Friday, December 03, 2004

Há silêncios que não podem ser eternos

O facto que hoje evoco passou-se há dois anos. Merece ser recordado pois, entretanto, ganhou uma inusitada actualidade. No dia 12 de Dezembro de 2002, cedo de manhã, fui acordado por um telefonema da Rádio Renascença, que me pedia um comentário às notícias que, nessa madrugada, circulavam acerca de “irregularidades” no INATEL a cuja direcção presidia.

À RR, surpreendido, balbuciei umas palavras, por delicadeza, pois desconhecia o teor e o enquadramento da dita notícia. Um pouco mais tarde apercebi-me, por outro telefonema, de que se tratava de uma manchete, de primeira página, publicada pelo DN, replicada nos restantes órgãos de comunicação, que titulava: “Investigação no Inatel – Bagão Félix ordenou uma sindicância com carácter de urgência às áreas financeira e patrimonial da instituição”.

Os factos relatados correspondiam a notícias que, durante anos, tinham sido postas a correr em panfletos anónimos.

A notícia do DN mereceu uma carta de resposta que, nesse mesmo dia, enviei a Bettencourt Resendes, à época, Director do DN.

Eis o texto dessa carta que o DN publicou, na íntegra, no dia 13 de Dezembro de 2002:

“Ex. mo Senhor Director:

Venho manifestar a minha mais profunda perplexidade pela notícia, referente ao INATEL, com honras de primeira página, inserta na edição de hoje do DN.

Não fui previamente contactado pelo DN acerca do teor da referida notícia, obrigação deontológica ou, no mínimo gentileza, que se insere num modelo de jornalismo que nunca pensei tivesse caído em desuso no DN.

Não guardo esperanças de correcção de um mal do nosso mundo que, a coberto da nobre missão do jornalismo, atribui plena credibilidade e direito de cidade às fontes, ensaiando o julgamento público de instituições e cidadãos honestos, sem direito de defesa.

As ditaduras têm várias e diversificadas faces e medram no visco de práticas pouco transparentes dos agentes do poder e das suas relações com a comunicação social.

Nos dias de hoje recordo um excerto de um poema de Jorge de Sena que envio com amizade: “Liberdade, liberdade, tem cuidado que te matam”.”

Em nota de rodapé, acompanhando a carta, a Direcção do DN publicou uma nota significativa que rezava assim:

“ND – A carta que o presidente do Inatel enviou à Direcção do DN tem apenas um problema de endereço. Deveria ter sido remetida para ao gabinete do ministro Bagão Félix. Nota final: o DN tentou de facto falar com Eduardo Graça.”

Estava tudo dito! O próprio jornal revelada a fonte da notícia! A revelação da fonte, de forma explícita, pelo DN, foi um acto de coragem que, embora discutível, me cumpre assinalar. A fonte da notícia era o gabinete do ministro da tutela do INATEL.

Aquela nota só peca por conter um truque clássico, ou seja, a afirmação da tentativa de contacto prévio que, de facto, não acorreu. Somente à posteriori isso aconteceu, através de Graça Henriques, uma jornalista com letra grande.

Na época não podia medir, em toda a sua extensão, o peso das palavras que verti, pelo meu próprio punho, para aquele comunicado.

A denúncia da promiscuidade entre certos “agentes do poder” e a comunicação social tinha sido premonitória. Incomodei muita gente. A direita não me iria perdoar tamanha ousadia.

Hoje trava-se, na sociedade portuguesa, um debate aceso acerca deste tema. É unânime a convicção de que se vive uma situação de promiscuidade entre os diversos poderes e os “media” a que é urgente por fim. Mas há dois atrás aquela manchete foi premiada internamente e poucos ousaram, timidamente, levantar a voz.

O “caso DN” ganhou, recentemente, enorme notoriedade. Eu já tinha dado pelo “caso DN” e outros, antes de mim, foram vítimas da perfídia daqueles a quem devia competir zelar pelo cumprimento e pedagogia dos mais elementares deveres de cidadania.

Passaram dois anos mas há silêncios que não podem ser eternos.

(Artigo publicado na edição de hoje do "Semanário Económico")


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