progressivo agravamento da situação internacional a que vimos assistindo diz respeito a cada um de nós. Sem prejuízo da opção europeia, a nossa identidade assenta em valores universalistas e foi forjada numa permanente encruzilhada de civilizações.

Estamos perante um claro antagonismo de posições. De um lado, o unilateralismo, aliado à agenda política neo-conservadora e à ideologia económica neo-liberal. Do outro, o projecto de uma globalização de rosto humano, que se traduza numa oportunidade para todos e de uma arquitectura das relações internacionais mais equilibrada, no respeito pelo direito e pela justiça. Este contraste não se traduz apenas ao nível dos governos das principais potências, mas é algo que a todos deve mobilizar, no confronto intelectual, na acção cívica e política, na utilização das modernas tecnologias da sociedade em rede à escala global.

Enfrentamos quatro grandes perversões na situação internacional. A exclusão, o medo, a irracionalidade e o unilateralismo.

Desde logo a exclusão:

- É política e moralmente intolerável que, no início do século XXI, após um período de progresso tecnológico sem paralelo na história, um terço da humanidade viva com menos de dois dólares por dia, em estado de pobreza absoluta. Mil milhões de pessoas nem sequer têm um dólar por dia.

- É política e moralmente insustentável que o continente Africano, com pequenas manchas de excepção, esteja completamente excluído dos benefícios da globalização, condenando à morte uma grande parte da sua população pela guerra, pela miséria, pela doença e pela fome.

Poderia continuar durante horas dando números que arrepiariam a sensibilidade dos mais indiferentes. Não creio que seja necessário. Importa é perguntar se não poderemos fazer nada. A resposta é que podemos e muito. Está em curso um largo movimento de opinião política à escala mundial e há vários governos mobilizados no mesmo sentido para fazer de 2005 o ano do cancelamento da dívida dos países mais pobres, o ano de uma grande iniciativa da comunidade internacional de apoio à África, em torno da concretização dos objectivos da declaração do milénio, o ano em que seja possível concluir um acordo de comércio na OMC, que seja um verdadeiro acordo para o desenvolvimento e não mais um instrumento de desigualdade e injustiça.

Em segundo lugar, o medo – a perversão do medo sustentada pelo crescimento inquietante do terrorismo à escala global. A guerra deixou de ser um exclusivo dos Estados. Também a guerra foi alvo de privatização.

O terrorismo tem que ser condenado sem reservas por todos os democratas. Nada o pode justificar, nem a mais nobre das causas.

Mas cada um de nós, cidadãos do mundo, tem de zelar para que o combate ao terrorismo não ponha em causa os valores democráticos nem seja feito à custa da violação da lei e dos direitos humanos. O que se passa em Guantanamo e Abu Grahib não enfraquece o terrorismo. Pelo contrário, reforça-o, deslegitimando os que assim o combatem.

Como cidadãos do Mundo temos de contribuir para que se lute com a mesma determinação contra o terrorismo e contra as suas causas. Para eliminar e perversão do medo temos de eliminar a perversão da exclusão e tudo fazer para extinguir conflitos que, pela sua natureza, são factores de perturbação de toda a comunidade internacional, quais cancros que espalham metástases por toda a parte, como é o caso do conflito israelo-palestiniano.

A perversão do medo gera a perversão da irracionalidade que nos quer empurrar para um choque de civilizações. A irracionalidade dos radicalismos políticos e nacionalistas ou dos fundamentalismos religiosos.

Estes não estão hoje apenas confinados a grupos extremistas, marginais e periféricos. O fundamentalismo religioso penetrou o centro do poder da maior potência mundial, pondo em causa os valores do século das luzes no seu próprio comportamento.

A resposta a esta perversão e às suas formas de expressão está na tolerância. Tolerância que tem de começar em cada um de nós. O verdadeiro confronto não pode dar-se entre as civilizações, por exemplo islâmica e cristã, mas entre aqueles que, dentro de cada uma delas, exprimem valores racionais de tolerância, moderação e diálogo, e os que sucumbem irracionalmente ao extremismo e às suas diversas manifestações, violentas ou não.

E, finalmente, a perversão do unilateralismo. A razão do força nunca se pode sobrepor à força da razão. A guerra do Iraque veio demonstrar que o unilateralismo, o arbítrio do mais forte na condução da política internacional, não só está errado, mas é ineficaz.

A guerra do Iraque não foi um instrumento necessário da luta contra o terrorismo. Constituiu sim uma operação de diversão que quebrou a aliança global contra o terrorismo e desviou atenções, prioridades e meios dessa luta para servir apenas a exibição do poderio militar da potência hegemónica. O Iraque foi infelizmente transformado no maior campo de treino de terroristas do Mundo.

Reconheço sem hesitações que a ditadura do Saddam Hussein era uma terrível praga para os iraquianos. Penso ter o direito de exigir aos que constantemente o enfatizam, que reconheçam que a situação no Iraque é hoje uma terrível ameaça para toda a comunidade internacional.

Por isso é que 2005 tem de ser o ano do início da reforma das Nações Unidas. E não se pense que este é um tema distante que não nos diz respeito. Neste momento, em toda a parte, estão a organizar-se centenas de debates sobre esta reforma e os seus objectivos, bem como sobre o futuro do sistema de Bretton Woods e da OMC, o reforço da Organização Internacional do Trabalho ou a criação duma Organização Mundial do Ambiente. Em todos os casos com uma forte exigência de transparência, eficácia e “accountability”, não apenas perante os governos, mas também perante os parlamentos e a sociedade civil.

Há um enorme movimento mundial mobilizado em torno desta discussão. É algo em que todos podemos participar, procurando transformar progressivamente em verdade aquela afirmação optimista de que hoje verdadeiramente só existem duas superpotências: Os EUA e a opinião pública mundial.

Minhas Senhoras e Meus Senhores,

O tempo é limitado e manda-me parar.

Mas não sem antes apelar ao empenhamento cívico de todos, na esfera de acção que lhes corresponda ou a que possam ter acesso.

Sei que por vezes nos sentimos num plano inclinado, viscoso e escorregadio, com um sentimento de impotência, como se nada pudesse evitar o deslizamento para baixo.

Talvez vivamos num plano inclinado e escorregadio. Mas há pelo menos duas coisas que sempre podemos fazer: Cravar uma estaca a que nos fixemos, seja ela feita de valores, de projectos ou do exemplo da acção e dar as mãos aos que ao nosso lado queiram subir connosco.

Talvez venhamos a descobrir que, um pouco mais acima, o plano deixa de ser escorregadio, mas feito de terra firme. Assim, ainda que íngreme, poderemos subi-lo mais depressa, em nome de um Portugal solidário, confiante, seguro de si e do seu futuro, em nome de uma Europa politicamente mais forte, unida e actuante e em nome da justiça nas relações internacionais, ao serviço de um Mundo melhor.

António Guterres

Lisboa, 10/11/04

Friday, November 05, 2004

O IRS para os pobres

Apraz-me, como qualquer pessoa de bom senso, alinhar nas críticas de Cavaco Silva à proposta de Orçamento de Estado para 2005. Esta convergência é uma ironia da história. Mas a realidade tem mais força do que a ideologia.

Em síntese a crítica encerra-se na constatação de que a política económica, ao serviço da deriva eleitoralista do governo, coloca Portugal numa situação ainda mais difícil, quer pelo agravamento das dificuldades no cumprimento dos critérios de convergência, quer pelos efeitos negativos que uma política económica “pró-cíclica” induzirá, a prazo, no crescimento sustentado e saudável da economia nacional.

Como dizia Nicolau Santos, numa crónica no “Expresso”,”já estamos todos a rezar com o professor Cavaco” quando este dá sinais claros e explícitos de que não gosta do OE de 2005.

Tomando um caso concreto mais próximo do terreno onde a política económica entronca com a política “pura e dura” – o IRS e o seu calendário – confesso, desde já, que pertenço àquela minoria de “ricos do PS” que não são representados pelo partido dos pobres dos Drs. Paulo Portas e Bagão Félix.

Mas, como se sabe, os pobres são mal agradecidos como ficou provado pelos recentes resultados eleitorais nos Açores e na Madeira. Pode acontecer que os pobres, na expectativa de ficarem ricos com as benesses anunciadas, em sede de orçamento de estado, comecem a preparar-se para votar no partido dos ricos. Antecipam, simplesmente, uma expectativa. Vem nos livros. O Eng.º. Sócrates rejubila.

A minha experiência diz-me que os pobres são uns ingratos. Dá-se-lhes uma sopa, daquelas suculentas, e começam logo a reclamar pelo bife e a encontrar defeitos na sopa… que está aguada, que está requentada, quente, azeda… Vejam o caso dos ex-combatentes. O Dr. Portas e o Dr. Bagão, com os seus anúncios de combate aos ricos e remediados, correm o sério risco de não satisfazer ninguém.

Hoje, preocupa-me, como contribuinte, a comezinha questão do calendário. Recebi, tempos atrás, a “nota de liquidação” do IRS referente a 2003. O dia 25 de Outubro passado era o último do prazo para o seu pagamento. Pelo sim pelo não paguei no dia 24. Tudo bem. Está pago.

Vejamos o que se vai passar a partir de 2005 deixando de lado esses outros detalhes menores, que preocupam os economistas e comentadores, tais como a coerência da política económica no decurso do tempo, a utilização repetida de receitas extraordinárias para cumprir o deficit, a criação da “polícia fiscal” ou os critérios para a formação da nova super estrutura dirigente da administração fiscal.

O IRS, referente a 2005, é apresentado como beneficiando todos os contribuintes com excepção de uma minoria, estimada em 165.000 contribuintes, os “dez por cento mais ricos” que o Dr. Paulo Portas diz que o PS defende. Não vou discutir os méritos ou deméritos da política fiscal, em sede de IRS, pois não conheço, no essencial, senão anúncios. Interessa-me, neste momento, a questão do calendário.

Ora o calendário das cobranças e notificações do IRS é concretizado pelo Governo. No caso do IRS, referente ao ano fiscal de 2005, essas notificações, obrigatoriamente, ocorrerão no ano de 2006. As “notas de liquidação” chegarão, pois, às mãos dos contribuintes no decurso de 2006. O segredo está na determinação do momento exacto mas essa decisão ficará nas mãos do governo. Calendário é calendário.

Mas sempre se poderá dizer, sem risco de errar, que, para além de outras medidas emblemáticas em "benefício dos pobres" que, a seu tempo, virão a lume, os contribuintes a reembolsar receberão o cheque no tempo oportuno e os que tiverem que pagar receberão a conta no tempo certo. É que as eleições legislativas, em calendário normal, terão lugar exactamente em Outubro de 2006.

Aqui está como uma política económica, neste caso, na sua vertente orçamental e fiscal, pode ser reduzida a uma mera operação de propaganda eleitoral. Tudo preparado com antecedência e requinte. Tudo ao contrário do programa anunciado pelo Dr. José Manuel Barroso, ex-presidente do PSD, em quem os portugueses, por uma maioria legítima, mas escassa, votaram para constituir governo. Ainda se lembram do “choque fiscal”? Ainda se lembram da Dra. Manuela Ferreira Leite, a “Dama de Ferro”? E a procissão ainda vai no adro.

(Artigo publicado na edição de hoje do "Semanário Económico")