Friday, January 27, 2006

Intervenção do Deputado Duarte Lima na Assembleia da República - 26 de Janeiro de 2006

Senhor Presidente da Assembleia da República,
Senhoras e Senhores Deputados:

Subo a esta tribuna para tecer algumas considerações sobre aquele que é hoje um dos temas mais pertinentes na nossa sociedade e no nosso debate público: o da crise da justiça, em particular da justiça criminal.

Faço esta intervenção a título pessoal, em nome de um imperativo de consciência, no exercício irrenunciável do meu mandato como deputado, e por isso as considerações que produzirei apenas me vinculam a mim próprio.

Senhor Presidente,
Senhoras e senhores deputados:

Num regime democrático digno desse nome, a existência de um sistema judicial operativo, célere, e eficaz, capaz de dizer o direito e realizar a justiça, é tão importante como a existência de instituições democráticas representativas que exercem a soberania em nome do povo. E se este objectivo é nuclear no âmbito da jurisdição cível, ele torna-se mais nuclear ainda no âmbito da jurisdição criminal, porque o que aqui está em causa é o exercício do direito punitivo do Estado, direito esse que se exerce em grande parte através de limitações legítimas aos direitos, liberdades e garantias das pessoas.

Ora, quando não é possível garantir uma justiça célere e imparcial, não são apenas os cidadãos, as empresas, ou o curso da economia que são lesados, é o próprio coração do Estado democrático que é atingido e está aberto o caminho para todas as formas de descontentamento, revolta e contestação. Não deveria andar tão esquecida aquela velha máxima que diz que “é fácil obedecer a quem governa com justiça, tão fácil como desobedecer a quem governa sem ela”.

Para qualquer problema da vida, a autoconsciência do erro é o começo da cura, e se queremos ajudar a debelar a grave crise em que está hoje mergulhado o nosso sistema de justiça, em particular a criminal, devemos ter a coragem de apontar os bloqueamentos que o limitam e descredibilizam, e propor soluções que o melhorem.

E essa tarefa, senhor Presidente e senhores Deputados, é antes de mais nossa, detentores do poder legislativo, o poder que conforma a organização, as competências, as atribuições, os meios e os limites dos outros poderes.

Seja-me permitido dizer que, no ponto em que as coisas estão, não há inocentes, e nós, parlamentares e legisladores, também não estamos isentos de culpas, porque parte da deriva a que chegou a investigação criminal tem a sua raiz no facto de nem sempre termos sido suficientemente avisados na legislação aqui produzida, nem sempre termos salvaguardado a fronteira do sagrado princípio estruturante da democracia que é o da separação de poderes.

Explico-me.

A actividade legislativa, tendo um carácter técnico-jurídico, releva antes de mais de um critério eminentemente político. A legislação que um Parlamento produz é sempre o resultado, o cruzamento, de opções políticas maioritárias sufragadas pelos eleitores. Dizer qual é a boa legislação, sobre a organização da justiça ou sobre outra matéria, é uma competência do parlamento, ou do governo nas circunstâncias previstas na Constituição. E da mesma maneira que ao Parlamento compete legislar, compete aos órgãos do poder judicial a aplicação da lei e a realização da Justiça.

Nem o Parlamento julga, nem os órgãos judiciais legislam, porque isso seria confundir funções e destruir o princípio da separação de poderes. Por isso não compreendo que, quando se legisla sobre a organização do sistema de justiça, tal legislação tenha que ser condicionada, como é, pela audição e pela conformação dos órgãos máximos da administração da Justiça, nessa qualidade.

Uma coisa é poder ouvir a opinião pessoal dos seus titulares enquanto cidadãos, e cidadãos particularmente qualificados; outra coisa é permitir que sejam os seus órgãos institucionais a conformarem a opção do legislador, porque quando isso é feito é a fronteira entre o poder judicial e o poder legislativo que é violada.

Por isso, seria bom que assumíssemos, na plenitude, a responsabilidade que também se vive nessa crise.

E é dela que falarei de seguida.

A mais recente controvérsia em torno dos abusos com as escutas telefónicas, evidenciada no tragi-cómico episódio do já famoso “envelope 9”, não é um caso isolado: ela vem na esteira, para só falar das mais evidentes, das violações grosseiras e sistemáticas do segredo de justiça, e da utilização da prisão preventiva, em milhares de casos, como medida corriqueira, e não como medida excepcional como a lei prevê, no âmbito da investigação criminal. Tais abusos causaram um desconforto geral no país, e é necessário que o Parlamento, órgão de soberania que tem um papel fundamental na salvaguarda dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, tenha aqui uma intervenção.

Não é, do meu ponto de vista, avisado confundir a árvore com a floresta, clamando pela demissão deste ou daquele responsável, porque se chegámos a este ponto por causa dos homens, foi também, e essencialmente, pela organização de um sistema sem salvaguardas suficientes. Entregar numa bandeja a cabeça deste ou daquele responsável pode contentar momentaneamente os ânimos de alguns, mas enquanto a organização do sistema for o que é, os novos responsáveis não deixarão de cometer os velhos erros.

São três as questões fundamentais a que, como legisladores, no quadro de uma responsabilidade que é exclusivamente nossa, deveremos dar resposta: a do reforço da legitimidade democrática dos órgãos judiciais; a do modelo de organização; a dos instrumentos de acção.

Começo pelo tema do reforço da legitimidade democrática.

Tem que ser dito e assumido que o sistema de justiça sofre de um formidável défice de legitimidade democrática, legitimidade que é tanto mais necessária na medida em que as sociedades modernas são sociedades nas quais o direito é cada vez mais omnipresente. Na sociedade globalizada em que vivemos, em que todos os poderes do estado são sujeitos a um escrutínio implacável e crescente, uma ilha de opacidade, de segredo, de arcanos, sobressai, e essa ilha é a da justiça, em particular a justiça criminal.

Não é hoje admissível a existência de poderes investidos da prerrogativa da soberania que não estejam sujeitos a escrutínio, que não sejam responsabilizáveis, não em circuito fechado, não por um colégio de pares, mas por órgãos externos e independentes. Não é admissível que, salvaguardadas as respectivas diferenças quanto à natureza da função, que sobre a administração da justiça se não exerça um escrutínio semelhante ao que se exerce sobre os demais órgãos de soberania.

A mistura explosiva entre o sensacionalismo e a instrumentalização do processo de inquérito, com fugas de informação sempre selectivas e cirúrgicas, mas jamais inocentes, operaram uma translação do lugar da justiça, antes radicada na decisão de um juiz no momento de proferir a sentença, hoje esgotada, em termos práticos, na simples decisão de acusação de um magistrado do ministério público, quando não, nas situações mais tortuosas, nas referias fugas que vão queimando os destinatários como cicuta. Em tais casos, a decisão final de um juiz, mesmo que absolutória, de pouco serve.

O nosso sistema constitucional e legal levou a uma total autonomia das instituições judiciárias, a tal ponto que se desligou o sistema da justiça da responsabilidade dos órgãos democráticos e também de qualquer escrutínio exterior.

Entendo assim que este Parlamento, em futuras revisões constitucionais e legais, deveria repensar a forma de constituição dos Conselhos Superior do Ministério Público e da Magistratura, retirando-lhe o seu actual carácter corporativo, a garantindo que as suas competências de fiscalização e controle não sejam exercidas pelos próprios e para os próprios, antes recebam uma legitimação democrática alargada e independente. Naturalmente que nesse órgão devem ter assento membros das magistraturas, mas a única forma de garantir a sua independência, transparência e efectiva responsabilização reside na eleição de uma maioria de membros exteriores a ambas.

O segundo tema é o da organização.

No caso concreto da justiça criminal, assistimos a uma degradação que vem de há muitos anos e atinge níveis intoleráveis. Não há um rosto que responda efectivamente pelo Ministério Público – a única magistratura hierarquizada – e que responda perante um órgão democraticamente legitimado. Se tomarmos em consideração a grande maioria dos sistemas constitucionais e legais dos países democráticos, veremos que em poucos se foi tão longe na deriva da autonomia do ministério público como entre nós, com resultados que estão à vista. Ora, cabendo aos órgãos de soberania electivos, segundo a Constituição, a competência para definir a política criminal, sendo eles em última instância responsabilizados pelos eleitores pelos seus resultados, não se compreende que não tenham instrumentos eficazes para a promover.

Chegando ao ponto de Portugal ter, em todos os governos, a consagração da figura de um ministro da Justiça, que na prática não tem meios de responder pela administração da mesma. Sei que esta afirmação parecerá temerária a alguns, que argumentarão com a intocabilidade da autonomia do MP, mas não é esta possibilidade de responder perante alguém democraticamente legitimado que põe em causa essa autonomia. É preferível uma investigação criminal hierarquicamente subordinada a um poder legitimamente eleito, do que uma situação como a actual, em que se não tem de prestar contas a ninguém.

Há cerca de dez anos atrás, num lúcido livro intitulado “A Embriaguês Democrática” o ensaísta Alain Minc lembrava o seguinte, sob este tema: “A independência e a autonomia das magistraturas constitui uma garantia para a democracia. Mas o excesso de independência e de autonomia pode tornar-se numa ameaça. É necessário encontrar o equilíbrio entre os dois extremos”.

E falando ainda do tema organização, deve igualmente ser dito que se revelou profundamente errado, do ponto de vista conceptual e prático, o actual modelo que atribui ao MP competências de investigação, em concorrência com a PJ. Como muitos previam, este modelo levou à policialização do MP, a disputas de competências com a polícia de investigação, a ineficiência. A conclusão óbvia só pode ser que a investigação criminal deve ser deixada para as polícias, ficando o MP com a direcção processual e a fiscalização das mesmas polícias.

O terceiro tema, é o dos instrumentos de acção.

Limito-me a referir apenas três, todos eles com incidência na esfera dos direitos, liberdades e garantias, que não podem deixar de ser repensados em função da experiência.

O primeiro, tem que ver com o regime da prisão preventiva, que entre nós tem prazos medievais de duração, que abrange largos milhares de pessoas e que deixou de ter o carácter excepcional com que foi concebida para se tornar num instrumento corrente da investigação; e se esta questão tem importância, em termos gerais, para qualquer cidadão, ela torna-se particularmente injusta para aqueles que, por exiguidade de recursos económicos, não têm capacidade de contratar bons advogados para a contestar.

É uma matéria que tem que ver com a forma como, numa sociedade democrática, são garantidos os direitos e as liberdades de quem não é nem condenado nem sequer ainda acusado, e basta termos presente a recente crise vivida, na Câmara dos Comuns, no interior da sua própria maioria, pelo senhor Blair, – sendo que no caso concreto se tratava da situação extrema de pessoas suspeitas de crimes de terrorismo – que pretendia alargar o prazo da prisão para 90 dias, para percebermos a diferença cultural que se traduz no modo como lidamos com este problema.

O segundo tem que ver com os prazos dos inquéritos, que têm que passar a ser peremptórios. Apesar dos limites consagrados na lei, qual é a prática entre nós? Na prática penal, o único limite é o da prescrição. Isso significa que, naqueles casos extremos em que a prescrição é de 10 anos, um inquérito pode demorar os mesmos 10 anos. Ora isto torna-se intolerável, se pensarmos nas situações em que existe pessoa constituída arguida, com o seus direitos limitados, e tantas vezes sujeita ao estigma de ver em causa o seu bom nome e a sua honra.

E passo ao terceiro exemplo, a coqueluche do momento que é a utilização abusiva das escutas telefónicas. Aquilo que é hoje do conhecimento público permite concluir inequivocamente, pela transcrição em jornais de conversas que não deveriam constar sequer dos processos, por não terem qualquer relevância criminal, é que há demasiadas situações em que as escutas telefónicas são usadas de forma desregrada e abusiva, e muitas vezes com finalidades claramente políticas, como forma de condicionar o poder político nas suas decisões atinentes às reformas da justiça.

Vale por todas a transcrição no Expresso de conversas entre dirigentes do CDS e do PS sobre eventuais decisões de mudar ou não o PGR, que são do foro estritamente político, e que são usadas como forma de condicionamento do poder político, trazendo inevitavelmente à nossa memória o que se fazia no tempo em que os portugueses eram vigiados por uma polícia política.

Aqui chegados, só podemos dizer basta, porque estamos no âmago da violação de direitos e garantias fundamentais. E por mais nobre que seja – e é – a finalidade do combate àqueles que violam a lei, tal combate só pode ser feito com base nas regras e instrumentos do próprio estado de direito.

Tal como na prisão preventiva, as escutas telefónicas começaram por ser usadas como método de excepção para combater determinado tipo de crimes graves. Progressivamente, o seu âmbito foi-se alargando, até chegarmos à situação que hoje vivemos, em que a excepção se transformou a regra. Torna-se, por isso, imperativo tomar uma medida de sanidade elementar, que é a de restringir a admissibilidade das escutas telefónicas àquelas situações de gravidade extrema em que está em causa a vida e a segurança das pessoas, nomeadamente os crimes de terrorismo organizado, de tráfico de droga e os crimes de sangue. E, conhecidos os abusos de que se falou, tal utilização não pode deixar de ser fiscalizada por um órgão independente, eleito pelo Parlamento, com poderes de conhecer e verificar as circunstâncias em que as escutas se processam, garantindo a todos e a cada um que só naqueles casos excepcionais é admissível violar a intimidade da vida pessoal.

Senhores Deputados: é nossa, antes de mais, a responsabilidade de fazer da nossa democracia uma democracia mais sã, e do nosso sistema de justiça um sistema mais justo e transparente.

Permitam que recorde que o problema fundamental da teoria da Estado é o problema da moderação do poder – dito de outro modo, o problema de estabelecer mecanismos que impeçam a arbitrariedade e o abuso do poder, seja qual for a instância em que eles se verifiquem. Isso faz-se através das instituições pelas quais o poder é distribuído e controlado. Permitam que recorde ainda que a democracia não é perfeita, tal como não são perfeitos os sistemas jurídicos, e que o excesso de regulamentação, em nome do perfeccionismo, pode ter a consequência para que alertava Karl Popper: “Aqueles que pretendem criar o Paraíso na Terra podem facilmente criar o Inferno”.

Permitam por fim que vos recorde a poderosa metáfora de Kafka sobre a Justiça, na sua obra “O Processo”, que é ainda hoje actual, e o melhor paradigma da tortuosidade, da impenetrabilidade, do labirinto do processo penal, dos horrores que se podem esconder por detrás do seu secretismo e da sua utilização abusiva, da Justiça que só chega quando já não serve para nada, a provar que, de tudo o que muda, é o homem que menos muda.

Olhando para o que é hoje a prática do nosso sistema processual penal, parece, por vezes, que estamos no tempo errado e no lugar errado, como se não tivéssemos há muito passado pela da Revolução das Luzes, pela consagração internacional dos direitos do homem, pelo triunfo do constitucionalismo moderno, pela dessacralização, nas sociedades abertas, de todos os arcanos do poder.

Senhor Presidente, senhoras e senhores Deputados:

Temos obrigação de reflectir sobre os dispositivos arcaicos e opacos que conformam o nosso sistema processual penal; sobre os abusos da mais diversa ordem a que ele tem dado origem; sobre um segredo de justiça que é violado todos os dias na praça pública sem que jamais se encontrem responsáveis, a não ser, como diz, António Barreto, o “rapaz da informática”; sobre as longas prisões preventivas de pessoas que depois são declaradas inocentes sem direito a qualquer reparação; sobre a morosidade processual; sobre as detenções em directos televisivos para promover um simples interrogatório que poderia ser feito por convocatória; finalmente, sobre a devassa intolerável da vida privada feita com escutas telefónicas abusivas, às quais não escapou nem o Chefe do Estado, nem o mais alto dirigente da Procuradoria Geral da República, sobre o qual não tínhamos necessidade de saber se prefere, às refeições, pizza em vez de “fillet mignon”; sobre a impotência do senhor PGR, cuja competência e probidade como magistrado não está em causa, mas que é objectiva, se atendermos às suas contradições sobre o famoso envelope 9, com mais um inquérito aberto sobre a violação do segredo de justiça, em que não sabemos já se é o Procurador Geral que anda à procura da verdade, ou se é a verdade que anda à procura do Procurador Geral.

Reflectindo sobre tudo isto, parece, volto a repetir, que estamos no tempo e no lugar errados. Ficamos, como dizia com ironia Italo Calvino no seu Livro Palomar, “com a sensação de que estamos aqui, mas poderíamos não estar, num mundo que poderia não estar aqui, mas está”.

Disse.

(Texto integral, sendo os sublinhados de minha responsabilidade)

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