Thursday, February 23, 2012

Não culpem o Rio

Estamos há pouco mais de uma década no século XXI, mas um terrível precedente já foi estabelecido: todas as grandes negociações internacionais e principais esforços de cooperação iniciados neste século terminaram, até agora, em fracasso.

Em relação ao meio ambiente, a luta contra o aquecimento global chegou a um impasse, com as três últimas conferências anuais sobre as alterações climáticas das Nações Unidas, em Copenhaga, Cancún e Durban, a falharem na renovação do Protocolo de Quioto.

Da mesma forma, apesar da conferência do ano passado em Paris, para rever o Tratado de Não Proliferação e as subsequentes conversações entre o presidente dos EUA, Barack Obama, e o presidente russo Dmitri Medvedev sobre o desarmamento nuclear, em Nova Iorque, terem feito notáveis avanços, os resultados estiveram muito aquém de garantirem um futuro livre de armas nucleares.

A lista continua: eventos no Médio Oriente acabaram com todas as hipóteses de paz na região, as medidas tomadas para ajudar na recuperação mundial - incluindo as melhorias reguladoras, como a separação entre a banca de retalho e de investimento, a eliminação dos paraísos fiscais e a repressão dos conflitos de interesses das agências de notação de crédito - foram fracas; e as duas últimas reuniões do G-20 registaram falhas graves.

As causas e as partes responsáveis por essas falhas são diversas, mas há uma constante: nos últimos anos, a retórica nacionalista, até mesmo xenófoba, intensificou-se dramaticamente. O patriotismo e a supremacia são hoje em dia enfatizados mais insistentemente, enquanto expressões de desconfiança dos “outros” têm aparecido em toda parte - inclusive no Oceano Ártico, onde o Canadá e a Rússia estão envolvidos em algo a que um especialista apelidou de “Guerra Fria light”.

A consequência da crescente balcanização da comunidade internacional é que as conferências voltadas para o consenso tendem a terminar em impasses. Estas falhas não significam que a maioria das pessoas em todo o mundo não concorde totalmente com estas questões, ou que essas pessoas não estejam preparadas para tomarem decisões atempadas ou até mesmo corajosas. Infelizmente, os sentimentos das pessoas comuns raramente triunfam quando os governos se reúnem.

A conclusão é inevitável: é a procura do consenso absoluto - unanimidade - que está a comprometer o progresso das principais preocupações mundiais. As negociações voltadas para o consenso podem resultar quando um tratado é feito entre vencedores e vencidos - o forte e o fraco. Após a I Guerra Mundial, as potências aliadas tentaram promover a paz internacional através da criação da Liga das Nações. Mas o requisito de unanimidade da Liga deu, efectivamente, o poder de veto a todos os membros e a recusa do Senado dos Estados Unidos em ratificar o seu Tratado condenou o esforço a uma morte prematura.

O fracasso abjecto da Liga para evitar a II Guerra Mundial resultou num segundo esforço para criar cortesia internacional após o fim dos combates. A nova ONU estava muito melhor estruturada do que a sua antecessora e o mundo ganhou uma instituição que promove o debate e a tomada de decisão deliberativa de forma muito mais vigorosa da que é possível em organizações conduzidas pelo consenso.

Mas uma mudança que contradiz o espírito da Carta das Nações Unidas ocorreu. Num esforço para evitar resoluções ou medidas que expõem os seus desacordos, as grandes potências mundiais adoptaram o hábito de organizar debates e conferências em todo o mundo que façam regressar a tomada de decisão por consenso.

De acordo com a Carta das Nações Unidas, o foco principal da Assembleia Geral e do Conselho de Segurança é promover a segurança internacional. Mas a ONU tornou-se o “operador geral” para as conferências mundiais, agindo como administrador e fornecedor de serviços e instalações (tais como locais e intérpretes) para eventos que oficialmente não fazem parte das suas operações principais. Como resultado, a ONU está a assumir cada vez mais a culpa pelas falhas destas conferências, que só não deixam as questões em aberto, mas também comprometem a autoridade da ONU.

A conferência Rio+20, que examinará os progressos realizados desde a primeira “Cimeira da Terra” no Rio de Janeiro há 20 anos, terá lugar na mesma cidade em Junho deste ano. Concebida com um vasto conjunto de objectivos, incluindo um destaque tanto para a economia verde como para o desenvolvimento sustentável, a conferência parece condenada ao fracasso. Sem consenso, nenhuma acção pode ser tomada e haver consenso será impossível.É claro, há a hipótese de que o mundo reconhecerá o seu dilema no Rio. Se a maioria dos países presentes se atrever a declarar que exigir o consenso é equivalente a impor a paralisia e se insistir em seguir os procedimentos de votação consagrados na Carta das Nações Unidas, poderemos ver progressos enormes.

O aquecimento global e a crise económica estão a ameaçar a segurança internacional. Só isso justifica referir estas questões na Assembleia Geral da ONU, que, ao contrário do Conselho de Segurança, não conhece o poder de veto. Uma declaração forte e um apelo às medidas vinculativas para abordar essas questões seriam então possíveis.

As crises económica e ambiental com que nos deparamos são demasiado urgentes para participar em jogos que dão a aparência de unanimidade internacional. Está mais do que na hora de abordar não só o aquecimento global e a crise económica, mas também o processo de tomada de decisão internacional. Por que não começar com o Rio?

Michel Rocard, in Público

Tradução: Deolinda Esteves/Project Syndicate


Sunday, February 12, 2012

Negociação de alta frequência


A revista New Scientist divulgou esta semana os resultados de uma investigação que mostra como funciona, invisivelmente, a "negociação de alta frequência" nos mercados financeiros. O Expresso ouviu o líder da equipa, o físico Neil Johnson, da Universidade de Miami - por Jorge Nascimento Rodrigues

Há uma "grande guerra", diz-nos o cientista norte-americano Neil Johnson. Ela trava-se hoje nos mercados financeiros. Uma guerra invisível entre algoritmos que torna ainda maior o risco sistémico do capitalismo financeiro. O que se designa por "negociação de alta frequência" (high frequency trading, acrónimo HFT, em inglês), com ordens dadas automaticamente em milésimas do segundo, domina hoje mais de 50% da negociação, em valor, nos Estados Unidos e mais de 30% na Europa, segundo a consultora Tabb Group.

A equipa norte-americana de Neil Johnson, do Departamento de Física da Universidade de Miami, em colaboração com outros cientistas do Centro de Sistemas Complexos da Universidade de Vermont e da empresa Nanex, descobriu como é que esses algoritmos funcionam, como provocam oscilações selvagens, para cima e para baixo, invisíveis nos ecrãs dos traders, que se vão acumulando como fissuras que acabam, num dado momento crítico, por provocar derrocadas colossais, ultra-rápidas, inesperadas, difíceis de prever e evitar pelos humanos. Em suma, estes algoritmos acabam por provocar "cisnes negros", dizem os cientistas, cujo artigo científico que descreve o estudo foi precisamente intitulado "Financial black swans driven by ultrafast machine ecology". E com tanto "cisne negro" no lago, esta multidão acaba por provocar convulsões sistémicas.

Sinais anteriores às derrocadas financeiras

Esta descoberta foi, de imediato, relatada pela revista New Scientist na quinta-feira. O grupo estudou nada menos do que 18.520 "cisnes negros" ocorridos entre 2006 e 2011 com uma duração menor a um segundo e meio (1500 milésimas de segundo). Isto significa que ocorreram, em média, quase 12 eventos extremos deste tipo por cada dia de negociação naqueles seis anos. O período, diz-nos Neil Johnson, "permitiu apanhar não só a geração do colapso financeiro global de 2008 como depois a derrocada relâmpago de 6 de maio de 2010", um fenómeno absolutamente surpreendente, já durante a recuperação bolsista, a partir de março de 2009, do crash de 2008. O evento extremo de maio ficou conhecido pela designação em inglês de "flash-crash" (derrocada instantânea). O número de "cisnes negros" diários disparou uma semana antes da derrocada de 2008 e pouco antes do evento de maio de 2010, mostra o estudo desta equipa de físicos.

As primeiras amostras de surpresas desagradáveis de grande dimensão provenientes da atividade insana da HFT, bem visíveis nas bolsas norte-americanas, ocorreram, de facto, em 2010 no que ficou conhecido como "derrocadas instantâneas", a primeira a 6 de maio (a mais conhecida) e depois outra a 1 de setembro. A de 6 de maio foi acompanhada em todo o mundo quase em direto durante os trinta minutos que decorreu. Entre as 14h30 e as 15h30 de Nova Iorque, o Dow Jones Industrial Average caiu 600 pontos, a mais colossal queda intradiária jamais registada, para de seguida recuperar meteoricamente. O mistério do evento levou os governos americano e britânico a estudar o assunto como questão de segurança e muitos cientistas, sobretudo os ligados à corrente da teoria da complexidade, a mergulharem nesta "prenda" dada pelos mercados financeiros.

Espírito microbial num mundo de piranhas

O que está por debaixo disto é o que Neil chama de uma nova "ecologia" de agentes, um mundo invisível para o comum dos mortais, fruto da desmaterialização brutal ocorrida no sistema financeiro desde a vaga de financeirização dos anos 1980 e 1990. As empresas que detêm estas ferramentas têm uma vantagem estratégica. E serão 400 num universo de 20.000 firmas que operam hoje nestes mercados, segundo um estudo do Aite Group.

Neill pega na célebre expressão de Keynes sobre a "alma animal" (animal spirits) dos investidores para falar, usando uma imagem, de algo bem mais complexo. Estes novos agentes estão impregnados de uma "alma microbial" - "são mais simples do que os humanos ou mesmo os animais, mas muito, muito mais rápidos". "São mais parecidos com a vida inicial na Terra", sublinha-nos. A grande questão é como este mundo digital - que vive numa dimensão de tempo abaixo do segundo - povoado por esta "vida inicial" vai evoluir.

Nem mesmo os grandes mestres de xadrez conseguem ter a rapidez suficiente "para detetar estas situações estratégicas". "Abaixo de 650 milésimas de segundo, só mesmo máquinas", diz-nos Neill Johnson, para depois brincar: "É como um lago cheio de piranhas de diferentes tipos com um nível de concorrência muito feroz". Mas logo acrescenta que não está a fazer um juízo moral: "Não estou a dizer que isto é errado, mas pode ver que este nível de concorrência é feroz - e é isto que exatamente ocorre nos mercados". Por debaixo dos nossos pés e afetando-nos, sem darmos conta - a não ser quando há as derrocadas bolsistas. Quando já é tarde.

Tropas no terreno

Por isso, a ambição destes cientistas é criar algumas ferramentas de previsão e que possam mitigar o risco. O que defrontamos é "um sistema de máquinas em que vemos o declínio da capacidade humana para influenciar os movimentos de preços em escalas de tempo cada vez mais pequenas", diz o físico.

Já não se trata mais do sistema "misto" anterior homem-máquina. Para responder à dinâmica deste novo sistema automatizado, é preciso algo similar às ferramentas de que dispõem os engenheiros espaciais ou aeronáuticos: "olhar para o conjunto microscópico de pequenas fissuras e avaliar se a aeronave está em condições de segurança de continuar a voar". Neil Johnson pensa que os reguladores têm de colocar "tropas no terreno" com essa capacidade. No artigo científico propõem-se três estratégias algorítmicas para tal.

Ler mais: http://aeiou.expresso.pt/ha-uma-grande-guerra-de-algoritmos-no-mundo-financeiro=f703970#ixzz1mA3hpII8