“As teorias podem mudar, mas há qualquer coisa que vale sempre e em todos os tempos, é a coerência.” – Albert Camus
Nas presidenciais escolhe-se, acima de tudo, uma personalidade. É a escolha política mais pura de todas as escolhas. Nas eleições presidencial a minha escolha é a mais politicamente incorrecta do momento. Aquela que, paradoxalmente, está contra a corrente e é disso que eu gosto: Mário Soares.
Sabem porquê? Para além de uma questão de coerência, “essa coisa que vale sempre e em todos os tempos”, pois sempre votei em Soares, mesmo quando, em 1986, estava “derrotado” à partida, também pela estabilidade, que Cavaco, ao contrário do que proclama, não garante, e pela coragem, que sobra a Soares, quanto falta a Cavaco.
Soares e Cavaco representam, respectivamente, o “centro esquerda” e o “centro direita” mas as suas personalidades são diametralmente opostas. Soares é um cosmopolita, um “homem do mundo”. Cavaco é um provinciano, um “homem da terra”.
O que não deixa de ser interessante é sectores da intelectualidade de esquerda denegrirem as características de Soares contra os fundamentos das suas próprias convicções. Soares é um político puro, protagonista de duas aquisições decisivas na história portuguesa contemporânea: a democracia representativa e a plena adesão à UE. Soares intervém na política por prazer e, ao contrário de Cavaco, já foi tudo o que nela se pode ser.
Cavaco é um académico e tecnocrata, protagonista de um período de 10 anos de governo, com obra feita e controversa. Afirma-se o contrário do político profissional, mas nunca deixou de ser o que afirma nunca ter sido. Mostra enfado pela política, um dever, mais do que um prazer, um sacrifício pessoal e profissional realizado em nome “da salvação da pátria”.
Desiludam-se os que pensam, beatificamente, que o melhor Presidente para o governo reformista de Sócrates será Cavaco pois, para a sua estratégia presidencial, Sócrates é um “idiota útil” destinado a executar a componente dura das políticas de estabilização orçamental e as facetas impopulares das reformas do estado.
Após essa obra meritória, digo-o sem ironia, “Cavaco Presidente” agradecerá, grandiloquente, dando lugar a um governo de direita dirigido, quase certamente, por Manuela Ferreira Leite. Aliás o manifesto eleitoral de Cavaco “As minhas ambições para Portugal”, apesar da sua contenção política e moderação ideológica, não é mais do que um programa de governo.
A proclamada estabilidade soçobrará no momento considerado mais oportuno para derrubar o governo socialista. O derrube ocorrerá antes do fim do seu mandato, caso acorram factos excepcionais que o justifiquem, pois Cavaco, como qualquer outro Presidente, nunca descartará o exercício desse poder constitucional.
Em alternativa, caso chegue ao fim do mandato, o governo socialista carregará a cruz de ter sacrificado bastos “direitos adquiridos”, cuja reposição as corporações exigirão a Cavaco, no exercício da sua suposta competência de “não político”, contraposta, subliminarmente, à ociosa “senilidade” de Soares apresentado como um vulgar “político profissional” em fim de ciclo.
Ver-se-á até onde chegará o desaforo revanchista da direita, incluindo a extrema-direita, nos ardores do seu entusiasmo pela candidatura de Cavaco.
Mas tenho como certo que Cavaco não garantirá a estabilidade governativa pela razão simples que não será capaz de resistir às pressões para intervir nas funções do governo. Quanto mais Cavaco for o candidato único da direita menos margem de manobra terá para prosseguir um magistério independente que se constitua como fautor de estabilidade.
Não garante, por outro lado, a estabilidade do PSD pois minará a liderança de Marques Mendes em favor de uma liderança alternativa que possa vir a garantir a consagração da velha máxima, nunca antes alcançada pela direita, “uma maioria, um governo, um presidente”. E Marques Mendes é demasiado fraco para garantir um futuro governo de direita forte.
Todos nos podemos enganar e, muitas vezes, temos dúvidas mas, neste contexto, a palavra estabilidade mal esconde todo um programa de regeneração do regime, assente no reforço ou subversão dos poderes presidenciais, fazendo emergir Cavaco como um “homem providencial”, miragem que, ao longo dos tempos, sempre conduziu Portugal ao desastre.
(Artigo publicado no "Semanário Económico" na sua edição de 4 de Novembro de 2005.)
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