No presente debate público acerca da questão da educação o que pode constituir motivo de espanto é o facto de constituir motivo de espanto o governo pretender inverter o “nível escolar desgraçado” a que chegamos, nas palavras de Vasco da Graça Moura (DN/ 14 de Junho).
Tenho evitado insistir na abordagem destas matérias, na qual a querela dos exames é um mero “fait-divers”, por pudor já que exerço funções técnicas no Ministério da Educação. Mas, como diz o nosso povo, “o que é demais não presta” e não ficaria de bem com a minha consciência se não prestasse testemunho.
Está bem de ver que o estado a que chegou a educação, em Portugal, é uma herança antiga, recheada de responsáveis, a todos os níveis, resultante de inércias, omissões, erros, privilégios, sindicatos de interesses, capturas de poderes, …
É, aliás, notável que a ministra da educação nunca se tenha furtado ao debate público ousando quebrar o silêncio ensurdecedor que, ao longo de decénios, tem escondido as misérias do sistema.
O que direi a seguir não constitui novidade sendo somente um retrato da realidade que deveria fazer corar de vergonha todos os que se opõem às transformações profundas de que o sistema educativo português carece.
Não me interessa tecer loas às medidas de política do governo, na área da educação, nem sequer criticar quem não lhes encontra coerência, arrumando-as sob o epíteto de populistas, quando nelas encontro exactamente o contrário do populismo. Mas estamos sempre a aprender!
Permito-me sublinhar duas questões, verdadeiramente relevantes, que traduzidas em números bem merecem o epíteto de vergonhosos com que titulo o presente artigo.
A primeira é a questão do chamado “abandono escolar precoce”, ou seja, o indicador que mede o abandono prematuro da escola pelos jovens, entre os 18 e os 24 anos, que não prosseguem qualquer via alternativa de educação/formação.
O último “Relatório de Progresso da Comissão Europeia”, divulgado em 16 de Maio passado, assinala uma taxa média de “abandono escolar precoce”, no conjunto dos países da UE, em 2005, de 14,9%. O objectivo estabelecido pela “Estratégia de Lisboa”, para 2010, é alcançar uma taxa média europeia não superior a 10%.
Ora Portugal apresenta a segunda taxa mais elevada de “abandono escolar precoce” da UE, com 38,6% em 2005, embora com ligeiras melhorias em relação ao ano antecedente (39,4%). Só Malta apresenta um resultado pior.
Quem não acreditar em estatísticas não vale a pena ler o que se segue mas sempre se aconselha a levar em conta que a série estatística que transcrevo consta de um relatório recentemente divulgado pelo Tribunal de Contas Europeu (1).
No período compreendido entre 1994 e 2004 (10 anos) a série estatística da taxa de “abandono escolar precoce”, respeitante a Portugal, é a seguinte (em percentagem): 44,3; 41,4, 40,1; 40,6; 46,6; 44,9; 42,6; 44;0; 45,1; 40,4; 39,4. Desde 1994, até 1999, Portugal apresentou sempre, a larga distância, a taxa mais elevada dos países da UE tendo, após o alargamento a 25, sido ultrapassado por Malta.
Repare-se no peso de fenómeno e na sua persistência, ao longo dos últimos anos, como se nenhuma política de ataque ao flagelo do “abandono escolar precoce” tivesse sido colocada no terreno, de forma estruturada, até à entrada em funções do actual governo o que, aliás, o relatório do TCE refere.
Os dois países com as piores taxas, que antecedem Portugal, são a Espanha e a Itália que, no entanto, apresentam uma evolução positiva consistente tendo registado, em 2004, respectivamente taxas de “abandono escolar precoce” de 30,4 e 23,5.
Por sua vez, em 2005, a taxa de conclusão do ensino secundário, (jovens entre os 20-24 anos que concluíram o ensino secundário) atingiu, no conjunto dos países da UE, a média de 77,3%, tendo Portugal registado a taxa de 48,4%, colocando-nos, de novo, no penúltimo lugar, só ultrapassados por Malta. No entanto, neste caso, Portugal registou uma melhoria significativa se compararmos os 48,4% actuais com os 42,8%, de 2000, mas, paradoxalmente, piorou se comparamos o resultado de 2004 com o de 2005.
A propósito desta situação calamitosa repito hoje o que escrevi, nestas mesmas páginas, em 2004, num contexto político completamente diferente: “O núcleo essencial para atacar o problema é a escola. A comunidade escolar conhece os problemas dos alunos, as suas dificuldades, as tensões que atravessam as suas vidas concretas.”
Parece-me manifestamente exagerado, hipócrita e injusto, crucificar as medidas de reforma do sistema educativo, assentes na reabilitação e revitalização do papel da escola pública, pelas quais a actual ministra da educação se tem batido, pois não representam mais do que, pela primeira vez, em muitos anos, encetar um combate a sério, ao insucesso e abandono escolares.
Pode e deve o governo dar ouvidos às críticas. Não pode, no entanto, abdicar das políticas consagradas no seu programa sufragado pelo voto popular. Para o sucesso da reforma da educação e, em particular, a do ensino público, contam menos os recursos materiais do que a clarividência e determinação nas acções e a vontade política para as levar a bom termo.
(1) - Relatório especial nº1/2006 relativo à contribuição do Fundo Social Europeu para a luta contra o abandono escolar precoce
(Artigo publicado na edição do "Semanário Económico" de 4 de Agosto de 2006)
3 comments:
Como se sabe a característica fundamental dos portugueses pode resumir-se naquilo a que José Gil chamou a "não inscrição". Esta não inscrição é válida dum modo geral, mas também se aplica ao particular âmbito das relações intrafamiliares; os pais estão cada vez menos inscritos na vida dos filhos, a não ser para "mandar vir" contra a escola quando as notas não são boas, porque a culpa é sempre dos outros. (Daí que, já agora e entre parêntesis, eu pense que a medida de fazer os pais participar na avaliação dos profs vai dar para o torto). Somando a esta síndrome estrutural a conjuntura de auto-estima a bater no fundo, só posso concordar com a afirmação expressa de que "o núcleo essencial para atacar o problema é a escola".
O trabalho de campo da Missao do TC Europeu, para a recolha de dados que conduziu à elaboração deste Relatório Especial, decorreu em Portugal, em Novembro de 2003. Nem tudo correu como devia.
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