Thursday, March 25, 2010

Os Justos, de Albert Camus, depois do 11 de Setembro

Maria Luísa Malato (Faculdade de Letras da Universidade do Porto)

Há datas em que vemos morrer o mundo tal como o conhecíamos. Nem sempre nos damos conta dessa morte, embora ela tenha sido anunciada, ou lentamente se consciencialize o luto, nas fases clássicas do modelo de Kübler-Ross: negação, cólera, negociação, depressão e aceitação. Mudamos nós e muda o mundo: individual e colectivamente, perante a falência dos valores em que fomos educados e a emergência da nova ordem de paradigmas em que nos pedem para viver. Primeiro, assistimos incrédulos. Depois, criamos eixos do mal. Ponderamos o tipo de aliados. Constatamos os longos fracassos. Aceitamos finalmente “viver sem”, porque temos de viver com tudo o que entretanto aprendemos.

Só depois organizamos o tempo histórico segundo esses ritmos de aprendizagem. Antes e depois do 11 de Setembro. Antes e depois do Holocausto. Antes e depois da Revolução Soviética. Antes e depois da Revolução Francesa… Essa organização é o desejo de compreendermos a nossa sociedade, aqui e agora, e é ele que nos faz ir buscar autores de outras épocas e de outras mortes, sempre em distinto retorno. A “redescoberta” da obra de Albert Camus neste princípio de milénio talvez tenha também a ver com essa “nostalgia de nós” que nos faz rever leituras e procurar no passado lições para o presente. Camus sabe que a Guerra de 39-45 e o Holocausto assinalaram o fim da sua juventude: “todas as gerações, sem dúvida, se julgam fadadas para refazer o mundo. A minha sabe, no entanto, que não poderá refazê-lo. A sua tarefa é talvez maior. Consiste ela em impedir que se desfaça, partindo unicamente das suas negações” (Discursos da Suécia). A geração actual, que cresce entre a memória de cataclismos passados e o anúncio de cataclismos futuros, talvez compreenda melhor estas palavras do que “a geração” que existiu abstractamente entre elas: a que acreditava nos fins da História, marxistas ou demo-liberais, no desaparecimento das guerras frias depois da queda do muro de Berlim, ou no paradisíaco choque tecnológico de Tofler.

Surpreende-nos por isso um pouco que, neste contexto, a obra de Camus Os Justos (1949), traduzida por António Quadros, não tenha sido reeditada em Portugal. Mas é também significativo que a homenagem feita a Camus no CCB, a 10 de Janeiro deste ano, tenha incluído a projecção do filme Os Justos (2007), realizado a partir de uma encenação de Guy-Pierre Couleau. Os Justos, peça inspirada num facto histórico, é a “mise-en-scène” de uma “nova ordem”: uma célula terrorista, na Rússia czarista, prepara um atentado contra o Grão-Duque, a imagem do tirano, um obstáculo à Utopia de “uma terra de liberdade que acabará por libertar o mundo inteiro”. A intriga é progressivamente a consciência desse orgulho desmedido do libertador, que a natureza se encarregará de castigar: “Não pertencemos a este mundo: somos os justos. É-nos estranho um certo calor”. “Talvez seja essa a justiça do mundo”, concluirá uma das personagens. Escrita no pós-guerra, pressupõe as questões que derivam da consciência do cataclismo, mas também aquela última questão só possível depois de tudo aceitarmos como inevitável: até onde pode ir o nosso “viver sem”? Do que é que prescindimos (ou parecemos dispostos a prescindir) em nome da “nossa segurança”, da “estabilidade da nova ordem”? Porque todo o mecanismo de estabelecimento dessa nova ordem está imbuído de inevitabilidade e de eficácia. Percorre a futura nova ordem um não dissimulado mecanismo silogístico em que a premissa individual só demonstra o carácter absoluto da premissa geral.

Aceitemos. A aceitação é sempre uma forma de compreensão. Mas, ainda depois de aceitar, teremos de saber “como nos vamos comportar” perante a imperfeição do mundo? O âmago de O Homem Revoltado (1951) ou de A Queda (1956) está já em Os Justos (1949): “Decidimos não agir, mas isso equivale pelo menos a aceitar a eliminação do outro, na condição de lamentar harmoniosamente a imperfeição humana. Ou Imaginamos substituir a acção pelo diletantismo trágico, mas isso leva-nos a considerar a vida humana como uma vantagem lúdica. Podemos também propor o empreendimento de uma acção que não seja gratuita. Mas neste caso, não existindo qualquer valor superior que oriente a acção, tudo será decidido tendo em conta a eficácia imediata” (O Homem Revoltado). O mundo de Os Justos é, num primeiro plano, esta reflexão sobre a eficácia, numa sociedade de mestres e escravos, representada, no primeiro acto, pelo protagonismo de Stepan: “É preciso disciplina”, “Nada do que serve a causa pode ser desaconselhado”, “Sim, sou brutal (…), não estamos aqui para nos deslumbrarmos, mas para conseguirmos ter êxito”. O contraponto é feito entre Stepan e Kaliayev, denominado “o Poeta”: Kaliayev que se recusa a lançar a bomba para a carruagem do Grão-Duque quando o vê acompanhado por duas crianças. Kaliayev que se diverte quando toma identidades secretas, que inventa um toque de campainha para se fazer anunciar aos companheiros, que ama a vida, a beleza e a alegria mais ainda do que a justiça: “Amar-me-ias tu, ligeira e despreocupada?”, pergunta Dora. – “Morro do desejo de te dizer que sim”, responde Kaliayev. Edmond Burke, comentador dos excessos da Revolução Francesa, identificara já esse estranho sublime do homem em ruptura, um delicado equilíbrio entre o perigo e o deleite que o perigo proporciona: “as paixões que dizem respeito à conservação do indivíduo baseiam-se na consciência da dor e do perigo, ao passo que as que visam a criação têm a sua origem na alegria e no prazer” (The Philosophical Enquiry, I, 8). Os planos e os actos seguintes de Os Justos serão uma progressiva desmontagem da eficácia e dos seus limites. Os limites da eficácia são a fragilidade das crianças e a seriedade do seu olhar: “nunca aguentei esse olhar”. Os que libertamos e não querem ser libertados. Os que matamos e depois sabemos serem melhores do que os que salvamos. Os outros que depois da nossa morte social nos usarão para os seus interesses pessoais. A honra ou a delicadeza que se tornarão luxos de privilegiados. Até chegarmos a perder essa ternura extrema de viver ou morrer sem o orgulho da vitória, como reivindica Kaliayev: “o sol brilha, os rostos se inclinam docemente, o coração esquece a altivez, os braços abrem-se”. Camus tem em comum com Burke essa tensão ambivalente entre o perigo e a alegria: ambos compreendem essa vertigem irracional que leva “os justos” a desejar lançar a bomba, e os faz caminhar sem medo para a morte: aliás, “é tão mais fácil morrer pelas nossas contradições do que viver nelas”. Mas ambos recuam, como Kaliayev, perante os abusos em nome da justiça, da liberdade ou da fraternidade: “viste as crianças?”. Há em todo o sublime desconcerto do mundo uma ironia trágica que, a partir de uma certa desmesura, confunde as vítimas e os carrascos. Mary Wollstonecraft afirmava que Burke, se fosse francês, seria revolucionário, exactamente na medida em que, como inglês, era contra-revolucionário. Também simbolicamente o carrasco de Kaliayev será um companheiro de cela que, por o executar, verá descontado o tempo da pena.

Difícil é não verter sangue inocente quando se atinge o fio da navalha. Mas que desafio mais importante tem hoje a nossa época de eficácia?

[Publicado em As Artes entre as Letras, n.º 22, 24/3, Porto, 2010, p. 9]