Monday, December 05, 2005

Crónica de Uma Fidelidade (3)

Em Portugal, 1975 foi, no plano político, o ano de todos os desassossegos, de todas as expectativas, ilusões e desilusões. Os acontecimentos mais relevantes têm sido relatados abundantemente em trabalhos, depoimentos e tomadas de posição das mais variadas naturezas.

Todos, e cada um dos protagonistas, têm as suas histórias para contar mas o essencial é do conhecimento comum.

Após o 25 de Abril de 1974 os campos extremaram-se. Ao longo dos meses, desse ano memorável, sucederam-se os golpes e os contra golpes. O poder militar dividiu-se entre os que advogavam uma transição pacífica para um regime de democracia representativa e aqueles que acreditavam na viabilidade de um “poder popular”, regime fundado num misto da tradição militarista e do anarquismo que tinham, décadas atrás, feito história em Portugal.

Já descrevi, anteriormente, como o MES perdeu, no seu Congresso fundador, em Dezembro de 1974, a oportunidade de enveredar por uma orientação que o teria levado a alinhar, desde logo, muito provavelmente, com o PS.

O I Congresso do PS, na legalidade, correu dias depois e soube, há pouco tempo, pela boca de Manuel Serra, que a “entrada” do MES no PS chegou a ser discutida entre dirigentes do MES, quais não sei, e ele próprio, enquanto dirigente máximo da FSP.

Nada seria mais difícil e doloroso para a maioria dos jovens, que tinham aderido ao MES, entre os quais me encontrava, viabilizar essa solução, atendendo à própria natureza do MES assente em três correntes, emergentes de pujantes e radicais lutas de base, as correntes católica, operária e estudantil.

Durante 11 meses, de Dezembro de 1974 até Novembro de 1975, vivemos entre a espada de um movimento popular radicalizado, nos limites do tolerável por uma sociedade organizada e de matriz conservadora, e a parede da abdicação face a um compromisso revolucionário que muitos de nós, ao longo dos meses, fomos sentindo, de facto, inviável.

Uns mais cedo do que outros fomos levados a admitir que chegaria o momento de um ajuste de contas, que poderia ser sangrento, caso se não desse o milagre de uma qualquer interposição moderadora do conflito que crescia e transbordava, em particular, no seio das forças armadas.

Chagados aos finais de Novembro de 1975, passaram agora 30 anos, tudo se resolveu pela vitória das forças que defendiam o modelo político da democracia representativa. Honra seja feita aos papéis desempenhados por Melo Antunes e Mário Soares. Um fazendo vencer as teses moderadas nas Forças Armadas e o outro liderando o movimento civil que havia de criar uma força, de que o PS foi a coluna vertebral, capaz de vencer e convencer a maioria em favor do modelo democrático.

Na madrugada de 25 de Novembro de 1975, algures num apartamento na cidade de Lisboa, acompanhado de outros activistas, antevi a viragem que, certamente, havia de ter contado com a própria mudança de posição política do PCP.

Lembro-me de em determinado momento dessa madrugada de 25 de Novembro ter decidido sair do apartamento, no qual me tinha recolhido, vencido mas não convencido, ter rumado a casa, atravessando a cidade de ponta a ponta, de carro, apesar do estado de sítio que tinha sido, ou estava para ser decretado, com uma profunda angústia cravada no peito, fazendo todo o percurso sem ser incomodado por ninguém.

Dormi como um justo. Nessa noite tinha tomado a consciência difusa de que tudo o que pudesse fazer, daí em diante, seria somente um caminho para salvar as aparências de uma escolha passada sem aderência aos sentimentos e expectativas da maioria do povo português.

O vencedor havia sido o PS e o obreiro dessa vitória política da democracia representativa, em Portugal, foi Mário Soares. Como tenho dito sempre, não me arrependo das ideias, nem das acções que empreendi e nas quais participei, mas reconheço que a razão estava do outro lado.

Aliás ainda durante o ano de 1977, como relatarei mais tarde, contribuí, de forma explícita e documentada, no seio do MES, para fazer triunfar a tese de que a democracia representativa iria triunfar e consolidar-se em Portugal.

1 comment:

Eduardo Graça said...

Há um tipo de argumentos contra a democracia que são aterradores. Este é um deles: seguindo esta linha de pensamento se absolve, na prática, a política do regime da tirania. Se faz a demonstração da maior ignorância acerca das lições da história ao longo da qual - para falar do sec. XX - milhões de cidadãos morreram pela democracia. Nada é hoje comparável, a título dos indicadores de desenvolvimento sócio económico, à situação herdada da ditadura, anterior ao 25 de Abril. A chamada "concentração de riqueza" nada tem a ver com a brutal diferença de qualidade de vida do Portugal de hoje com o dos tempos da ditadura. Além do mais é a essa mesma democracia, que se acusa de ser fautor de atraso, que se deve a liberdade de, hoje, a criticar livremente. Este é um debate antigo que, se tiver paciência, encontrará plasmado nas abundantes citações que tenho feito da obra de Camus: o conflicto entre a justiça e a liberdade. Haja decoro, e um pouco mais de bom senso, ao falar de questões sérias e que envolvem a vida de toda a comunidade. E talvez menos simplismo e slogans fáceis que tudo reduzem ao objectivo de atacar a candidatura de ´Mário Soares ou, mesmo, a sua própria figura. Ponto final.