Thursday, July 06, 2006

A REFORMA DAS REFORMAS

A reforma das reformas é a do estado. Reduzir, redimensionar, repensar e qualificar o estado é uma tarefa gigantesca e repleta de escolhos. A resistência às mudanças exige a tomada de medidas enérgicas e uma enorme capacidade de persuasão. É o que está à vista de todos na iminência da concretização do Programa de Reestruturação da Administração Central do Estado (PRACE).

Um conjunto alargado de funcionários do estado ainda não entendeu que o mundo mudou à sua volta. Os sindicatos, na sua maioria, também não. Talvez seja mais rigoroso dizer que já perceberam – ao menos os dirigentes de topo – mas, infelizmente, fingem que não. Vejam-se os objectivos, meramente defensivos e conservadores, da greve geral da administração pública que decorreu ontem.

A reforma do estado não consiste, no essencial, em baixar o deficit das contas públicas de 6%, em 2005, para um valor abaixo dos 5%, em 2006. O que é verdadeiramente importante, para quem saiba alguma coisa de finanças, é que este ajustamento brutal seja acompanhado por uma efectiva reforma do estado e, em particular, da administração pública, modernizando-a para servir melhor os cidadãos que somos nós todos.

Esta tarefa assume a natureza de drama para um conjunto significativo de sectores da nossa sociedade que, ao longo de decénios, se habituaram a beneficiar de privilégios constituindo uma rede que se estende por todas as áreas da administração, envolvendo, nalguns casos, famílias inteiras, encobrindo um mundo de favores recíprocos e cumplicidades obscuras, onde medra, vezes sem conta, a corrupção.

A montante de qualquer reforma, condicionando o seu sucesso, está a falta de massa critica que exija qualidade e transparência no desempenho das instituições públicas e dos seus dirigentes e funcionários.

A ausência de exigência social, permanente e persistente, conduz a que seja possível fazer passar como aceitáveis práticas ineficientes e a desvalorizar, ou mesmo criminalizar, práticas sãs e transparentes. Daí a importância da tomada de medidas para promover a avaliação do desempenho das instituições públicas e dos dirigentes e funcionárias ao seu serviço. Todas e todos, sem excepção.

A administração pública é uma emanação da sociedade e caminha, muitas vezes, de pés para o ar, capturada por interesses particulares, ao sabor das obsessões doentias de “chefes” ambiciosos e incompetentes, habilidosos e oportunistas que, por artes mágicas, são empossadas nas mais altas funções institucionais. O paradigma deste modelo de ascensão político-administrativa foi, para sua (e nossa) desgraça, o Dr. Santana Lopes e o séquito dos seus correligionários e aliados de ocasião.

A crise do “estado social” é, no fundo, uma crise de valores mais do que uma crise financeira e orçamental. Assunto ancestral! Costumo dizer aos meus amigos, fundado na minha dolorosa experiência de condução de um processo de modernização na administração pública, que entendi um conjunto de “princípios” como aquele, que me foi enunciado por um velho dirigente, que consiste em ser conveniente escolher sempre a passadeira de peões para ser atropelado. Assim o cidadão – funcionário, dirigente ou mero transeunte – tem, ao menos, a garantia de ser eliminado no cumprimento escrupuloso da lei.

Quem tiver a ousadia de tomar a iniciativa de encetar reformas realmente transformadoras da “enxovia” que é ainda, em muitos aspectos, a nossa administração pública corre riscos assinaláveis mas todos já entenderam que o governo socialista tem nas suas mãos uma oportunidade única para as realizar.

Essas mudanças não são um réquiem pelo “estado social” mas uma condição para a sua sobrevivência. Serão equilibradas? Serão insuficientes? Estarão a ser bem conduzidas? Molestam muita gente ao mesmo tempo? É verdade mas só molestam, a meu ver, verdadeiramente, os que receiam a perda de regalias injustas.

O problema da concretização da reforma das reformas, a do estado, na qual se integra a da administração pública é, no entanto, uma espécie de “quadratura do círculo”: exige coragem e determinação sem limites e, ao mesmo tempo, a realização de consensos políticos que as maiorias absolutas não dispensam.

A não ser assim das duas uma: ou se não concretizam as reformas, até ao fim, ou se esboroam, antes de tempo, as maiorias que suportam as politicas reformistas. O próximo futuro dirá como se desenvencilhará o governo socialista dos desafios que lhe são colocados na encruzilhada político-administrativa da reforma das reformas.

(Artigo de opinião publicado na edição do "Semanário Económico" de 7 de Julho de 2006.)