Em seu discurso exibido em uma gravação em vídeo, o dramaturgo chama o presidente Bush e o primeiro-ministro britânico Tony Blair de terroristas.
(Estado de S. Paulo)
Cerimônia na Real Academia Sueca, em Estocolmo
São Paulo - Harold Pinter, o dramaturgo britânico que renovou a linguagem teatral no século 20, está impedido de receber o prêmio na entrega oficial do Prêmio Nobel de Literatura que será realizada neste sábado - o editor de Pinter é o encarregado de recebê-lo em seu nome. Um câncer no esôfago o mantém hospitalizado e proibido de viajar por seus médicos. Impedido também de fazer o discurso de praxe de aceitação do prêmio em Estocolmo, na última quarta-feira, enviou uma gravação em vídeo exibida para convidados do reino da Suécia e representantes da imprensa.
Conhecido como um dos maiores ativistas pelo desarmamento nuclear e radicalmente anti-Bush, fez, como se esperava desde o anúncio de seu nome, em outubro, duras críticas à Guerra no Iraque e à política externa do governo norte-americano, chamando o presidente Bush e o primeiro-ministro britânico Tony Blair de terroristas e pedindo que fossem julgados por seus atos.
Leia a íntegra de seu discurso:
Em 1958, escrevi o seguinte: "Não há distinções explícitas entre o que é real e o que é irreal, tampouco entre o que é verdadeiro e o que é falso. Uma coisa não é necessariamente verdadeira ou falsa; ela pode ser tanto falsa quanto verdadeira." Creio que essas afirmações ainda fazem sentido e certamente se aplicam à exploração da realidade por meio da arte. Portanto, como escritor, eu as defendo; todavia, como cidadão, não posso fazê-lo. Como cidadão devo perguntar: O que é verdadeiro? O que é falso?
A verdade, no teatro, é sempre enganosa. Jamais conseguimos encontrá-la totalmente, mas a perseguimos de forma compulsiva. Essa busca é, sem dúvida alguma, o que motiva tal esforço. A busca é tarefa nossa. Com muita freqüência, tropeçamos na verdade em meio às trevas, topamos com ela ou vislumbramos apenas uma imagem ou um vulto que parece corresponder à verdade, sem nos dar conta, tantas vezes, do que se passou. Contudo, a verdade real é que não há nunca, em tempo algum, na arte dramática, isto a que chamamos de verdade única. As verdades são muitas. Elas desafiam umas às outras, esquivam-se umas das outras, refletem-se, ignoram umas às outras, importunam umas às outras, são cegas umas para as outras.
Com freqüência, sentimos que temos nas mãos a verdade de um momento, para em seguida vê-la escorrer por entre os dedos e se perder. Perguntam-me muitas vezes como concebo minhas peças. Não sei. Também não posso resumi-las, digo apenas o que se passou. Foi isto o que disseram; isto o que fizeram. A maior parte delas brota de uma fala, de uma palavra ou de uma imagem. A palavra dada é, não raro, seguida logo depois da imagem.
Darei dois exemplos de duas falas que me vieram à mente de forma inesperada seguidas de uma imagem, seguidas então por mim. As peças são A Volta ao Lar (The Homecoming) e Antigamente (Old Times). A primeira fala de A Volta ao Lar é "O que você fez com a tesoura?" E a primeira fala de Antigamente é "Escuro". Em ambos os casos, eu não dispunha de nenhuma outra informação. No primeiro exemplo, alguém estava obviamente procurando uma tesoura e indagava do paradeiro dela a uma pessoa que, segundo suspeitas do autor da pergunta, a teria roubado. De algum modo, porém, eu sabia que a pessoa a quem a pergunta havia sido dirigida não dava a mínima para a tesoura e tampouco para a pessoa que lhe fizera a pergunta.
Com "escuro" eu fazia referência ao cabelo de alguém, o cabelo de uma mulher, e era a resposta a uma pergunta. Nos dois casos, senti-me obrigado a insistir no que tinha. Foi uma ocorrência visual, de um desbotado que passou muito lentamente das sombras para a luz. Sempre começo minhas peças chamando os personagens de A, B e C.
Na peça que se tornou A Volta ao Lar, vi um homem entrar em uma sala sóbria e dirigir sua pergunta a outro homem mais jovem, sentado em um sofá ordinário e que se entretinha com a leitura de um jornal sobre corridas. Não sei por que, mas eu suspeitava que A fosse o pai e, B, seu filho, mas não tinha provas disso.
Minha impressão se confirmou, porém, pouco tempo depois, quando B (posteriormente batizado de Lenny) diz a A (ou Max, como eu o chamaria mais adiante), "Pai, você se importa se eu mudar de assunto? Queria lhe perguntar uma coisa. Aquele prato que comemos antes, como se chama? Qual o nome dele? Por que você não compra um cachorro? Você daria um bom cozinheiro de comida para cachorro. Verdade. Quando você cozinha, parece que está cozinhando para uma porção de cachorros." Portanto, uma vez que B chama A de "Pai", pareceu-me lógico supor que se tratava de pai e filho. A, naturalmente, era o cozinheiro, e sua comida não parecia ter uma reputação muito boa. Será que isso quer dizer que não havia uma mãe? Eu não sabia. Contudo, como dizia para mim mesmo na época, nossos começos não conhecem jamais nossos fins.
"Escuro". Uma janela grande. Céu crepuscular. Um homem. A (mais tarde Deeley), e uma mulher (mais tarde Kate), estão sentados com seus respectivos drinks. "Gorda ou magra?", o homem pergunta. De quem falam? Vejo então, à janela, uma mulher, C (futura Anna), banhada por uma luz diferente, de costas para os dois, de cabelo escuro.
É um momento estranho, o momento da criação dos personagens que, até aquele momento, não existiam. O que se segue é fragmentário, incerto, alucinante mesmo, embora às vezes possa se tornar uma avalanche incontrolável. É curiosa a condição do autor. Em certo sentido, ele não goza da simpatia dos personagens. Eles o enfrentam, dificultam a convivência, não se deixam definir. É impossível dar-lhes ordens. Em certo sentido, jogamos com eles um jogo que nunca termina, gato e rato, cabra-cega, esconde-esconde.
No fim das contas, porém, percebemos que temos pessoas de carne e osso nas mãos, gente dotada de vontade e de sensibilidade própria, feita de partes que não podemos alterar, manipular ou distorcer. Portanto, a linguagem na arte constitui uma transação extremamente ambígua, é areia movediça, uma cama elástica, um lago congelado que a qualquer momento poderá ceder sob os pés do autor. Contudo, como já disse, a busca pela verdade nunca termina. Ela não pode ser interrompida, não pode ser adiada. Deve-se encará-la, ali mesmo, de frente.
O teatro político apresenta um conjunto de problemas totalmente distinto. É preciso evitar a todo custo os sermões. A objetividade é essencial. Os personagens precisam respirar por si. O autor não pode confiná-los e obrigá-los a satisfazer seu gosto pessoal, sua vontade, seus preconceitos. Ele deve estar preparado para se aproximar deles de diversos ângulos diferentes, de perspectivas totalmente despojadas, pegá-los de surpresa, talvez, de vez em quando, sem contudo privá-los da liberdade de ir aonde queiram. Nem sempre isso funciona. E a sátira política, é claro, não obedece a nenhum desses preceitos. Na verdade, ela faz exatamente o oposto, que é para isso que serve.
Na minha peça Festa de Aniversário (The Birthday Party), creio que deixo uma série de opções operar em uma densa floresta de possibilidades antes de me concentrar finalmente em um ato de subjugação. Língua da Montanha (Mountain Language) não tem a mesma aspiração. Ela é brutal, breve e incômoda, porém os soldados que nela aparecem conseguem se divertir um pouco. Às vezes nos esquecemos de que os torturadores se entediam facilmente. Eles precisam rir um pouquinho para se animar. Isto foi confirmado, naturalmente, pelos acontecimentos de Abu Ghraib, em Bagdá. Língua da Montanha tem apenas 20 minutos, mas poderia se estender por horas a fio repisando sempre o mesmo tema, indefinidamente, durante horas e horas.
Cinzas às Cinzas (Ashes to Ashes), por outro lado, parece-me se desenrolar debaixo da água. Uma mulher está se afogando, ela ergue a mão em meio às ondas, afunda, desaparece, procura por outros, mas não encontra ninguém, nem acima, nem abaixo da água, exceto sombras e reflexos que bóiam; a mulher é uma figura perdida em uma paisagem que afunda, uma mulher incapaz de escapar à sina que parecia pertencer unicamente aos outros. Contudo, à medida que morrem, também ela deve morrer.
A linguagem política, conforme o emprego que fazem dela os políticos, não se aventura por nenhum desses territórios, uma vez que a maioria dos políticos, pelas evidências de que dispomos, não estão interessados na verdade, e sim no poder e na manutenção do poder. Para manter o poder é imprescindível que as pessoas permaneçam na ignorância, que vivam em estado de ignorância em relação à verdade, até mesmo a verdade que diz respeito à sua própria vida. Estamos, portanto, rodeados por uma vasta rede de mentiras, das quais nos alimentamos.
Como é de conhecimento geral, a justificativa para a invasão do Iraque era de que Saddam Hussein possuía um arsenal extremamente perigoso de armas de destruição em massa, algumas das quais poderiam ser disparadas em 45 minutos, ocasionando uma destruição pavorosa. Garantiram-nos que era verdade. Não era verdade. Nos disseram que o Iraque mantinha relações com a Al-Qaeda, e que era co-responsável pela atrocidade que se abateu sobre Nova York em 11 de Setembro de 2001. Garantiram-nos que era verdade. Não era. Nos disseram que o Iraque era uma ameaça à segurança do mundo. Garantiram-nos que era verdade. Não era.
A verdade é algo completamente diferente. A verdade diz respeito à forma como os Estados Unidos entendem seu papel no mundo e ao modo que escolheram para protagonizá-lo.
Antes, porém, de voltar ao presente, gostaria de examinar o passado recente, e com isso quero me referir à política externa dos Estados Unidos desde o fim da 2.ª Guerra Mundial. Creio que é nossa obrigação submeter esse período a algum tipo de escrutínio, ainda que limitado, já que o tempo de que dispomos não nos permitiria mais do que isso. Todo o mundo sabe o que aconteceu na União Soviética e em todo o Leste europeu no período que se seguiu ao pós-guerra: uma brutalidade sistemática, atrocidades generalizadas, a supressão impiedosa do pensamento independente. Tudo isso se acha fartamente documentado e comprovado. Contudo, minha opinião neste caso é de que os crimes dos Estados Unidos no mesmo período foram registrados de modo apenas superficial, não houve de forma alguma preocupação em documentá-los, muito menos em reconhecê-los ou admiti-los como crimes. Creio que é preciso tocar nesse ponto.
A verdade tem um peso considerável sobre a situação atual do mundo. Embora restritas até certo ponto pela existência da União Soviética, as ações dos Estados Unidos pelo mundo afora deixavam claro que eles haviam chegado à conclusão de que tinham carta branca para fazer o que bem entendessem. A invasão pura e simples de um Estado soberano nunca foi o método favorito dos Estados Unidos. De modo geral, eles sempre preferiram o que chamam de "conflito de baixa intensidade". Isto significa que milhares de pessoas morrem, porém mais lentamente do que se jogássemos uma bomba sobre elas. Significa que o coração de um país é infectado, que plantamos nele um crescimento maligno e observamos a gangrena se espalhar. Depois de subjugar o populacho - ou de violentá-lo até a morte, o que dá no mesmo -, você e seus amigos, os militares e as grandes empresas instalam-se confortavelmente no poder. Em seguida, você diz diante das câmeras que a democracia prevaleceu. Isso era comum na política externa dos Estados Unidos nos anos a que me referi.
A tragédia da Nicarágua é emblemática nesse sentido. Decidi apresentá-la aqui como exemplo categórico de como os Estados Unidos entendem seu papel no mundo, tanto naquela época quanto nos dias de hoje. Eu estive presente a uma reunião na embaixada americana em Londres em fins dos anos 1980. O Congresso dos EUA devia decidir se concedia ou não mais verbas para os Contras em sua campanha de oposição ao Estado da Nicarágua. Eu era membro de uma delegação que representava a Nicarágua, porém o membro mais importante da delegação era o padre John Metcalf. O chefe do corpo diplomático americano era Raymond Seitz (na época, o número dois da embaixada; mais tarde ele se tornaria embaixador).
O padre Metcalf disse: "Senhor, sou responsável por uma paróquia no norte da Nicarágua. Meus paroquianos construíram uma escola, um centro de saúde e um centro cultural. Sempre vivemos em paz. Faz alguns meses, um grupo dos Contras atacou a paróquia. Eles destruíram tudo: a escola, o centro de saúde, o centro cultural. Violentaram freiras e professoras, assassinaram médicos da maneira mais brutal possível. Comportaram-se como selvagens. Por favor, exija que o governo dos Estados Unidos retire seu apoio a essas atividades terroristas revoltantes."
Raymond Seitz tinha uma reputação excelente de sujeito racional, responsável e muito sofisticado. Ele era bastante respeitado nos círculos diplomáticos. Ele ouviu, fez uma pausa e disse então com uma certa gravidade: "Padre", disse ele, "deixe-me dizer-lhe uma coisa. Na guerra, os inocentes sempre sofrem". Houve um silêncio glacial. Nós o fitamos. Ele não se abalou.
Inocentes, de fato, sempre sofrem. Por fim, alguém disse: "Neste caso, porém, os inocentes foram vítimas de uma atrocidade hedionda patrocinada pelo seu governo, uma das muitas. Se o Congresso der mais dinheiro aos Contras, outras atrocidades do mesmo tipo se seguirão, não é verdade? Portanto, devemos responsabilizar seu governo por apoiar a destruição e o assassinato de cidadãos de um Estado soberano?" Seitz continuava impassível. "Não creio que os fatos, conforme apresentados, justifiquem suas afirmações", disse ele. Quando saíamos da embaixada, um adido americano me disse que gostava das minhas peças. Não respondi. Vale lembrar que, na época, o presidente Reagan deu a seguinte declaração: "Os Contras são o equivalente moral dos nossos Pais Fundadores."
Os Estados Unidos apoiaram a ditadura brutal de Somoza na Nicarágua durante mais de 40 anos. O povo nicaragüense, liderado pelos sandinistas, derrubou o regime em 1979 numa revolução popular magnífica. Os sandinistas não eram perfeitos. Tinham sua cota de arrogância e sua filosofia política continha uma série de elementos contraditórios. Contudo, eram inteligentes, racionais e civilizados. Eles estavam determinados a estabelecer uma sociedade estável, decente e pluralista. A pena de morte foi abolida. Centenas de milhares de camponeses fustigados pela pobreza foram resgatados da morte. Mais de 100.000 famílias foram assentadas em terra própria. Foram construídos dois milhões de escolas. Uma campanha de alfabetização extraordinária reduziu o analfabetismo no país para menos de um sétimo. Escolas e serviços de saúde agora eram gratuitos. A mortalidade infantil foi reduzida em um terço. A pólio foi erradicada.
Os Estados Unidos denunciaram essas realizações atribuindo-as à subversão marxista-leninista. Na opinião do governo americano, criava-se assim um exemplo perigoso. Se deixassem que a Nicarágua estabelecesse padrões elementares de justiça social e econômica, se permitissem que o país elevasse os padrões de saúde e de educação, conquistando a unidade social e o auto-respeito nacional, os países vizinhos começariam a fazer as mesmas perguntas e a agir do mesmo modo. Havia na época, evidentemente, uma forte resistência à situação de El Salvador. Referi-me anteriormente à "rede de mentiras" que nos envolve. O presidente Reagan costumava-se referir freqüentemente à Nicarágua como "masmorra totalitária". A mídia, de modo geral, e certamente o governo britânico, achavam que a observação era precisa e bem aplicada.
Não havia, porém, registro algum de esquadrões da morte no governo sandinista. Não havia registros de tortura. Não havia nenhum registro de brutalidade sistemática ou de brutalidade praticada por militares. Nenhum padre foi morto na Nicarágua. Na verdade, havia três sacerdotes no governo, dois jesuítas e um missionário de Maryknoll. As masmorras totalitárias ficavam nos países vizinhos, El Salvador e Guatemala.
Os Estados Unidos depuseram o governo guatemalteco, eleito democraticamente, em 1954. Estima-se que mais de 200.000 pessoas tenham sido vítimas de sucessivas ditaduras militares. Seis dos mais renomados jesuítas do mundo foram cruelmente assassinados na Universidade Centro-Americana em San Salvador, em 1989, por um batalhão do regimento de Alcatl treinado em Fort Benning, no estado americano da Geórgia. O arcebispo Romero, um homem de coragem extraordinária, foi assassinado quando rezava missa. Calcula-se que 75.000 pessoas tenham morrido. E por que elas foram mortas? Porque acreditavam na possibilidade de uma vida melhor, e queriam conquistá-la. Essa fé as qualificava imediatamente como comunistas. Elas morreram porque ousaram questionar o status quo, um platô onde não se divisava o fim da pobreza, das doenças, da degradação e da opressão herdadas desde o berço.
Os Estados Unidos derrubaram por fim o governo sandinista. Foram necessários alguns anos e uma resistência considerável, contudo, depois de uma perseguição econômica implacável e 30.000 mortos, o espírito do povo nicaragüense estava alquebrado. O desânimo e a pobreza triunfaram novamente. Os cassinos voltaram ao país. As escolas e os serviços de saúde deixaram de ser gratuitos. Os grandes negócios voltaram com força total. A "democracia" tinha prevalecido.
Todavia, essa "política" não se restringia de modo algum à América Central. Ela foi aplicada no mundo todo. Não acabava nunca. E era como se jamais tivesse acontecido. Os Estados Unidos apoiaram e, em muitos casos, produziram todas as ditaduras militares de direita do mundo depois da 2.ª Guerra Mundial. Refiro-me à Indonésia, Grécia, Uruguai, Brasil, Paraguai, Haiti, Turquia, Filipinas, Guatemala, El Salvador e, é claro, o Chile.
O horror que os Estados Unidos impuseram ao Chile, em 1973, não se apagará e não se perdoará jamais. Centenas de milhares de mortes foram contabilizadas nesses países. Elas aconteceram de fato? Deve-se atribuí-las em todos os casos à política externa dos EUA? A resposta é sim, elas aconteceram, e são de responsabilidade da política externa dos EUA. Mas ninguém sabe disso. Nada jamais aconteceu. Mesmo quando acontecia não estava acontecendo. Não importava. Não tinha interesse.
Os crimes praticados pelos Estados Unidos são sistemáticos, constantes, cruéis, impiedosos, mas muito pouca gente toca no assunto. É por obra dos Estados Unidos que é assim. Eles manipulam o poder com extrema frieza no mundo todo fazendo-se passar por força universal do bem. Trata-se de uma sessão de hipnose brilhante, engenhosa mesmo, e muito bem-sucedida.
Digo a vocês que os Estados Unidos nos oferecem, sem dúvida alguma, o maior espetáculo da terra. Brutal, indiferente, escarnecedor e cruel, mas também muito inteligente. Como todo vendedor, está sempre só, e seu campeão de vendas é o amor próprio. É um vencedor.
Perceba como todos os presidentes americanos quando vão à televisão dizem "o povo americano", como na seguinte frase: "Digo ao povo americano que é hora de orar e de defender os direitos do povo americano. Peço ao povo americano que confie no seu presidente naquilo que ele em breve fará a favor do povo americano." É um estratagema brilhante. Emprega-se a linguagem para manter o pensamento em xeque. As palavras "o povo americano" funcionam como uma espécie de almofada extremamente confortável e tranqüilizante. Não é necessário pensar. Bastar recostar na almofada. Ela talvez sufoque sua inteligência e suas faculdades críticas, mas é muito confortável.
Isto, é claro, não se aplica aos 40 milhões de pessoas que vivem abaixo da linha da pobreza e aos 2 milhões de prisioneiros do imenso gulag de prisões espalhadas por todo o país. Os Estados Unidos não se importam mais com o conflito de baixa intensidade. Eles não vêem mais vantagem alguma em se manter reticentes ou mesmo distantes. Eles agora põem as cartas sobre a mesa sem nenhum tipo de escrúpulo. Não dão a menor bola para as Nações Unidas, para a lei internacional ou para a dissidência crítica, as quais considera impotentes e irrelevantes. Têm também seu próprio carneirinho, que os segue balindo pela coleira, o patético e inerte Reino Unido.
O que foi que aconteceu com nossa sensibilidade moral? Ou será que nunca tivemos tal coisa? O que significam essas palavras? Seriam uma referência a um termo raramente empregado hoje em dia - consciência? Uma consciência que diga respeito não apenas aos nossos próprios atos, mas também à responsabilidade compartilhada nos atos dos outros? Não existe mais nada disso?
Tome-se o caso da base de Guantánamo. Centenas de pessoas detidas sem nenhuma acusação durante mais de três anos, sem direito à representação legal ou a processo legal justo, tecnicamente detidas para sempre. Essa estrutura completamente ilegítima é mantida em desrespeito à Convenção de Genebra. Ela não é apenas tolerada, como também raras vezes é alvo de alguma reflexão por parte daquela entidade que se convencionou chamar de "comunidade internacional".
Essa afronta criminosa é perpetrada por um país que se declara "líder do mundo livre". Alguma vez já paramos para pensar na população da base de Guantánamo? O que os meios de comunicação dizem a esse respeito? Volta e meia o tema vem à tona - um texto bem curto na página seis. Aquelas pessoas foram despachadas para uma terra de ninguém, da qual talvez nunca retornem. Atualmente, muitos estão em greve de fome, e são alimentados à força, inclusive britânicos. Não faltam a essa alimentação forçada lances de barbarismo. Não se administram sedativos ou anestésicos. Enfia-se um tubo pelo nariz da pessoa até a garganta. Ela vomita sangue.
Isso é tortura. O que tem a dizer a esse respeito o secretário de Relações Exteriores britânico? Nada. O que tem a dizer a esse respeito o primeiro-ministro britânico? Nada. Por que não? Porque os Estados Unidos disseram: criticar nossa conduta na base de Guantánamo é atitude hostil. Ou vocês estão conosco ou estão contra nós. Blair fechou a boca.
A invasão do Iraque foi coisa de bandoleiros, um ato ostensivo de terrorismo de Estado, uma demonstração cabal de desprezo pelo conceito de lei internacional. A invasão foi uma ação militar arbitrária inspirada por uma série de mentiras em cima de mentiras e grosseira manipulação da mídia e, portanto, do público. Foi um ato que teve como propósito consolidar o controle militar e econômico dos Estados Unidos no Oriente Médio travestindo-o - como último recurso - de libertação, já que todas as demais justificativas haviam falhado em justificar a si mesmas. Essa demonstração de força militar fabulosa foi responsável pela morte e mutilação de milhares de pessoas inocentes. Levamos ao povo iraquiano a tortura, bombas de fragmentação, urânio empobrecido, incontáveis assassinatos praticados aleatoriamente, infelicidade, degradação e morte e a isso chamamos de "levar a liberdade e a democracia ao Oriente Médio".
Quantas pessoas temos de matar para que sejamos considerados assassinos de multidões e criminosos de guerra? Cem mil? Isso seria mais do que suficiente, creio. Portanto, é justo que Bush e Blair sejam denunciados ao Tribunal Internacional de Justiça. Bush, porém, é mais esperto. Ele não ratificou o protocolo que criou o Tribunal Internacional de Justiça. Portanto, se qualquer soldado americano, ou um político qualquer, for levado ao banco dos réus, Bush já avisou que enviará os fuzileiros navais em seu socorro. Tony Blair, porém, ratificou o Tribunal e pode, portanto, ser processado. Podemos dar seu endereço ao Tribunal, se este demonstrar interesse pelo assunto. Basta que procurem no n.º 10 da rua Downing, em Londres.
A morte neste contexto é irrelevante. Tanto Bush quanto Blair colocam a morte no último lugar da sua lista de preocupações. Pelo menos 100.000 iraquianos foram mortos por bombas e mísseis americanos antes do início da revolta popular. Essas pessoas não têm importância alguma. A morte delas não conta. Elas não existem. Não há sequer registro de sua morte. "Não contamos corpos", disse o general americano Tommy Franks.
Logo no início da invasão os jornais britânicos publicaram na primeira página uma foto de Tony Blair dando um beijo no rosto de um menino iraquiano. "Uma criança agradecida", dizia a legenda. Poucos dias depois os jornais publicaram nas páginas centrais a história de outro garotinho de quatro anos sem braços. Sua família havia sido atingida por um míssil. Ele foi o único sobrevivente. "Quando vou ter meus braços de volta?", queria saber. A história não teve continuidade.
Bem, Tony Blair não o estava segurando nos baços, tampouco segurava o corpo de outra criança mutilada, muito menos um cadáver ensangüentado. Sangue é coisa suja. Ele suja a camisa e a gravata de quem tem um discurso sincero a fazer pela televisão. Os 2.000 americanos mortos são motivo de constrangimento. Eles são transportados para suas sepulturas no escuro. Os funerais são discretos, realizados em local seguro. Os mutilados apodrecem em seus leitos, alguns permanecem nesse estado até a morte. Portanto, tanto os mortos quanto os mutilados apodrecem em tipos diferentes de sepulturas.
Em um poema intitulado Explico Algumas Coisas (Explico Algunas Cosas), Pablo Neruda diz a certa altura:
"E numa certa manhã tudo ardia,
numa manhã o fogo
saltava da terra
devorando os seres,
e ardia,
havia pólvora,
e sangue.
Bandidos com aviões e mouros,
bandidos com anéis nos dedos e duquesas,
bandidos com frades negros e suas bendições
vinham pelo céu matar crianças,
e o sangue delas escorria pelas ruas
sem ruído algum, corria como sangue de criança.
Chacais que seriam alvo de desprezo de outros chacais,
pedras que o cardo seco morderia
e cuspiria, víboras que as próprias víboras abominariam!
Face a face com vocês vi o sangue
da Espanha erguer-se
para afogá-los em uma onda
de orgulho e de facas!
Generais
traidores:
vejam minha casa morta,
vejam a Espanha alquebrada:
de todas as casas sai um metal
que arde,
em vez de flores,
mas de cada oco da Espanha
a Espanha emerge
e de cada criança morta sai um rifle
com olhos,
e de cada crime nascem balas
que um dia encontrarão o caminho
do coração de vocês.
E vocês me perguntarão:
por que os poemas dele
não falam de sonhos, e de folhas
e dos grandes vulcões de sua terra natal.
Venham e vejam o sangue nas ruas,
venham e vejamo sangue nas ruas,
venham e vejam o sanguenas ruas!"
Quero deixar claro que, ao citar o poema de Neruda, não estou de forma alguma comparando a Espanha Republicana com o Iraque de Saddam Hussein. Cito Neruda porque em parte alguma da poesia contemporânea li uma descrição tão veemente e tão visceral sobre o bombardeamento de civis. Disse anteriormente que os Estados Unidos colocam hoje abertamente as cartas sobre a mesa. É a isso que me refiro. Sua política oficial explícita é definida agora como "dominância total do espectro". A expressão não é minha, é deles. "Dominância total do espectro" implica o controle da terra, do mar, ar e espaço, bem como de todos os recursos correspondentes.
Os Estados Unidos ocupam atualmente 702 instalações militares no mundo em 132 países, com a honrosa exceção da Suécia, é claro. Não sabemos exatamente como foi que eles foram parar lá, mas eles estão lá. Os Estados Unidos possuem 8.000 ogivas nucleares ativas e operacionais.
Duas mil dessas ogivas podem ser disparadas 15 minutos depois de dada a autorização. Eles estão desenvolvendo novos sistemas de força nuclear, conhecidas como arromba-bunkers.
Os britânicos, sempre tão cooperativos, pretendem substituir seu míssil nuclear, o Trident. Eu gostaria muito de saber em quem eles estão mirando. Em Osama bin Laden? Em você? Em mim? Em ninguém em especial? Na China? Em Paris? Quem sabe? O que sabemos de fato é que essa insanidade infantil - a posse de armas nucleares e a ameaça de usá-las - está no âmago da filosofia política americana atual. Não podemos nos esquecer de que os Estados Unidos estão em permanente pé de guerra, e não há sinal de que pretendam relaxar nem um pouco. Muitos milhares, se não milhões, de pessoas nos Estados Unidos estão enojadas, envergonhadas e iradas com as atitudes do governo do seu país, mas na atual situação elas não formam uma força política coerente - por enquanto.
Contudo, a ansiedade, a incerteza e o temor que vemos crescer nos Estados Unidos não devem diminuir. Sei que o presidente Bush tem muita gente talentosa para escrever os seus discursos, mas eu gostaria de me apresentar voluntariamente para o serviço.
Proponho a transmissão pela TV da seguinte alocução à nação: vejo-o com ar grave, o cabelo cuidadosamente penteado, a expressão séria, vencedora, sincera, sedutora, por vezes com um sorriso torto no rosto, atraente, embora excêntrico. "Deus é bom. Deus é grande. Deus é bom. Meu Deus é bom. O Deus de bin Laden é mau. Ele é um Deus malvado. O Deus de Saddam era mau, embora ele não tivesse Deus algum. Ele era um bárbaro. Nós não somos bárbaros. Não cortamos a cabeça das pessoas. Acreditamos na liberdade. Deus também. Não sou bárbaro. Sou um líder eleito democraticamente de uma democracia amante da liberdade. Somos uma sociedade compassiva. Eletrocutamos e administramos injeções letais de forma compassiva. Somos uma grande nação. Não sou um ditador. Ele é. Não sou bárbaro. Ele é. Todos eles são. Eu tenho autoridade moral. Estão vendo este pulso? Esta é minha autoridade moral. Não se esqueçam disso."
A vida de um escritor é uma atividade muito vulnerável e praticamente desnuda. Não temos de chorar por causa disso. O escritor faz sua escolha e se aferra a ela. Mas é verdade que estamos abertos a todos os ventos, alguns deles bem gelados. Estamos sós, numa posição vulnerável. Não encontramos abrigo que nos proteja - a menos que nos tornemos mentirosos - e nesse caso, é claro, a mentira se torna nossa proteção.
Poderíamos também nos tornar políticos. Falei da morte algumas vezes esta noite. Citarei agora um poema meu intitulado Morte:
Onde foi encontrado o corpo sem vida?
Quem o encontrou?
Ele estava morto quando foi encontrado?
Como foi encontrado?
Quem era ele?
Quem era o pai ou a filha ou o irmão
ou o tio ou a irmã ou a mãe ou o filho do morto,
e que abandonou o corpo?
O corpo estava morto quando foi abandonado?
O corpo foi abandonado?
Por quem foi ele abandonado?
O corpo morto estava nuou vestido para uma viagem?
O que o levou a concluirque o corpo morto estava morto?
Você disse que o corpo morto estava morto?
Você conhecia bem o corpo morto?
Como você soube que o corpo morto estava morto?
Você o lavou?
Você fechou seus olhos?
Você enterrou o corpo?
Você o abandonou?
Você enterrou o corpo?
Você o beijou?
Quando olhamos no espelho, achamos que a imagem que nos confronta é precisa. Se, porém, nos movermos um milímetro que seja, veremos que a imagem muda. Estamos, na verdade, olhando para um conjunto infinito de reflexos. Às vezes, porém, o escritor tem de quebrar o espelho - porque é do outro lado que a verdade nos observa.
Creio que apesar das enormes desvantagens com que nos deparamos, a determinação intelectual firme e inabalável, como cidadãos, que nos permite definir a verdade real de nossas vidas e de nossas sociedades é uma tarefa crucial que cabe a todos nós. É, na realidade, imprescindível que assim seja. Se nossa visão política prescinde de tal determinação, não nos resta esperança alguma de restaurar aquilo que, por pouco, não perdemos - a dignidade do homem.
Tradução Antivan Mendes
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