Judeu do gueto de Varsóvia, historiador dos marginais da Idade Média, foi comunista e depois estratego da transição democrática polaca. Foi sobretudo um "europeu". Dedicou a parte final da vida à luta contra os demónios dos nacionalismos e por uma Europa dos cidadãos
A biografia de Bronislaw Geremek, "Bronek" para os amigos, é uma ponte entre o século passado e o presente, o caminho que conduz do gueto de Varsóvia ao Parlamento Europeu ou que ilustra, disse alguém, a fundação da Europa dos 27 sobre as cinzas de Auschwitz. Polaco, judeu, historiador, comunista, dissidente, estratego da transição de 1989, ministro, eurodeputado, terá sido sempre, e sobretudo, um "intelectual comprometido".
O seu percurso deve ser narrado a partir do fim. Geremek, 76 anos, morreu no domingo, numa estrada polaca, a caminho de Bruxelas. Depois de ter vivido uma vida em contramão, o Mercedes que conduzia saiu subitamente da sua faixa e foi colidir com uma carrinha. Geremek apagou-se imediatamente. Os passageiros da FIAT Ducato ficaram feridos. A polícia ignora se houve falha mecânica ou uma perda de consciência.
O historiador Nasceu em Varsóvia em 1932, filho de um rabi, que veio a morrer em Auschwitz. Passou a infância no gueto de Varsóvia, de onde fugiu pela mão da mãe, em 1943. Teve um segundo pai, um agricultor católico, que o educou. Formou-se em História na Universidade de Varsóvia, fez o doutoramento e passou a ensinar na Academia das Ciências.
Medievalista, cedo elegeu o seu tema de investigação: pobres, vagabundos, delinquentes, prostitutas, os mecanismos sociais da caridade, do controlo e da exclusão.Estudou em Paris, com bolsas francesas, integrando-se na escola dos Annales. Foi discípulo de Fernand Braudel e amigo de Georges Duby e Jacques Le Goff. Defenderá, em 1972, uma segunda tese: Marginais parisienses nos séculos XIV e XV. Seguem-se Inúteis no mundo. Vagabundos e marginais na Europa nos séculos XIV e XV; A Piedade e a Forca. História da Miséria e da Caridade na Europa (tradução portuguesa, Terramar); ou Os Filhos de Caim. Imagens dos pobres e dos vagabundos na literatura dos século XV ao XVII. Investigará até ao fim da vida. Em 1993, ocupa uma cadeira no Collège de France.
Nos anos 1990 é eleito para várias academias. O político Marxista, Geremek adere ao Partido Socialista Unificado da Polónia (POUP, comunista) na universidade, em 1950. Só em 1968 rompe com o partido, em plena revolta dos estudantes polacos, perante a vaga de anti-semitismo lançada pelo ministro do Interior, general Moczar, e a soviética invasão da Checoslováquia.
No fim dos anos 70, colabora com o Comité de Defesa dos Operários (KOR), animado por Adam Michnik e Jacek Kuron. Não se limitam à luta contra a repressão que se seguiu às greves de 1970, promovem também uma "universidade itinerante", a primeira tentativa de aliar intelectuais e operários, que antecipará a aliança de 1980 em Gdansk.Gdansk, exactamente.
O medievalista é um dos portadores da declaração de 64 grandes intelectuais polacos de apoio aos grevistas do Estaleiro Lenine, onde se destaca o electricista Lech Walesa. Nasce o Solidariedade, o primeiro sindicato livre do bloco soviético. Michnik falou na era dos "três milagres". A visita de João Paulo II, em 1979, em que disse aos polacos: "Não tenhais medo!" e "E o povo deixou de ter medo." Foi o Prémio Nobel para o escritor Czeslaw Milosz. E, por fim, Walesa e o Solidariedade.
Em Dezembro de 1981, o general Jaruzelski decreta o estado de sítio e encerra o Solidariedade em nome do "mal menor", a ameaça de invasão soviética. Geremek será preso, várias vezes. Expulso da Academia das Ciências por "anti-sovietismo", ensina num instituto de jesuítas. A Rádio Varsóvia trata-o de forma simpática: "judeu chauvinista", ligado à "franco-maçonaria internacional", especialista de "assuntos escabrosos como a prostituição" na Idade Média. Ironia: três décadas mais tarde, a católica e integrista Radio Mariya repete os mesmos insultos.
No fim dos anos 80, o regime comunista não tem saída. A evolução da perestroika de Gorbatchov e um poderoso movimento social levam os intelectuais do Solidariedade a imaginar uma "transição pacífica". A 6 de Fevereiro, inicia-se a negociação da "Mesa Redonda". A 5 de Abril, há o acordo sobre o pluralismo sindical e, a 5 de Maio, um acordo político que prevê eleições "semi-livres": a oposição poderá concorrer a 35 dos lugares da Dieta e a todo o Senado.
O Solidariedade elege todos os 35 deputados e 99 dos 100 senadores. O primeiro governo democrático desde a guerra, chefiado por Tadeusz Mazowiecki, toma posse em Agosto. A Polónia arrasta a Hungria. Quando esta abre as fronteiras, os alemães de Leste "viajam" em massa. O Muro de Berlim cai na madrugada de 12 de Novembro.
Em Praga, a "Revolução de Veludo" coloca Vaclav Havel na Presidência da República. Geremek, Michnik, Kuron e Mazowiecki foram os teóricos desta revolução da "sociedade civil" e da "resistência moral" contra um partido e um Estado que detinham o monopólio da força política e militar mas eram "uma vasta máquina vulnerável" porque tinham perdido toda a legitimidade.
Foi um compromisso, uma transição sem sangue e sem vingança. Realizava-se a profecia do medievalista no momento da assinatura dos acordos de Gdansk em Agosto de 1980: "A originalidade da situação polaca é que torna indispensável o impossível."O europeu é um dos fundadores do partido União das Liberdades, liderado por Mazowiecki.
Deputado, será um dos autores da nova Constituição. Rapidamente entram em colisão com Walesa. A segunda etapa da vida política de Geremek começa em 1997, quando é nomeado ministro dos Negócios Estrangeiros, no governo de Jerzy Buzek. A meta passa a ser a rápida integração na União Europeia. Quando o governo cai, em Dezembro de 2000, já as negociações estão avançadas.
Não cessará de batalhar contra as muitas resistências ao alargamento, os egoísmos e temores dos grandes e pequenos Estados, que menosprezam a "dimensão histórica" da reunificação da Europa. Advertiu, em 1999, numa entrevista ao PÚBLICO: "Tenho a impressão de que a Europa não consegue perceber os efeitos nocivos da sua inacção - que a Europa tem medo de si própria. (...) Hoje assistimos à reaparição na cena europeia da noção de interesse nacional como referência principal. Para usar termos menos delicados, ao ressurgimento do espírito nacionalista na política europeia, que tem como resultado o predomínio do egoísmo nacional sobre a solidariedade europeia."
A Polónia entra na UE em 2004, ano em que Geremek é eleito eurodeputado. Há um movimento para o eleger presidente do Parlamento Europeu - uma grande figura europeia no ano simbólico do alargamento ao Leste. Mas socialistas e conservadores tinham outra contabilidade e optaram pelo catalão Josep Borrell. Continuou a luta contra os demónios da Polónia e da Europa.
Em 2007, reassume a condição de dissidente na Polónia, denunciando a "lei da lustração" imposta pelos gémeos Kaczynski. "A lei da lustração (...) engendra uma espécie de 'ministério da verdade' e uma 'polícia da memória'. Desarma o cidadão perante as campanhas de calúnia (...) e suscita um sentimento de inquietação e de completa dependência perante o poder." Não assina a declaração sobre as relações com a antiga polícia comunista e os Kaczynski tentam retirar-lhe o mandato. Mas o Supremo Tribunal polaco deu-lhe razão.
Quanto à Europa, obcecava-o a relação entre as nações e com os cidadãos. Após o "não" da Irlanda, reafirmou "a urgência de abandonar o princípio da unanimidade", que bloqueia a dimensão política da Europa, sublinhando ao mesmo tempo que "a Europa unida deve ser a dos cidadãos". Contra os referendos "plebiscitários", propunha "uma consulta popular europeia", após debate geral nos 27 países, com uma só questão: "Quer mudar o sistema de voto na UE?". "Não se deve temer o povo, antes o populismo que explora a ausência do povo na cena política."
Resumiu no prefácio de Visions d'Europe (2007): "Depois de termos feito a Europa, devemos agora fazer os europeus. Senão, corremos o risco de a perder."
Jorge Almeida Fernandes
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