Lido num café, perto de casa, este artigo de Pacheco Pereira que versa sobre um assunto sobre o qual tenho pensado. Transcrevo-o porque ele expressa o que eu sinto e penso.
Não tive ocasião de ver os episódios da série sobre a guerra colonial que o Joaquim Furtado fez para a RTP quando passaram originalmente. Como às vezes me acontece quando quero mesmo ver alguma coisa e não tenho tempo para a ver toda, todos os episódios, toda a série, adio para depois e acabo por não ver. Disfunções. Faltas de tempo. Pouco interessa. Tenho visto agora alguns episódios referentes ao ano de 1961 e junto-me tardiamente ao coro dos louvores sobre a qualidade e a importância da série, a primeira a mostrar o drama da guerra colonial nas suas componentes testemunhal e visual, exactamente as mais "poderosas" e as que mais faltavam no nosso conhecimento. É uma grande série documental de televisão em qualquer sítio do mundo e, no caso português, uma contribuição para a nossa autognose que não se vê com indiferença. Já é história, mas ainda não é história - é a nossa história.
Mas há mais. Ela coloca-nos perante o melhor e o pior de nós mesmos, não no passado longínquo para onde fugimos quando queremos encontrar as virtudes que faltam no presente, mas para acontecimentos, atitudes, que nos são contemporâneas, sobre as quais poderíamos também testemunhar porque aconteceram de algum modo connosco. Eu saio da visão daqueles episódios com um forte sentimento de admiração por quem nunca pensei tê-lo assim: pelos nossos soldados, por aqueles portugueses pequenos e desajeitados, com fardas bizarras e atamancadas, que poderiam parecer que estavam no filme errado e que pediam para os tirarem dali. Não, pelo contrário, estavam no filme certo, num filme trágico, mas certo.
Sem deixar de ser o que sou, e o que era, sem dúvidas existenciais sobre o meu anticolonialismo nem a minha oposição à guerra, dou por mim a ver os documentários de Joaquim Furtado e a identificar-me com aqueles soldados e oficiais portugueses que em 1961, quase sem nada, foram mandados para uma guerra para que não foram preparados, perdidos no meio das matas perante um inimigo ou invisível no meio do capim, ou demasiado visível nos seus ataques suicidas em massa, sem armas capazes, sem munições, sem comida, e que avançavam para hastear a bandeira portuguesa em meia dúzia de edifícios desventrados no meio de terras do café que lhes deveriam ser totalmente estranhas. Está lá o colonialismo, mas não é nos soldados, é nas ridículas, então e hoje, afirmações de "portuguesismo" dos negros de Angola, a cantar uma estranha A Portuguesa, a saudar a bandeira, a servir de decoração à tardia mistificação que éramos todos portugueses quando ainda ontem éramos uns portugueses, outros indígenas: uns pretos e outros brancos. Isso é que soa a falsete e era falsete, porque em 1961 não havia negros bons a não ser na propaganda.
A série de Joaquim Furtado mostra uma realidade que continuamos a esconder, é que aos massacres da UPA se seguiram massacres perpetrados pelos portugueses, pelos colonos e pela tropa, a que não escapava um racismo instrumental onde o único negro em que se podia confiar era no negro morto. Foi assim em 1961, e é um serviço para a nossa memória colectiva que se conheça como foi. Voltemos aos soldados. Percebe-se que aqueles homens estão lá profundamente convencidos de que estão a defender uma realidade que para eles, ali em Angola, no mais estranho dos lugares, não é etérea - estavam a defender Portugal. Portugal pelo qual estão dispostos a sacrificar-se, a correr riscos e a morrer. O que os motiva é aquilo que é um dos sentimentos mais estranhos, complicados, mortíferos que há, o patriotismo. E percebe-se que estão motivados. Não é a tropa de 1970, é a tropa de 1961, os primeiros contingentes chegados a Luanda, recebidos pelos colonos desesperados e atirados no dia seguinte para as picadas do Norte. Olhando aqueles homens, rudes, vindos de um Portugal então muito rural, desajeitados, com capacetes de aço feitos para a II Guerra Mundial, no meio das picadas, ainda tendo como obstáculos principais árvores cortadas e sem minas, os aviões e avionetas de um catálogo de velharias, vendo a face do medo que os homens corajosos têm, sentimo-los não só próximos, nossos, mas como gente que merece um reconhecimento que não lhes demos porque ficaram do lado que perdeu. Só que também nós perdemos com eles e não o queremos reconhecer.
Num país à míngua de virtude e com um enorme catálogo de defeitos colectivos, lá estão aqueles homens, que mostram que somos capazes, no meio do maior deserto moral como era o Portugal de Salazar, de ter "portuguesinhos valentes", uma frase que diz imenso, tão capazes de uma heroicidade simples como a que louvamos nos de "quinhentos" e que hoje achamos perdida. Eu olho do lado oposto. A guerra colonial também fez a minha vida, por isso não sou indiferente àquelas imagens e relatos que não o são de tempos normais, mas sim excepcionais. Ali matava-se e morria-se, não é a mesma coisa que ir trabalhar pela manhã, estudar pela tarde, ler um livro, pagar uma conta, ter um engarrafamento ou uma gripe. Aquilo é a sério e onde é que estava eu? Como é que a guerra colonial me "interpelou"?, para usar uma palavra de que os católicos gostavam nos tempos em que era preciso ter compromissos.
Como muitos jovens da minha geração que combatiam o regime de Salazar e Caetano, nunca me passou pela cabeça fazer a guerra. Sabia que, a uma determinada altura, o dilema se colocava e nunca duvidei um segundo sobre o que fazer quando tivesse que prestar serviço militar: fosse em que circunstância fosse, como refractário ou como desertor, iria para o estrangeiro ou para a "sombra" da clandestinidade. Não era sequer um dilema, era uma certeza, sobre a qual nunca hesitei. A guerra colonial não me colocava nenhum dilema, não me "interpelava", sabia o que devia fazer.Hoje, como não há memória, pode-se pensar que este caminho que milhares de jovens da minha geração tomaram era fácil e cómodo. Não era. Também não era o medo da guerra, porque de um modo geral havia mais coragem em recusá-la do que em fazê-la, era mais um acto de vontade recusá-la do que seguir na onda da obrigação legal, mesmo que contrafeita. O caminho da emigração política era complicado, implicava riscos consideráveis para se passar a fronteira, ou as fronteiras, porque havia duas antes de chegar a França, ambas perigosas. Fronteiras que se passava indocumentado, porque a maioria não era autorizada a ter passaporte quando estava em idade de cumprir o serviço militar.
Era o exacto oposto daquilo que hoje se chama uma "carreira", era um caminho de imprevisibilidades. Era, como diziam os pais sábios, "estragar a tua vida". Rompidos os laços com Portugal, que se presumiam sem retorno, o que é que se podia fazer lá fora, muitas vezes com poucos recursos e em ruptura também com a família? No Portugal do início dos anos sessenta, o "estrangeiro" era uma incógnita para um país periférico e isolado e era uma aventura ir para lá. Muitos dos que recusaram a guerra viveram com muitas dificuldades, trabalharam como contínuos, em fábricas, em restaurantes, em hotéis, em aviários, numa profusão de profissões menores e só alguns estudavam com as bolsas que eram dadas pelos países de acolhimento. É verdade que não durou muito, mas ninguém sabia que não iria durar muito. Alguns ficaram para sempre e vivem na Holanda, na França, na Suécia, na Itália, no Reino Unido. Para eles, Portugal perdeu-se de vez.
O que é que movia quem se recusava a fazer a guerra colonial? Ideologia, "anticolonialismo", ser contra Salazar, comunismo, pacifismo, objecção de consciência? De tudo um pouco, mas, bem vistas as coisas, a esta distância, é a mesma atitude que vejo nos homens de 1961 que aparecem nesta série televisiva: patriotismo. Por isso, uma natural proximidade devia envolver os homens desses dois mundos, cada um patriota a seu modo, acima de tudo na disponibilidade de viver uma vida difícil e perigosa por alguma coisa que não era individual, mas estava acima do conforto de cada um.
José Pacheco Pereira, in Público
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