Sunday, December 11, 2005

Crónica de Uma Fidelidade (4)

O ano de 1976 inaugurou uma longa travessia do deserto. No final dessa caminhada, dez anos depois, em 1986, uma parte significativa daqueles que dirigiram o processo de criação e extinção do MES (Movimento de Esquerda Socialista), havia de aderir ao PS. Mas o período crucial, no qual amadureceu essa decisão, culminou, de facto, em 1979. Lá iremos mais tarde.

Em 1976 ocorreu uma fase crucial da consolidação do regime de democracia representativa em Portugal. Nele avultam três acontecimentos relevantes: a aprovação, em 2 de Abril de 1976, da Constituição Democrática, as primeiras eleições legislativas, em 25 de Abril e as primeiras eleições presidenciais, em 27 de Junho, nas quais seria eleito Ramalho Eanes.

Duas notas a propósito de cada um destes eventos. A primeira para assinalar que a maioria do eleitorado tinha, nas eleições para a Assembleia Constituinte, realizadas a 25 de Abril de 1975, consagrado o PS como o Partido mais votado e arredado o MES da Assembleia Constituinte para a qual não conseguiu eleger qualquer deputado. Como consequência o MES não participou nos trabalhos de elaboração da Constituição da República de 1976.

Curiosamente a UDP, com menos votos que o MES, a nível nacional, elegeu um deputado, sendo beneficiada pela concentração da sua votação em Lisboa. Este resultado eleitoral negativo muito contribuiu para reforçar a convicção, entre muitos de nós, de que se aproximava o fim da experiência do MES.

A segunda nota para assinalar que, nas primeiras eleições legislativas, realizadas a 25 de Abril de 1976, o MES obteve um resultado ainda menos expressivo do que aquele que tinha obtido nas Eleições para a Assembleia Constituinte, voltando a não eleger qualquer deputado.

Por último o MES apoiou a candidatura presidencial do Otelo, facto inevitável e entusiasmante, que, apesar das circunstâncias adversas, permitiu reforçar a demarcação face ao PCP, no qual nunca nos tínhamos revisto e, apesar da derrota, alimentar, nalguns, atendendo à significativa votação obtida, (16,2%, correspondendo a 792.760 votos) a ideia de que seria ainda viável construir uma alternativa política ao PCP, fora da área da influência do PS.

Estes factos conjugados com a deriva esquerdista que persistia, desde os inícios de 1975, pretendendo iludir a realidade emergente do 25 de Novembro desse ano, das eleições para a Assembleia Constituinte de 25 de Abril de 1975, da aprovação da Constituição e das eleições legislativas, um ano depois, conduziu ao atraso do processo de reflexão que conduziria à extinção do MES.

Esse atraso permitiu, no entanto, revelar alguns aspectos da postura política do MES, pouco conhecidos, mas relevantes para a vida futura daqueles que nele militavam.

A recusa, liminar, em participar em qualquer movimento de reacção violenta, orgânico ou inorgânico, à vitória do PS de Mário Soares nas eleições livres e democráticas – ou seja o estrito respeito pela vontade do povo expressa pelo voto e a recusa em integrar o PCP, fosse por via negocial ou por um processo de adesão a “conta gotas”.

O que quero enfatizar é a permanência, ao longo do tempo, no essencial, de uma fidelidade aos princípios fundadores do MES, mais próximos de uma ideologia libertária, que tinha perdido, em Portugal, qualquer expressão política organizada, e a recusa, ideológica e política, no alinhamento com facções de cariz totalitário, fundadas no marxismo leninismo que orientou a acção da maioria dos restantes grupos e partidos da chamada extrema esquerda.

A linguagem revolucionária no MES, indubitavelmente presente na maioria dos seus documentos e discursos políticos da época, que ganhou especial virulência no chamado “verão quente” de 1975, nunca deixou de ser um “pastiche”, ou seja, uma linguagem que se limitava a imitar a linguagem dominante da esquerda revolucionária da moda.

Assim se compreenderá melhor, quer a nula adesão, após a extinção do MES, dos seus membro ao PCP ou a partidos da extrema esquerda, que persistiram até aos nossos dias (plasmados no BE), quer a posterior adesão, de uma parte significativa dos seus dirigentes mais influentes, ao PS ou, na maior parte dos casos, a sua não afiliação em qualquer outro partido. As poucas excepções só confirmam a regra.

Talvez o tempo fale por si acerca do processo e do amadurecimento das nossas opções. No contexto fulminante, em que o tempo fugia debaixo dos nossos pés, o que é, aliás, uma característica destes períodos de revolução, conduzimos, com surpreendente lentidão, o processo de transição para o que muitos designam, pejorativamnete, como a social democracia mas que, de facto, foi o regresso ao lugar das nossas origens sociais e da essência das nossas mais profundas convicções ideológicas e políticas. Falo por mim e, certamente, vou ao encontro do que sentiram e pensaram muitos daqueles que partilharam, no essencial, o mesmo caminho com todas as diferenças pessoais que se possam encontrar.

Alguns outros foram mais expeditos em se filiarem no PS, tal como o grupo designado por GIS, encabeçado por Jorge Sampaio, que por razão de um mais precoce amadurecimento pessoal e esclarecimento ideológico, ou por necessidade de colocarem os seus méritos ao serviço da solução democrática vitoriosa ou, ainda, por vontade de protagonismo político, se afadigaram em buscar, rapidamente e em força, a bênção do PS, de Mário Soares.

A maioria daqueles que se mantiveram no MES, até ao fim, foram mais tardios na adesão ao PS, embora tenham, na prática, realizado o mesmo percurso.

É curioso, no entanto, que nenhum de nós tenha, até ao presente, encontrado no PS o remanso para a plena concretização das suas aspirações políticas. Alguns episódios recentes demonstram que, tendo mudado de natureza, não se apagaram as diferenças entre as diversas correntes do pensamento socialista, em particular, no que respeita à definição do papel do Partido Socialista na luta pela justiça, pela democracia e pela liberdade.

E que, ainda mais, se agudizam as diferenças quando se trata de configurar políticas concretas, avaliar comportamentos éticos ou encetar políticas de aprofundamento e consolidação do regime democrático. Mas esta é uma abordagem que se situa muito mais próxima dos acontecimentos que têm sido vividos, na política portuguesa, nos tempos mais próximos e que não vêm agora ao caso.

Não esqueço ainda aqueles que conheci no MES e que, até hoje, se têm mantido sempre à margem de qualquer compromisso partidário entre os quais se encontram alguns que nunca votaram, em qualquer eleição, desde 1976, e sempre se mostraram resistentes em aceitar as fórmulas políticas de compromisso que se encontram plasmadas nos diversos modelos da democracia representativa.

Devo dizer que nutro por eles a maior das admirações tanto mais que são os únicos que levaram até ao fim, de forma pacífica, o seu protesto pela morte de uma utopia que nos irmanou a todos num longo e intenso período das nossas vidas.

Resumindo: em 1976, na sequência da aprovação da Constituição, as eleições legislativas foram ganhas pelo PS, de Mário Soares, e as presidenciais foram vencidas pelo general Eanes, representando a solução política militar moderada para a crise.

O MES foi afastado do parlamento nas eleições legislativas de 25 de Abril, apoiou a candidatura presidencial de Otelo tendo rompido, de seguida, de forma radical, com qualquer devaneio de oposição violenta ao modelo político de democracia representativa em fase de consolidação.

Mário Soares tomou posse, em 23 de Setembro, como Primeiro-ministro à frente do I Governo Constitucional.

Amadureciam, assim, as condições para se tomasse a sério a ideia de por fim à experiência do MES o que requeria previamente concretizar, de forma explícita, uma ruptura política e ideológica com o passado. Foi o que aconteceu no decurso do ano de 1977.

Cronologia breve dos acontecimentos políticos relevantes do ano de 1976.

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