«Parece que o país anda um pouco agitado. Manifestações gigantescas de “indignação”, “liberdades ameaçadas”, “mal-estar difuso”, comportamentos “antidemocráticos” do Governo e outras coisas igualmente assustadoras. No mesmo dia em que fazia aprovar um regulamento interno que muito boa gente do seu partido considera uma “chapelada”, o líder do PSD, o desastrado Luís Filipe Menezes, anunciou que vai requerer um debate parlamentar com a presença do primeiro-ministro, para discutir “o estado da democracia e a forma como as liberdades estão a ser exercidas”.
E como é que as liberdades estão, então, a ser exercidas? Nesse mesmo dia, sábado passado, 100.000 professores ocuparam Lisboa para contestar a política de educação do Governo e exigir a demissão da ministra. Quinze dias antes, tinham sido 50.000, convocados pela CGTP, para contestar em bloco a política do Governo. A mesma CGTP que, saída de um congresso onde o PCP lhe assinou a sentença de morte de qualquer veleidade de independência sindical, tratou logo de avisar que, daqui até 2009, vai intensificar a luta social para “evitar nova maioria absoluta do PS” - um programa político e não sindical. Parece que, por aqui, as liberdades são exercidas sem problema...
Aparentemente, o líder da oposição viu na agenda política da CGTP uma oportunidade a não perder para juntar a batalha de fundo e ideológica do PCP às necessidades conjunturais do PSD, que ele conseguiu estilhaçar em breves quatro meses de insuperáveis asneiras. Chegou mesmo ao ponto de se fazer fotografar ao lado dos dirigentes da Fenprof e de ver na manifestação de domingo passado “um sinal irreversível do corte emocional do país com o Governo de Sócrates”. Indignado com os “ataques do Governo ao sindicalismo” e com a “invasão de sedes de sindicatos”, um eufórico Luís Filipe Menezes anuncia já ter “restaurado o estatuto e a credibilidade do PSD” e, por isso, e ao contrário do que pensava oito dias antes, já vê o partido no governo daqui a ano e meio disposto a “mudar Portugal”. Com a ajuda da CGTP. Como se vê, também a liberdade partidária não parece estar em causa, assim como a liberdade de delirar em público.
Noutra frente, também as invocadas malfeitorias antidemocráticas do Governo encontraram terreno para várias outras indignações. De repente, diversos jornais e jornalistas deixaram de lado o trabalho de analisar a razão ou a falta dela de professores e ministra da Educação, para passarem a achar suficiente a acusação dos professores de que estão a atentar contra a sua “dignidade”. O jornal ‘Público’, desesperadamente em busca de uma caução de esquerda (perdida quando o seu director, entre outras coisas, se lembrou de ver na invasão do Iraque uma espécie de 25 de Abril no Médio Oriente), passou a semana que antecedeu a manifestação dos professores a fazer a promoção dela. Quando a Fenprof anunciou de véspera 70.000 manifestantes, o ‘Público’ confirmou: iam ser 70.000; quando a Fenprof, no dia após, corrigiu para 100.000, o ‘Público’ adoptou logo os 100.000 como número oficial e definitivo. E quando alguns polícias e GNR foram a quatro das 1200 escolas do país perguntar quantos manifestantes viriam a Lisboa, o ‘Público’ tratou imediatamente de fazer manchete com a acusação da Fenprof de que se tratava de uma manobra intimidatória, seguramente planeada ao mais alto nível: nem por um momento se ponderou a possibilidade de ser verdadeira, e mais razoável, a explicação dos polícias envolvidos de que tinham apenas querido planear e facilitar o trânsito para e em Lisboa.
Mais sugestivo ainda foi o episódio acontecido em Chaves com o ministro Augusto Santos Silva (colunista do ‘Público’ até à sua ida para o Governo). Chegando à sede local do PS para uma reunião privada do partido, o ministro foi recebido por uma manifestação “espontânea” de gente a gritar-lhe, entre outros mimos, o de “fascista”. O homem indignou-se, como eu me teria indignado. E desabafou que não apenas o PCP não detinha o exclusivo histórico da luta antifascista, como também, e como toda a gente sabe, lutou contra o fascismo, mas não pela liberdade e pela democracia e sim pela “instauração da sociedade socialista”, derrotada na Fonte Luminosa, em 1975 - uma verdade inquestionável e, até hoje, um divisor das águas passadas que se mantém actual. Pois, no dia seguinte, o ‘Público’ virava as coisas ao contrário e, sem pudor algum, considerava que aquilo que merecia repúdio não era a manifestação contra o exercício do direito de reunião partidária, mas sim a “reacção desabrida” (título do jornal!) do ministro. O que diria o PCP, o que diria Menezes, o que diria o ‘Público’ se amanhã o Governo ou o PS organizassem manifestações à porta das sedes do PCP ou do PSD a chamarem-lhes fascistas? Como se vê, também a liberdade de opinião não parece estar em perigo - pelo menos a da oposição.
Esta palavra liberdade é uma palavra muito séria. Não é para ser usada para aí aos quatro ventos por quem só se lembra dela quando lhe convém. Entre outras coisas, a liberdade implica a coragem de dar a cara por aquilo em que se acredita. Não me merecem nenhum respeito os professores que passaram a semana anterior à manifestação a falar aos jornais sob anonimato ou nome fictício - perante a complacência ou mesmo cumplicidade dos jornalistas. Diziam que assim se precaviam contra represálias da “ditadura” da ministra da Educação. E, ao aceitaram tal anonimato e a sua justificação, os jornalistas fizeram-se cúmplices dessa acusação gratuita de que a ministra é pessoa para perseguir quem se lhe opuser. Também cá tenho algumas cartas anónimas de professores desses, invariavelmente forradas de insultos e difamações pessoais de toda a ordem. Em nome da liberdade e da sua dignidade ofendida, dizem. Dizem, mas não sabem: a liberdade é outra coisa. E a dignidade também.
Espanta-me a falta de reflexão sobre a inversão ética da tese aqui contida: se alguém se recusa a subscrever as opiniões que emite é porque está com medo; e, se está com medo, é a prova de que a liberdade está ameaçada. Onde houver um cobarde, portanto, será sempre sinal de que a liberdade está em perigo - a conclusão até pode estar certa filosoficamente, o caminho para lá chegar é que representa uma inversão de valores. Se todos falássemos sob anonimato sem dúvida que viveríamos ainda em ditadura. E sabem quem seriam os primeiros a calar-se?» [Expresso assinantes]
Miguel Sousa Tavares
[Como não sou assinante do Expresso – já fui mas deixei de financiar jornais – retirado de O Jumento.]
No comments:
Post a Comment