O economista Ricardo Cabral, professor do Departamento de Economia e Gestão e do Centro de Competência em Ciências Sociais da Universidade da Madeira e doutorado em Economia pela Universidade da Carolina do Sul, Estados Unidos, insiste em que a reestruturação da dívida externa é a questão essencial na atual crise de risco de default que o país atravessa. Além do mais, esta opção deveria estar em carteira, face aos próprios resultados da aplicação dos programas de resgate na Grécia e na Irlanda.
Ainda hoje, o "Financial Times Deutschland" referia que "vários ministros das Finanças" europeus se começam a inclinar para a necessidade dessa opção no caso grego. Recorde-se que o Ecofin (conselho dos ministros das Finanças e da Economia da União Europeia) se reúne em Budapeste na próxima sexta-feira informalmente.
A última vez que Portugal procedeu a uma reestruturação da dívida foi em 1892, tendo o processo de negociação demorado dez anos.
Multiplicam-se as opiniões pedindo que o Governo português recorra a auxílio externo, desde a ideia de pedidos diretos ao Fundo Monetário Internacional (como teria sido alvitrado no Conselho de Estado), de "empréstimo intercalar" da Comissão Europeia (apesar de tal figura não existir por ora), de resgate puro e simples no estilo do realizado pela Irlanda, até mesmo empréstimo de emergência do BCE. Continua a achar que o caminho, no curto prazo, é o uso de outros instrumentos financeiros e não o recurso ao FEEF (Fundo Europeu de Estabilização Financeira)?
Embora nos encontremos atualmente numa situação bem mais dramática e premente, pelas razões conhecidas, é um erro recorrer à ajuda externa neste momento e espero que o governo tenha a força para perseverar neste momento difícil do país, apesar dos sucessivos obstáculos de agências de ratings e instituições europeias (BCE) que quase parecem concertados. Não pretendo aqui entrar na discussão politico-partidária em que esta questão económica infelizmente se tornou, mas é minha firme convicção que recorrer ao atual pacote de ajuda externa do FEEF/FMI é contra o interesse nacional.
Porque razão?
Por três razões: implica que o país deixa de ter a opção de reestruturar unilateralmente a sua dívida soberana e de definir o tempo, a forma e o montante dessa re-estruturação de dívida. Essa reestruturação de dívida é, na prática, inevitável; a taxa de juro exigida pelo FEEF/FMI é demasiado elevada e deve ser renegociada em baixa; ao aceitar essa ajuda perdemos muita da soberania sobre a política económica. O FMI, o BCE, e a Comissão Europeia não têm conhecimento suficientemente detalhado sobre as causas da crise nacional. O programa de resposta que desenharam é desajustado da realidade portuguesa e não irá resultar, à semelhança do que está a ocorrer, aliás, com a Grécia e com a Irlanda.
Em que sentido é desajustado?
As condições atuais da ajuda FEEF/FMI, determinadas em grau significativo pelos países credores, enfraquecem a posição negocial de Portugal face aos nossos parceiros europeus, alguns dos quais são simultaneamente os nossos principais credores. Ao aceitar essa "ajuda" prejudicam-se as negociações que irão ocorrer ao longo dos próximos meses e anos para definir os detalhes da reestruturação de dívida. A reestruturação de dívida externa nacional é a decisão económica mais premente e mais importante de uma geração. É do interesse nacional reestruturar a sua dívida externa. Na minha perspetiva, Portugal só será capaz de voltar a ter crescimento sustentável se optar, o mais rapidamente possível, por reestruturar a sua dívida de forma substancial, à imagem do que a Islândia fez e dos sinais que são dados pela nova liderança na Irlanda em relação à dívida do setor bancário. É porque não gostaria de ver o país a retroceder nas próximas décadas, que defendo essa tese.
Mas como pode Portugal atravessar este período pré-eleitoral com a enorme pressão sobre os juros que se faz sentir no mercado secundário da dívida?
No curto prazo o país deveria utilizar outros instrumentos financeiros que não a FEEF/FMI. Existem ainda algumas opções importantes a que se pode recorrer para responder às dificuldades de financiamento que o país enfrenta e cumprir com as obrigações financeiras nacionais no curto prazo. Essas opções não resolvem o problema do sobre-endividamento externo nacional no médio e longo prazos. Mas permitiriam ganhar algum tempo para definir a estratégia nacional de resposta à crise, negociar com os nossos parceiros europeus e com os credores e, posteriormente, implementar a legislação necessária.
No caso da Grécia tem-se referido cada vez mais insistentemente que o país terá de proceder a uma reestruturação da sua dívida. Os juros no mercado secundário da dívida grega continuam a bater recordes mundiais e as medidas de austeridade parecem não conseguir surtir os efeitos pretendidos. No final da linha, a reestruturação é inevitável?
Sim. A reestruturação é inevitável. As lideranças dos governos da França e da Alemanha sabem que a re-estruturação é inevitável. O Mecanismo de Estabilização Europeu (MEE, European Stabilization Mechanism), a aplicar a partir de meados de 2013, já contempla uma série de instrumentos que irão facilitar a reestruturação da dívida. Contudo, com o MEE, a re-estruturação da dívida será ditada por Berlim e Paris. Além disso, receio que seja demasiado pequena, prejudicando o futuro desenvolvimento do país, por limitar o capital de que necessita para se desenvolver. Com o FEEF/FMI e a MEE, os mais importantes ativos gregos irão passar para as mãos de não residentes. Alguns dos mais importantes grupos nacionais irão perder muito dos seus ativos, que passarão para grupos estrangeiros.
No caso da Irlanda, a situação do sistema financeiro continua a ser a maior dor de cabeça, apesar do risco de default ter diminuído nestes últimos dias (estando mesmo já abaixo do risco português). Paradoxalmente, o ex-tigre Celta vê-se obrigado a quase nacionalizar todo o setor bancário e a concentrá-lo via mão do Estado. Que lições poderemos tirar do que está a ocorrer na Irlanda?
Em relação ao sistema bancário deveríamos adotar uma metodologia similar à da Irlanda, embora evitando os erros cometidos pelo anterior Governo Irlandês - esses erros foram garantir toda a dívida do sistema bancário, comprar ativos tóxicos do sistema bancário e realizar aumentos de capital com dinheiros públicos. O lado positivo da resposta adotada por esse governo é que a Irlanda está a beneficiar de um subsídio elevado do Banco Central Europeu (BCE), através do financiamento que este faz ao sistema bancário irlandês. Este subsídio do sistema bancário e da economia Irlandesa é equivalente a cerca de 6% do PIB português por ano (uma percentagem maior em relação ao PIB irlandês), se assumirmos taxas de juro médias para novo financiamento de 7% ao ano. A Grécia beneficia de um subsídio um pouco menor (4,7% do PIB português, uma percentagem menor em relação ao PIB da Grécia). Comparativamente, o subsídio que o sistema bancário português - e em resultado a economia portuguesa - recebe do BCE através do sistema financeiro é somente de 1,4% do PIB.
O que concretamente sugeriu quando referiu, recentemente, que Portugal tem de criar uma lei de resolução bancária como o fez a Inglaterra?
O país deve criar com urgência uma lei de resolução bancária (ou saneamento bancário), em colaboração com os nossos parceiros europeus. Uma lei de resolução bancária é um processo de saneamento e falência controlada de bancos que reconhece o papel fundamental desempenhado pelos bancos numa economia e as características específicas de um banco. Com uma lei de resolução bancária é possível assegurar o normal funcionamento dos bancos mesmo em situação de crise bancária. Essa lei é fundamental para permitir que os bancos continuem a desempenhar a sua função crucial na economia, que é a de canalizar poupança para investimento, concedendo crédito. O sistema bancário nacional está com problemas graves devido à sua enorme dependência do exterior. O endividamento externo líquido do sistema bancário no final de 2009 era de cerca de 50% do PIB. Sem essa lei, mesmo empresas exportadoras com lucros e competitivas internacionalmente, enfrentarão restrições de financiamento agravando a já de si difícil situação económica do país. É provável que vários bancos nacionais tenham de ser sujeitos a essa lei de resolução bancária e - arrisco - eventualmente nacionalizados.
A reestruturação da dívida soberana portuguesa é também inevitável? Como pode isso ser feito, conhecida que é a oposição de quem manda realmente na zona euro, que pretende impor os mecanismos financeiros do FEEF?
Argumentei em entrevistas anteriores que a reestruturação da dívida portuguesa é, na prática, inevitável - inevitável é uma palavra forte dado que existe eventualmente uma pequena probabilidade de outra solução no âmbito da União Europeia. Pelas propostas que têm sido apresentadas pelos mais altos representantes do governo da Alemanha, parece-me que o governo alemão tem uma estratégia definida para responder à crise de dívida soberana. O governo francês também aparenta ter uma estratégia bem preparada. Dadas as intervenções da Chanceler Alemã Angela Merkel e do Ministro das Finanças Wolfgang Schäuble, parece-me claro que irá ocorrer uma reestruturação de dívida a partir de 2013. Só que nos moldes definidos por Berlim e Paris, como já referi.
E esses "moldes" terão, em muito, o dedo, o estilo alemão?
Tem de se compreender que a estratégia típica de resposta a crises na Alemanha é a de procurar penalizar quem errou e de salvaguardar o interesse público. Por exemplo, o governo alemão exige uma taxa de juro de 9% em parte de um pacote de ajuda de cerca de €18,2 mil milhões que concedeu ao banco privado alemão Commerzbank. Se o governo alemão exige taxas destas a empresas alemãs, é provável que haja quem possa pensar que a taxa de juro exigida pelo EFSF/FMI aos países periféricos é razoável.
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