"Quando se meditou muito sobre o homem, por ofício ou vocação, acontece-nos sentirmos nostalgia dos primatas. Esses ao menos não têm segundas intenções."
Albert Camus – “A Queda”
O presente artigo foi suscitado pela surpreendente notícia de que Bush, este verão, leu ”O Estrangeiro”, de Albert Camus (1913-1960), e gostou. Mistérios! Como sou, desde a juventude, um entusiasta de Camus, razoável conhecedor da sua vida e obra, fiquei perplexo. Mas compreendo a oportunidade da notícia no contexto do agravamento do conflito no médio oriente.
A coisa deve ter-se passado assim: um conselheiro de Bush, face à necessidade urgente de lançar sinais de aproximação com a Europa lembrou-se da obra de um autor que não pudesse retorquir pela simples razão de estar morto.Tendo o dito conselheiro lido, na sua juventude, “O Estrangeiro”, obra consagrada, de autor não anglo-saxónico, nascido num país árabe (Argélia), com título sugestivo e tema oportuno, dela fez uma breve resenha que, na melhor das hipóteses, leu, ou deu a ler, a Bush.
Não vou dissertar acerca de ”O Estrangeiro”, facilmente acessível a qualquer interessado e, muito menos, beliscar a liberdade de Bush divulgar publicamente o seu apreço pela obra de um intelectual multifacetado e humanista que teve razão antes de tempo no combate contra todos os totalitarismos. Mas a hipocrisia tem limites.
De facto a defesa da liberdade, assumida como valor supremo, na obra jornalística, romanesca e teatral de Camus, sendo um libelo contra a injustiça, o totalitarismo e a intolerância, está nas antípodas do fundamentalismo do Hezbollah mas, igualmente, do messianismo de Bush.
Este assunto pode parecer esotérico, próprio da “silly season”, mas a propaganda, subtil ou grosseira, seja qual for o lado de onde jorra o seu vómito, deve ser combatida em favor da salvaguarda dos valores da liberdade, da democracia e da verdade.
Lendo alguns fragmentos – breves mas que busquei não serem redutores – das palavras de Camus entenderemos, apesar da complexidade da sua personalidade e obra, quanto a imagem de “Bush lendo Camus” não é mais do que a invenção de um gosto destinado a manipular a opinião pública.
“Acredite-me, as religiões enganam-se desde o momento que pregam moral e fulminam mandamentos. Deus não é necessário para criar a culpabilidade, nem para castigar. Para isso bastam os nossos semelhantes, ajudados por nós mesmos. O senhor falava-me do Juízo Final. Permita-me que ria respeitosamente. Eu espero-o a pé firme: conheci o que há de pior, que é o juízo dos homens.” - “A Queda” [1956].
Após o lançamento da bomba atómica sobre Hiroxima [6 de Agosto de 1945]: “Mas recusar-nos-emos a tirar de tão grave notícia outra conclusão que não seja a de decidirmos pleitear ainda mais energicamente por uma verdadeira sociedade internacional, em que as grandes potências não tenham direitos superiores aos das pequenas e médias nações, em que a guerra, flagelo que a inteligência humana tornou definitivo, não dependa dos apetites ou das doutrinas deste ou daquele estado.” - “Actualidades” – Editorial do Jornal “Combat”, de 8 de Agosto de 1945.”
“ (…) mais vale uma pessoa enganar-se, sem assassinar ninguém e permitindo que os outros falem, do que ter razão no meio do silêncio e pilhas de cadáveres.” -“Actualidades” – Alocução proferida num encontro internacional de escritores, publicada por “La Gauche”, 20 de Dezembro de 1948”.
Em 14 de Dezembro de 1959, poucos dias antes de morrer, num acidente de viação (4 de Janeiro de 60), falando a estudantes estrangeiros, em Aix-en-Provence, perguntam-lhe, por escrito: “considera-se um intelectual de esquerda?” Camus responde: “Não tenho a certeza de ser um intelectual [Pausa]. Quanto ao mais, sou a favor da esquerda, apesar de mim e apesar dela.” Já bastante tempo antes, em resposta a Jean-Marie Domenach, tinha declarado: “…nasci numa família, a esquerda, na qual morrerei, mas cuja decadência me é difícil deixar de observar.” - Biografia de Albert Camus- por Olivier Todd (1996)
(Artigo publicado no "Semanário Económico" na sua edição de 8 de Setembro de 2006).
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