Scolari e Mourinho, treinadores de futebol, representam, no imaginário popular, o desejo de lideranças fortes, mobilizando ódios e paixões, criando expectativas de vitórias que resgatem a honra de comunidades, povos e nações.
Nenhum outro fenómeno, senão o futebol, na maior parte dos países, regiões e continentes, mobiliza o interesse de tanta gente, sem distinção de idades, raças, credos, estatutos sociais ou económicos.
É um fenómeno paradigmático em que o jogo – actividade de lazer – se transformou num espectáculo de massas que, não deixando de criar a ilusão do jogo, deu origem, nas sociedades contemporâneas, a um “fluxo futebolístico” no qual o que se consome é o próprio fluxo.
O futebol como fenómeno de massas, mediatizado, suscita rivalidades e lutas de claques fanáticas, mobiliza meios financeiros vultuosos, alimenta ilusões de vitórias e alenta nacionalismos serôdios.
Os sujeitos do espectáculo, os jogadores mas também os treinadores/seleccionadores, deixaram de ser os senhores da sua vontade, entregues às regras de um mercado com leis próprias; os mediadores da informação deixaram de se compadecer com a “notabilidade” dos factos e preocupam-se em estimular a capacidade de efabulação das massas; as vitórias e as derrotas deixaram de ser o “resultado do jogo” mas o acontecimento mais ou menos forjado destinado a alimentar o fluxo.
Não que tenha deixado de existir o jogo autêntico – presente no futebol amador e noutras modalidades – mas este passou à categoria de resíduo social, lugar de resistência, só, plena e pontualmente reconhecido, no plano do fluxo, quando é, ao mesmo tempo, o lugar da tragédia... a queda de uma baliza esmagando o jovem,...ou o sacrifício exultante dos amadores de uma selecção de “rugby” enfrentando uma luta desigual na qual ocuparam, no palco mediático global, o papel de resistentes.
O fluxo subjuga o jogo, que se transforma no próprio fluxo, mas não elimina as manifestações de resistência em que o jogo autêntico persiste.
Desde a “Ilha da Culatra”, no meu Algarve, às mais pequenas ilhas dos Açores, desde as pequenas colectividades recreativas às grandes empresas, desde as escolas às ruas, o “fluxo futebolístico” encontra a sua réplica em milhares de resistentes que, apagados da ribalta mediática, são o outro lado de uma realidade humana que persiste em não se deixar apagar.
Scolari e Mourinho deixarão, um dia, de ocupar o palco, mas o “fluxo futebolístico” vai persistir, e o seu outro lado, o jogo autêntico, resistirá em todo o mundo, bastando para tal que hajam jogadores e um objecto simples, mais ou menos arredondado, no qual se possam dar pontapés.
O futebol é fascinante, além do próprio jogo, porque nos faz ir em busca de explicações para uma paixão, mobilizadora das grandes massas, que se constitui como lugar de “alienação” e, ao mesmo tempo, espaço de resistência que a mediatização não revela e a pura razão não apreende.
(Artigo publicado na edição de dia 4 de Outubro de 2007 do "Semanário Económico")