ALBERT CAMUS - Alguns apontamentos para Nemésis
Por Maria Luísa Malato Borralho - Faculdade de
Letras da Universidade do Porto
Fez no dia 4 de Janeiro cinquenta anos que Albert
Camus morreu. Tinha uns dias antes, terminado uns apontamentos sobre a forma de
aforismos: um nunca fechado ensaio sobre o que não convém esquecer, sobre o que
convém arrastar ao longo do tempo. Chamara-lhe “Para Nemésis” (Nemésis, a deusa
filha da Noite e do Oceano), e dedicara-o a Cerésol, um amigo de longa data.
Evocar Camus poderia ser mais um ritual literário. Não é ele que nos move. Mas
o pretexto para não o deixar morrer. Porque um escritor morre quando não é lido.
E a avaliar pelas leituras das novas gerações que chegam aos cursos
universitários de Literatura, a crer nos inquéritos que preenchem, e nos
modelos de literatura que incorporam, Albert Camus caiu num indiferente
silêncio.
Quem é Albert Camus? Um escritor que não queria esquecer em si a amálgama de raças de que todos somos feitos. Amarguravam-no os rótulos, sacudia-os muitas vezes debalde, sobretudo depois de ter recebido o Prémio Nobel. Sempre demasiado filósofo para entrar na cúria dos escritores, demasiado escritor para entrar na quinta dos filósofos, demasiado instintivo para o coro dos existencialistas, demasiado existencialista para o hino dos neo-realistas, demasiado materialista para ser religioso, demasiado religioso para ser materialista. Andamos a perdê-lo entre estes e outros lugares-comuns.
Albert Camus é um escritor para o nosso tempo, para em cada tempo questionarmos o que somos. Fala-nos por isso de coisas incómodas e não rotuláveis. Numa folha dos seus cadernos foi anotando as dez palavras que preferia. “Resposta à questão sobre as minhas dez palavras preferidas: Mundo, Dor, Terra, Mãe, Homens, Deserto, Miséria, Verão, Mar”. Antes o lêssemos com palavras-chave ou com aforismos. E dele fizéssemos apontamentos para Nemésis, formas de Memória, nascidas do escuro da Noite e da mobilidade do Oceano. As palavras-chave abrem livros e mundos. E os aforismos são uma sabedoria erudita, como provérbios de um povo de leitores.
Mundo: “O meu papel não é o de transformar o mundo. […] Ou transformar os homens. […] Mas talvez seja o de, na minha circunstância, somente servir aqueles valores sem os quais o mundo, mesmo transformado, não merece ser vivido”. Ler O Homem Revoltado. O absurdo do mundo não é uma conclusão. Mas pode ser um ponto de partida.
Dor: “Devemos servir ao mesmo tempo a Dor e a Beleza. A demorada paciência, a força, a secreta vitória que isso exigirá de nós tornar-se-ão as virtudes sobre as quais fundaremos o renascimento de que sentimos necessidade”. Ler O Avesso e o Direito. Nunca se deve escolher entre O Avesso e o Direito do mundo. Não se pode escolher.
Terra: “Bem pobres são aqueles que têm necessidade de mitos. Aqui os deuses transformam-se em leitos e miradouros ao longo dos caminhos. Descrevo e digo: ’Aqui está o vermelho, o azul, o verde. Isto é o mar, a montanha, flores’. Que necessidade tenho de falar de Dionísio para falar do gosto que tenho em esmagar as sementes de lentisco perto do nariz?” Ler O Estrangeiro. Há uma aprendizagem a fazer do que temos. E do que perdemos quando o esquecemos.
Mãe: “[…] o sentimento bizarro que um filho dedica a sua mãe constitui toda a sua sensibilidade. As manifestações dessa sensibilidade nos mais diferentes domínios explicam-se suficientemente por essa memória latente, o material da sua infância (cola que adere à alma) ”. Ler O Primeiro Homem. Crescer a tentar perceber os silêncios, as lacunas, os gestos, os actos. Mais importantes do que as palavras que foram faltando.
Homens: “Todos nós sabemos bem, sem qualquer sombra de dúvida, que a tão procurada nova ordem mundial, não pode ser a imposição de uma perspectiva nacional, nem mesmo continental, e muito menos ocidental ou oriental. Ela só pode ser universal”. Ler Os Justos. Ajuda a reflectir sobre o terrorismo e os seus limites. Entender a ordem é compreender a diversidade. Entender o Mal é desde logo exigir em nós a acção responsável do Bem.
Deserto: “O deserto tem algo de implacável. O céu mineral de Orão, as suas ruas, as suas árvores revestidas pela poeira, tudo contribui para criar esse universo espesso e impassível, onde o coração e o espírito nunca andam distraídos, nele encontrando sempre razões para crescer, para se afirmar”. Ler Calígula ou A Queda. O deserto nas cidades também. O das palavras indiferentes e o dos gestos brutais. E a teimosa lição de toda a vida que existe no deserto.
Miséria: Respondendo a um crítico que lhe observava que não podia ter aprendido o valor da liberdade em Marx: “- É verdade, aprendi-o na miséria”. Ler A Peste. A miséria que pode amesquinhar. A miséria que pode tolher. A miséria que pode desculpar o uso do sabre. Mas também a possibilidade de tudo perder. E da vitória possível do espírito sobre o sabre.
Verão: “Nunca falhamos na vida quando a colocamos na luz. Ao longo das situações, descontentamentos, desilusões, o meu zelo era o de voltar a encontrar os contactos do mundo. E mesmo mergulhado na minha tristeza, que desejo de amar, que inebriamento, à simples visão de uma colina ao cair da tarde”. Ler O Verão. Devia ser traduzido. Existe todavia na internet uma versão brasileira, disponível.
Mar: “Preciso de me despir e depois mergulhar no mar, o corpo perfumado ainda com as essências da terra, e nele as lavar, sentindo sobre a minha pele o beijo por que suspiravam há tanto tempo a terra e o mar”. Ler Núpcias. A voluptuosidade do volúvel. O prazer do que é indefinido e muda de forma. Como do que é palpável e rigoroso.
O sentimento do absurdo é fácil. Difícil é pegar no absurdo e teimar em derrotá-lo. Com “aquela vontade admirável de nada separar ou excluir que sempre reconciliou e reconciliará ainda o coração dorido dos homens e a primavera do mundo”.
[Publicado, no dia 15 de Janeiro de 2010, em As Artes Entre as Letras.]
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