“ATENÇÃO FLASH O ESCRITOR ALBERT CAMUS MORTO NUM ACIDENTE DE AUTOMÓVEL EM YONNE, PERTO DE SENS”.
A notícia caía assim sumariamente, a meio da tarde de 4 de Janeiro de 1960, divulgada pela France-Presse. Os pormenores viriam mais tarde. O acidente ocorrera sem causas aparentes: Michel Gallimard vinha a conduzir com Albert Camus ao lado. Atrás, a mulher e a filha de Michel. Velocidade excessiva? Lençol húmido no asfalto? Depois da derrapagem e do choque com um plátano, os ocupantes do banco de trás seriam projectados e sobreviveriam. Michel morrerá alguns dias depois. Albert Camus terá tido morte imediata. Ocupava o lugar do morto. Fez, na passada 2.ª feira, 50 anos.
Mas o que nos interessa hoje recordar num acidente de há 50 anos atrás? Que interesse podem ter actualmente as discussões em França sobre a proposta de transladação dos restos mortais, do pequeno cemitério de Lourmarin para o Panteão em Paris? Qual é verdadeiramente “o lugar do morto” de um escritor universal? Lourmarin ou Paris? Talvez a pequena laje de Lourmarin, onde um amigo plantou, pouco tempo depois, um absinto trazido de Tipasa, lhe pese ainda hoje menos que as paredes em mármore de Paris. E o que interessa esta data, e “o lugar do morto”, para os leitores de hoje, em Portugal, 50 anos depois de um escritor francês ter morrido num acidente de automóvel “près de Sens”, literalmente perto de Sentido? A avaliar nos inquéritos que, com alguma regularidade, fazemos aos alunos que chegam ao primeiro ano dos cursos de Literatura da minha Universidade, pouca legibilidade terá a questão.
Albert Camus quase deixou de ser lido em Portugal. E existem claramente fossos geracionais acentuados a partir dos anos 80. Camus foi o autor de uma geração que o lia com paixão ou como provocação: era “o autor do absurdo”, “o defensor do suicídio”, novo Nietzsche da morte de Deus. A geração seguinte já lerá O Mito de Sísifo ou O Estrangeiro como obrigação escolar. A geração actual não o conhece, não o lê, não o vê referido. Quando muito, Camus parece-nos hoje reduzido a uma linha enciclopédica, “près de Sens”, perto de Sentido, mas ainda sem sentido: “ (1913-1960): escritor francês, que se inscreve na escola do Existencialismo, definindo-se a partir do conceito de absurdo da existência humana”. Talvez nenhuma das gerações referidas o tenha verdadeiramente conhecido ou lido, mesmo quando o lia como paixão ou como provocação. Sobretudo talvez quando o lia assim: lia-se a si própria.
Albert Camus sempre se movimentou mal entre os seus rótulos. Não era um defensor do Absurdo, mas um crítico do Absurdo em que via a sociedade mover-se: Ah, “a fúria contemporânea de confundir o escritor com o seu tema, não é sensível a esta liberdade relativa do escritor. E assim nos tornamos ‘profeta do absurdo’. […] Para que serve então dizer uma vez mais que, no contexto que me interessava e no qual eu escrevo, o absurdo não pode ser senão um ponto de partida, ainda quando a sua lembrança e a sua emoção acompanham os passos dados depois? […] Sem ir até ao limite da questão, pode-se, pelo menos, reparar que, da mesma forma que não se pode afirmar o ‘materialismo absoluto’ (desde logo porque a palavra pressupõe a existência de algo mais do que a matéria), também se não pode falar de niilismo total”. Leia-se o restante no livro O Verão, capítulo “O Enigma”. Poucos escritores religiosos reivindicaram como ele “o direito a amar sem medida”. E na sua obra de homenagem à vida, à coragem e à natureza, nem uma linha existe de defesa do suicídio, embora muitos leitores por alto interpretassem o acidente de 4 de Janeiro como um acto coerente. Que percebemos nós do lugar do morto?
“O lugar do morto”, para Albert Camus, são os seus rótulos. “Escritor francês”, ignorado numa cultura que se tornou americanizada sem Poe, Twain ou Plath. “Filósofo existencialista”, quando nenhum pensador dos novos tempos se afirma ainda nesse “arcaísmo”. “Escritor de esquerda”, mas demasiado “burguês” para prescindir de algumas liberdades individuais, pouco realista, ainda menos “neo-realista”. “Provocador”, mas demasiado “colono” nas suas reticências ao processo de independência da Argélia. O lugar da vida, para Albert Camus, são as leituras para além dos rótulos, a compreensão do seu compromisso com o amor, a coragem, a justiça e a beleza, acima de todas as outras razões legítimas. Por isso, ainda em vida, foi tão atacado pelos que lhe eram semelhantes, pelos escritores demasiado franceses ou oficialmente de esquerda, pelos existencialistas de cartilha ou pelos provocadores de ofício. Pouco antes de partir da casa de Lourmarin, Camus teria terminado o ensaio “Para Nemesis”, aforismos do que se não deve esquecer, saídos da união original entre a Literatura e da Filosofia. No dia do acidente, levava, numa pasta preta de couro, o manuscrito da obra em que andava a trabalhar: “O Primeiro Homem”, um romance em que partia da sua infância na Argélia, órfão de pai, para a consciência de que cada homem no mundo, à semelhança de si e de cada argelino, se faz a partir dessa ausência, dessa orfandade e incompletude, no paraíso potencial que é a nossa vida na terra.
É isso que conheceremos, se o lermos, quando o lermos. Em Lourmarin, em Paris, em Tipasa, em Nova York ou em Lisboa.
Maria Luísa Malato Borralho (Faculdade de Letras da Universidade do Porto)
[Artigo publicado, hoje, no “Expresso”, também disponível aqui.]
1 comment:
Recordo-me que no início da década de 70 circulavam entre no meio estudantil universitário umas fotocópias com "Pensamentos" de Albert Camus; tive uma cópia, no período em que estive na residência "Mendonça Monteiro", mas não me consigo lembrar de nada quanto ao conteúdo, excepto, vagamente, este "pensamento": de que a fama é uma coisa a que se aspira, mas que uma vez alcançada perde todo o interesse. Seriam frases retiradas dos "Cadernos"? Não faço ideia. Penso que líamos aquilo como curiosidade e sem verdadeiramente o percebermos, dada a nossa fraca formação filosófica.
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