Intervenção integral de António Guterres no I Congresso da Democracia Portuguesa - Associação 25 de Abril
Caras e Caros Amigos,
Minhas Senhoras e Meus Senhores,
Sendo conhecido que há algum tempo decidi abster-me de qualquer intervenção na vida política portuguesa, canalizando para outras formas de agir uma vocação de serviço público a que não penso renunciar, poderá perguntar-se porque aceitei este convite da Associação 25 de Abril. A razão é simples. Precisamente por ser da Associação 25 de Abril, que representa todos aqueles a quem, em primeira linha, devemos a refundação da Democracia e da República.
O convite era, por isso, irrecusável e só por isso aqui estou.
Faço-o num clima carregado da vida política, não só portuguesa, mas europeia e global. Há um sentimento generalizado de insegurança e sinto o germinar das sementes do desinteresse ou da desorientação e do desânimo.
A insegurança é um fenómeno complexo, individual e colectivo. Diz respeito não apenas às ameaças físicas, quer locais, como o crime , quer globais, como o terrorismo, mas também aos riscos que afectam o emprego e o futuro do bem estar económico e social.
É um sentimento complexo e perigoso, por ser um caldo de cultura fácil para que se desenvolva a irracionalidade dos comportamentos – a adesão a populismos políticos ou fundamentalismos religiosos, a expressão da xenofobia e do racismo.
Tudo isto é tanto mais nocivo quanto mais deficiente o funcionamento da democracia e maior o divórcio entre o sistema político e os cidadãos e a sociedade civil, ou entre a substância dos problemas reais e a natureza do debate político.
Não sou dos que pensam que a democracia em Portugal esteja em risco, que a União Europeia possa implodir a qualquer momento, que a Terra esteja à beira de uma qualquer confrontação civilizacional catastrófica.
Mas compreendo perfeitamente a perplexidade que vejo à minha volta, com as pessoas a interrogarem-se sobre para onde vai o nosso país, as contradições do projecto europeu e o que está a acontecer ao mundo, em que todos os demónios se parecem ter libertado.
A equação nacional foi fácil de resolver a meio da década de 80. Portugal era o país de mão-de-obra barata num mercado europeu mais ou menos fechado. A adesão às então Comunidades Europeias oferecia a solução. Simultaneamente consolidava-se de forma irreversível a democracia e reuniam-se todas as condições para o progresso económico e social, estimulado pelas ajudas comunitárias e pelo investimento directo estrangeiro, para o qual constituíamos um destino particularmente apetecível.
Todo este panorama se alterou com a queda do muro Berlím, o fim da guerra fria e a abertura da Europa a leste, com a emergência de um novo paradigma - o da economia e da sociedade do conhecimento, e com o acelerar da globalização económica, derrubando progressivamente as barreiras à liberalização do comércio internacional.
Portugal confronta-se hoje com os seus próprios problemas de fundo: A muita baixa qualificação média da população activa, a fraca capacidade cientifica e tecnológica, os persistentes entraves da herança napoleónica, centralista e burocrática da nossa administração, o escasso dinamismo da sociedade civil. Felizmente que a opção por estar no centro do projecto europeu e a entrada para o euro nos protegem dos efeitos mais devastadores dos choques externos, embora não cheguem para evitar a estranha sensação de que corremos o risco de ir caminhando insensívelmente para uma situação cada vez mais periférica, irrelevante e medíocre.
Aliás a aliança entre a mediocridade e a inveja sempre foi o grande obstáculo ao desenvolvimento de centros de excelência no nosso país.
Não interessa hoje discutir os méritos da prioridade máxima em tempos atribuída à educação, à ciência, à cultura e ao investimento e do empenhamento de Portugal, aparentemente paradoxal para um país relativamente mais atrasado, no desencadear da chamada estratégia de Lisboa da União Europeia, como alavanca de modernização, competitividade e reforma da economia, com reforço do emprego a da coesão social, na convicção de que Portugal se transforma sempre mais facilmente por impulso exterior do que por dinâmica própria.
Poderá sempre questionar-se se as orientações então dadas foram as mais adequadas, se precisavam ou não de ser revistas, corrigidas ou melhoradas. O que me deixa realmente perplexo é o desprezo a que qualquer daqueles objectivos tem sido recentemente votado.
É como se o conhecimento não fosse hoje a principal fonte de criação de riqueza, a inovação o caminho para transformar conhecimento em riqueza, e a iniciativa o instrumento indispensável para essa transformação se concretizar.
Conhecimento, inovação e iniciativa, num quadro de solidariedade e coesão, parecem-me os três pilares de um projecto nacional capaz de combater a perificidade, a irrelevância e a mediocridade. Para eles deveriam convergir todas as políticas e todos os esforços de apelo à participação da sociedade.
Apesar do empenho determinado de alguns, a verdade é que o debate político tem passado ao lado destas questões.
Não tenho uma aproximação moralista ao proliferar do “big brother” e de outros chamados “reality shows”, como forma de entretenimento. Não vou sequer discutir a sua estética e o seu bom gosto. O que me preocupa é que, com uma promiscuidade crescente entre o poder político (e até o poder judicial) e os media, a expressão pública da vida política portuguesa cada vez se pareça mais com um permanente “reality show”, ofuscando o debate das questões essenciais.
Não vejam nisto um ataque à comunicação social, coisa que sempre me abstive de fazer. O problema está sobretudo nos responsáveis do poder político que sucumbem àquela promiscuidade e à tentativa de manipular os media sem perceberem que acabarão por ser destruídos por eles.
Mas não é caso para desespero. Reconhecendo os riscos da situação presente, sou dos que acreditam, no entanto, que ela não impedirá a afirmação crescente de uma alternativa que, apostando no conhecimento, na inovação e na iniciativa, possa estabelecer de forma participada com os portugueses um projecto mobilizador e ajudar a reconciliá-los em pleno com a vida política democrática.
Minhas Senhoras e Meus Senhores,
Idêntica incomodidade sentem hoje muitos dos que acreditam que a União Europeia é, não só um instrumento essencial para garantir o bem estar económico, social e ambiental do nosso continente, mas um factor indispensável a um maior equilíbrio nas relações internacionais.
Só que, num momento em que a sua unidade seria mais importante do que nunca, a Europa está hoje profundamente dividida, incapaz de falar a uma só voz ou agir com eficácia perante a generalidade das grandes questões de alcance global.
O alargamento a leste tem um significado histórico iniludível. É uma exigência irrecusável de solidariedade e de reencontro da Europa consigo própria e com o seu passado. Mas o alargamento deveria ter sido antecedido ou, pelo menos, acompanhado pelo aprofundamento da integração e não o foi.
Vivemos mesmo a situação paradoxal do ser preciso cada vez mais Europa, quando as opiniões públicas de diversos estados membros aceitam com cada vez maior relutância a própria Europa que temos, em larga medida empurrados pela obsessão eleitoralista com as agendas políticas nacionais de muitos dos seus dirigentes.
Se, na perspectiva de um alargamento continuado aos Balcãs ocidentais e à Turquia, a Constituição não for ratificada, o que é bem provável, então cresce a probabilidade de uma diluição do projecto político e social europeu, confinando-se a União a um mero espaço económico. Se assim for Margareth Thacther acabará por ganhar a sua aposta, embora com décadas de atraso.
Ninguém tem mais interesse que os portugueses em combater esta tendência e evitar que se concretize .
A aposta na Europa política não está perdida. Mas já não basta a vontade dos governos, se é que ela em alguns casos existe. É preciso trabalhar a todos os níveis pela criação progressiva de um espaço público europeu, de uma opinião pública europeia, de uma sociedade civil organizada à escala europeia, para que seja possível vencer o défice democrático que causa o divórcio entre a construção da Europa política e os cidadãos.
O movimento em favor da paz, antes e durante a guerra do Iraque, que mobilizou transversalmente todo o continente, mesmo quando os governos aprovavam a iniciativa unilateral da administração Bush, demonstra que a emergência desse espaço público europeu é, apesar de tudo, possível.
Mas, se a diluição que referi vier a mostrar-se inevitável, então poderá surgir em alguns países da Europa continental uma dinâmica política para construir, dentro da União Europeia e muito para lá do que hoje permitem as chamadas cooperações reforçadas, um núcleo duro de integração muito mais ambiciosa, envolvendo não só a segurança, defesa e política externa, mas também uma mais intensa cooperação económica, social e ambiental.
Se isso suceder é, em minha opinião, absolutamente indispensável que Portugal dele faça parte, o que implica que prossigamos permanentemente uma estratégia, no centro de todos os desenvolvimentos integradores da União, que o venha a tornar possível em qualquer momento.
Minhas Senhoras e Meus Senhores,
O progressivo agravamento da situação internacional a que vimos assistindo diz respeito a cada um de nós. Sem prejuízo da opção europeia, a nossa identidade assenta em valores universalistas e foi forjada numa permanente encruzilhada de civilizações.
Estamos perante um claro antagonismo de posições. De um lado, o unilateralismo, aliado à agenda política neo-conservadora e à ideologia económica neo-liberal. Do outro, o projecto de uma globalização de rosto humano, que se traduza numa oportunidade para todos e de uma arquitectura das relações internacionais mais equilibrada, no respeito pelo direito e pela justiça. Este contraste não se traduz apenas ao nível dos governos das principais potências, mas é algo que a todos deve mobilizar, no confronto intelectual, na acção cívica e política, na utilização das modernas tecnologias da sociedade em rede à escala global.
Enfrentamos quatro grandes perversões na situação internacional. A exclusão, o medo, a irracionalidade e o unilateralismo.
Desde logo a exclusão:
- É política e moralmente intolerável que, no início do século XXI, após um período de progresso tecnológico sem paralelo na história, um terço da humanidade viva com menos de dois dólares por dia, em estado de pobreza absoluta. Mil milhões de pessoas nem sequer têm um dólar por dia.
- É política e moralmente insustentável que o continente Africano, com pequenas manchas de excepção, esteja completamente excluído dos benefícios da globalização, condenando à morte uma grande parte da sua população pela guerra, pela miséria, pela doença e pela fome.
Poderia continuar durante horas dando números que arrepiariam a sensibilidade dos mais indiferentes. Não creio que seja necessário. Importa é perguntar se não poderemos fazer nada. A resposta é que podemos e muito. Está em curso um largo movimento de opinião política à escala mundial e há vários governos mobilizados no mesmo sentido para fazer de 2005 o ano do cancelamento da dívida dos países mais pobres, o ano de uma grande iniciativa da comunidade internacional de apoio à África, em torno da concretização dos objectivos da declaração do milénio, o ano em que seja possível concluir um acordo de comércio na OMC, que seja um verdadeiro acordo para o desenvolvimento e não mais um instrumento de desigualdade e injustiça.
Em segundo lugar, o medo – a perversão do medo sustentada pelo crescimento inquietante do terrorismo à escala global. A guerra deixou de ser um exclusivo dos Estados. Também a guerra foi alvo de privatização.
O terrorismo tem que ser condenado sem reservas por todos os democratas. Nada o pode justificar, nem a mais nobre das causas.
Mas cada um de nós, cidadãos do mundo, tem de zelar para que o combate ao terrorismo não ponha em causa os valores democráticos nem seja feito à custa da violação da lei e dos direitos humanos. O que se passa em Guantanamo e Abu Grahib não enfraquece o terrorismo. Pelo contrário, reforça-o, deslegitimando os que assim o combatem.
Como cidadãos do Mundo temos de contribuir para que se lute com a mesma determinação contra o terrorismo e contra as suas causas. Para eliminar e perversão do medo temos de eliminar a perversão da exclusão e tudo fazer para extinguir conflitos que, pela sua natureza, são factores de perturbação de toda a comunidade internacional, quais cancros que espalham metástases por toda a parte, como é o caso do conflito israelo-palestiniano.
A perversão do medo gera a perversão da irracionalidade que nos quer empurrar para um choque de civilizações. A irracionalidade dos radicalismos políticos e nacionalistas ou dos fundamentalismos religiosos.
Estes não estão hoje apenas confinados a grupos extremistas, marginais e periféricos. O fundamentalismo religioso penetrou o centro do poder da maior potência mundial, pondo em causa os valores do século das luzes no seu próprio comportamento.
A resposta a esta perversão e às suas formas de expressão está na tolerância. Tolerância que tem de começar em cada um de nós. O verdadeiro confronto não pode dar-se entre as civilizações, por exemplo islâmica e cristã, mas entre aqueles que, dentro de cada uma delas, exprimem valores racionais de tolerância, moderação e diálogo, e os que sucumbem irracionalmente ao extremismo e às suas diversas manifestações, violentas ou não.
E, finalmente, a perversão do unilateralismo. A razão do força nunca se pode sobrepor à força da razão. A guerra do Iraque veio demonstrar que o unilateralismo, o arbítrio do mais forte na condução da política internacional, não só está errado, mas é ineficaz.
A guerra do Iraque não foi um instrumento necessário da luta contra o terrorismo. Constituiu sim uma operação de diversão que quebrou a aliança global contra o terrorismo e desviou atenções, prioridades e meios dessa luta para servir apenas a exibição do poderio militar da potência hegemónica. O Iraque foi infelizmente transformado no maior campo de treino de terroristas do Mundo.
Reconheço sem hesitações que a ditadura do Saddam Hussein era uma terrível praga para os iraquianos. Penso ter o direito de exigir aos que constantemente o enfatizam, que reconheçam que a situação no Iraque é hoje uma terrível ameaça para toda a comunidade internacional.
Por isso é que 2005 tem de ser o ano do início da reforma das Nações Unidas. E não se pense que este é um tema distante que não nos diz respeito. Neste momento, em toda a parte, estão a organizar-se centenas de debates sobre esta reforma e os seus objectivos, bem como sobre o futuro do sistema de Bretton Woods e da OMC, o reforço da Organização Internacional do Trabalho ou a criação duma Organização Mundial do Ambiente. Em todos os casos com uma forte exigência de transparência, eficácia e “accountability”, não apenas perante os governos, mas também perante os parlamentos e a sociedade civil.
Há um enorme movimento mundial mobilizado em torno desta discussão. É algo em que todos podemos participar, procurando transformar progressivamente em verdade aquela afirmação optimista de que hoje verdadeiramente só existem duas superpotências: Os EUA e a opinião pública mundial.
Minhas Senhoras e Meus Senhores,
O tempo é limitado e manda-me parar.
Mas não sem antes apelar ao empenhamento cívico de todos, na esfera de acção que lhes corresponda ou a que possam ter acesso.
Sei que por vezes nos sentimos num plano inclinado, viscoso e escorregadio, com um sentimento de impotência, como se nada pudesse evitar o deslizamento para baixo.
Talvez vivamos num plano inclinado e escorregadio. Mas há pelo menos duas coisas que sempre podemos fazer: Cravar uma estaca a que nos fixemos, seja ela feita de valores, de projectos ou do exemplo da acção e dar as mãos aos que ao nosso lado queiram subir connosco.
Talvez venhamos a descobrir que, um pouco mais acima, o plano deixa de ser escorregadio, mas feito de terra firme. Assim, ainda que íngreme, poderemos subi-lo mais depressa, em nome de um Portugal solidário, confiante, seguro de si e do seu futuro, em nome de uma Europa politicamente mais forte, unida e actuante e em nome da justiça nas relações internacionais, ao serviço de um Mundo melhor.
António Guterres
Lisboa, 10/11/04
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