“Aprendemos que, em política, a arte maior é a de exigir a lua não para tê-la ou ficar numa fúria por não tê-la mas como ponto de partida para ganhar-se, do compromisso, uma lâmpada de sala que ilumine a todos."
Jorge de Sena
No passado dia 20 de Fevereiro os portugueses viram-se livres de um pesadelo. O governo de direita (ou, melhor dito, “das direitas”) cessou funções.
Não uso palavras pesadas demais. Tenho até a percepção de que são pesadas de menos. Tenho ouvido, visto e sentido, por toda a parte, gente abandonada e ressentida, à beira da ruína, da marginalidade e do desespero, com fome e sem trabalho, humilhada e ofendida, sem futuro e sem esperança. Não só no mundo do trabalho como também no mundo dos negócios.
O pesadelo resultou de muitos e variados factores mas, entre eles, avulta o facto de o governo anterior ter sido “sequestrado” por um partido extremista minoritário que ostentou um nome, um chefe e um ideólogo. O nome: CDS/PP; o chefe: Paulo Portas; o ideólogo: Bagão Félix.
Aliás a vocação totalitária do CDS/PP, de Paulo Portas/Bagão Félix, é bem evidenciada pelos ataques a Freitas do Amaral e pelo recente episódio do retrato devolvido. Só os partidos totalitários suprimem a figura dos seus pais fundadores. O episódio, aparentemente irrelevante, tem um significado profundo: mostra à evidência que Portugal foi governado por uma coligação que integrava um partido com uma ideologia totalitária.
As consequências desse facto, para o país, foram desastrosas. Em reforço destas preocupações o PPE, partido europeu em que se integra o PSD, de Durão Barroso, prepara-se para expulsar Freitas do Amaral. A UE que se cuide.
A direita portuguesa, em si mesma, não será nunca um pesadelo se for uma direita moderna, aberta ao diálogo social, liberal, europeísta e empenhada na defesa dos valores da dignidade humana, da democracia e da liberdade. Mas não foi o caso. A direita que ocupou o poder político, nos últimos três anos, abdicou desses valores em favor de uma deriva nacional/populista.
Paulo Portas, Santana Lopes, Bagão Félix e José Manuel Barroso, foram (e são) os protagonistas do exercício de um modelo de poder que se não recomenda num país membro de pleno direito da UE. É salutar que ninguém o esqueça como lição para o futuro.
Eles foram os responsáveis pela aplicação de um conjunto de medidas avulsas, ao arrepio do programa político do PSD, que lançou o país e os portugueses na descrença e humilhou a imagem de Portugal na Europa e no mundo. Desde o “discurso da tanga” à “pesada herança”, desde a “fuga” de Durão Barroso às trapalhadas de Santana, desde a encenação de “homem de estado” de Portas à dissimulação beatífica de Bagão.
Eles não cuidaram, afinal, de assegurar o equilíbrio das contas públicas e desbarataram parte substancial do património nacional. Eles alargaram o fosso entre os mais ricos e os mais pobres, sem contrapartidas no desenvolvimento estrutural da economia.
Eles não combateram a corrupção antes deixaram medrar a promiscuidade entre os interesses privados e o interesse público.
Eles favoreceram e fomentaram o julgamento sumário de dirigentes políticos da oposição e da administração pública, através de autênticos autos de fé, queimando na praça pública, através de relações promiscuas com uma parte da comunicação social, o bom nome de centenas de cidadãos honestos.
Eles distribuíram milhares de lugares de chefia da administração do estado pelos dirigentes mais obscuros das estruturas nacionais, regionais e locais dos seus partidos a coberto do combate aos designados “jobs for the boys”.
Eles lançaram o caos na administração da coisa pública e depreciaram a nobreza da verdadeira política fazendo-a descer ao nível da conversa de café e da zaragata entre comadres desavindas.
Eles encenaram, sem vergonha, uma espécie de revisitação, adornada de folguedos pós-modernos, do salazarismo. É verdade que muitos dos valores ainda dominantes na nossa sociedade são herança de um passado que fomentou o medo, a resignação e a cobardia cívica, a subserviência e a dependência absolutas face aos poderes político e económico.
A ditadura obrigava a que os portugueses “fechassem a boca”, suprimindo o “espaço público”, em nome da ordem e dos bons costumes e uma ínfima nomenclatura de poderosos ditava as leis em nome da defesa de um Portugal “uno e indivisível do Minho a Timor”.
Mas é triste ter de reconhecer que, nos últimos três anos, o país viveu paredes meias com o regresso a essa “normalidade” em que, durante 48 anos, o medo, o terror e a intriga imperaram suprimindo a democracia ou usando-a, quanto muito, como um meio para adulterar a sua própria essência.
Finalmente o povo foi chamado às urnas e ditou o fim do pesadelo. Haja Deus!
Assim os novos governantes sejam dignos da confiança que o povo neles depositou pois Portugal precisa de um bom governo.
A essência da política que o novo governo socialista deve aplicar é simples: restituir a decência à vida pública, actuar com bom senso e ambição, olhar pelo equilíbrio entre os poderes e pela salvaguarda da separação dos mesmos, não esquecer os mais fracos e não espoliar os mais fortes.
Em suma um governo com coragem, que coloque a cobardia no sótão do esquecimento. Um governo que não faça fretes aos poderosos e não pratique a caridade com os mais fracos. Um governo justo e honrado. Que cumpra com as suas promessas e não esqueça a raíz da sua legitimidade: o voto de um povo sequioso de justiça.
Um governo que não vacile perante as corporações. Um governo que não ceda à chantagem dos extremismos, de direita ou de esquerda, nos quais a maioria do povo português se não revê.
Um governo que preze a liberdade e que, como diz o poeta, trabalhe para que se ganhe “do compromisso, uma lâmpada de sala que ilumine a todos."
Artigo publicado hoje, 1 de Abril de 2005, no "Semanário Económico".
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