“Conheço-me bem de mais para crer na virtude completamente pura.”
Albert Camus
Bem vistas as coisas, se fizermos uma análise sincera da contestação social às medidas anunciadas, e concretizadas, pelo governo socialista, muitas corporações sentir-se-iam bem mais confortáveis com um governo de direita.
Tantas vezes que se ouviu proclamar, nos três anos da governação de direita, entre Março de 2002 e Fevereiro de 2005, as vantagens espantosas da paz social. Nesse período foram raras as greves e escassa a contestação social.
Cresceu o deficit das contas públicas, elevando-se, afinal, mais alto do que aquele que resultou da celebrada herança de Guterres; cresceu a dívida pública; tornou-se mais extensa a lista de espera para as cirurgias; mostrou-se mais opaca a justiça; revelou-se mais ensarilhada a educação, mas o país pouco se manifestava nas ruas mantendo um manso ruminar de indignação na espera paciente de que algo acontecesse e deitasse abaixo o governo.
Clamava-se que eram necessárias, e urgentes, medidas de fundo, as chamadas reformas estruturais que movimentos cívicos, caídos no baú do esquecimento, condicionavam a “acordos de regime” para que pudessem ver a luz do dia.
Mas o país aspirava a uma maioria absoluta, nas urnas, dando ao poder político executivo a força para tomar as medidas difíceis. Ora aí está! A equação cuja resolução se ansiava por ver resolvida é simples de enunciar.
Baixar o deficit das contas públicas que se situará num valor superior a 6%, em 2005, para um máximo de 3% num curto período de 3 anos; logo conter as despesas do estado e aumentar as suas receitas.
Baixar a dívida do país face ao exterior para um patamar razoável que garanta a credibilidade de Portugal nos mercados financeiros internacionais e que não torne ainda mais pessimistas as expectativas dos agentes económicos.
Conter o desemprego, sabendo que não vai desacelerar, promovendo as medidas sociais que funcionem como almofada para a sobrevivência das classes mais desfavorecidas.
Confiar na clarividência da chamada classe média para o entendimento de que o que está em causa é a alternativa entre o afundamento do país numa crise sem regresso, com a ruína de muitos sectores da própria classe média, ou um compromisso em que todos os que usufruem de privilégios (ou “direitos adquiridos”) cedam uma parte dos mesmos para salvar o essencial do estado social.
Não entendem? Há que ter a coragem para fazer a pedagogia da política de austeridade e para exercer, quando for o caso, a autoridade do Estado. A direita que exerceu o poder, no governo, durante três anos, foi incapaz de executar as políticas reformistas que, a todo o tempo, proclamou. Faltou-lhe em coragem o que lhe sobrou em prepotência.
Hoje não há alternativa para prosseguir qualquer política, patriótica e de salvação nacional, fora do partido socialista e, muito menos, contra o partido socialista. Ou pensam viável um governo de “bloco central” ou uma coligação de todas as esquerdas que, em qualquer caso, tornaria o PS refém das corporações que agora, de forma aberta, se manifestam contra o essencial de todas as reformas?
O que está em causa não é já, somente, a salvaguarda dos princípios basilares do estado social, que carece de uma profunda reforma, mas o próprio regime democrático que urge dotar de uma autoridade que, a mais das vezes, convenhamos, lhe tem faltado.
As corporações, em Portugal, sejam de raiz pública ou privada, por razões históricas, dominam ou condicionam o Estado tendo capturado, em seu benefício próprio, muitas das suas funções essenciais.
Os democratas e os amantes da liberdade, mesmo aqueles que integram, profissionalmente, essas corporações, dão privilégio à força da inteligência (razão) e da persuasão (diálogo) não podendo deixar de subscrever as políticas reformistas para cuja aplicação concreta (e não em palavras!) se exigiria, de qualquer governo, coragem e determinação.
Bem vistas as coisas é o programa que este governo, no essencial, está a cumprir. Será suficiente? Uma velha conversa porventura mais actual do que muitos possam pensar pois o que já se vislumbra no centro do debate é a própria refundação do regime democrático cujos valores essenciais há que preservar a todo o custo.
É esta a questão central que carece de ser abordada, com serenidade e elevação, na disputa presidencial que se avizinha sem perder de vista que na vida, quanto mais na política, não há “virtude completamente pura”.
(Artigo publicado hoje, 7 de Outubro de 2005, no "Semanário Económico").
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