Friday, September 07, 2007

APETECIA-ME ESCREVER ...

"Quando se meditou muito sobre o homem, por ofício ou vocação, acontece-nos sentirmos nostalgia dos primatas. Esses ao menos não têm segundas intenções."

Albert Camus

Apetecia-me escrever acerca das relações entre a idiossincrasia dos povos e o mercado; entre a opressão e a criatividade; entre os regimes políticos e a economia; entre a liberdade e a justiça social. Apetecia-me descrever uma visita de férias a Cuba, incensar o seu belo povo, mais as suas conquistas sociais menos a falta de liberdade.

Apetecia-me escrever acerca de falências e taxas de juro, “modelos de governação” e “mercados de risco”, compras e vendas, salários e desemprego. Apetecia-me transcrever o poema “Uma sepultura em Londres”, de Jorge de Sena e a nota em que ele diz que, em 1969, “não podia anotar-se, para notícia dos distraídos, que esta sepultura era obviamente a de Karl Marx”. Estranho não é? Estávamos no tempo da ditadura.

Apetecia-me escrever, à saída de férias, acerca do clima. Das inundações nos países ricos e nos países pobres. De terramotos. De incêndios. De calamidades naturais, suas origens e trágicas consequências, que não escolhem nem os hemisférios nem os indicadores de desenvolvimento sócio económico dos países. Será o “desenvolvimento sustentável” levado a sério na agenda do futuro G8/13?

Apetecia-me escrever acerca da guerra do Iraque e da “tocata e fuga", ou “fuga sem tocata”, do quarteto dos Açores. Das mentiras planetárias inventadas para a justificar. Dos políticos vulgares que esquecem as promessas, mentem e se contorcem ao sabor das quotas de popularidade, fazendo do verbo omitir a sua religião de todos os dias. Sou dos que ainda acreditam que na política, a”boa moeda” haverá de expulsar a “má moeda”. Imaginem!

Apetecia-me escrever que uma das medidas que, em breve, deverá obter consagração legal, no âmbito da reestruturação do Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social (MTSS) é a que transformará o INATEL em “fundação de direito privado e utilidade pública”, consagrada no PRACE (“Programa para a Reestruturação da Administração Central do Estado”) da seguinte forma:

“Deixa de integrar o MTSS saindo da Administração Central do Estado: O Instituto Nacional para Aproveitamento dos Tempos Livres dos Trabalhadores, I. P. – INATEL, sob a forma de fundação de direito privado e utilidade pública.”

Apetecia-me escrever que esta reforma está atrasada uns sete anos, uma minudência, e, desculpem a imodéstia, tem direitos de autor pois foi elaborada, do princípio ao fim, com detalhe técnico e consenso com os parceiros sociais, no tempo em que eu próprio era presidente daquela instituição da qual saí vai para cinco anos.

Apetecia-me escrever, com detalhe, acerca do caso em apreço, que é somente um entre muitos que mostram como as reformas da administração pública, em Portugal, sempre se atrasam, prisioneiras de preconceitos ancestrais e cinismos beatos, e ai daqueles que as quiserem prontas, em tempo útil, que o Estado estrebucha, os privados salivam e o povo geme.

[Artigo publicado na edição de hoje do "Semanário Económico".]

*

Nota acerca do artigo “Apetecia-me escrever …”

O artigo que hoje dei à estampa no “Semanário Económico” merece, ao contrário do que tem sido hábito, uma nota complementar no que respeita às referências à reforma do INATEL.

1 – Não é a primeira vez que faço alusão pública a este tema o que decorre, naturalmente, da minha ligação de sete anos à gestão daquela organização.

2- Neste blog podem ser consultados diversos posts dedicados ao assunto, em particular, uma
“Entrevista ao "SE" (publicada em 31/01/2003)” e os artigos intitulados: “Há silêncios que não podem ser eternos”; “O SEU A SEU DONO” e “A VERDADE DE UMA REFORMA”;

3 – No que concerne às questões de gestão da organização que dirigi durante sete anos, não seria justo, nem proporcional, exigir o meu silêncio. Por isso escrevi o que escrevi, ao longo do tempo, e volto a escrever agora acerca da iminente reforma estatutária do INATEL. Mais tarde voltarei ao assunto mas por outras razões.

4 - Convém ressalvar que, apesar de não conhecer a formulação final desta reforma, caso se mantenha a filosofia que emana do item que integra o PRACE e que cito no artigo, ora publicado, estarei, certamente, de acordo com as suas grandes linhas que não podem deixar de ser aquelas que eu, e a equipa que me acompanhou, a seu tempo, formulamos.

5 – Por último uma palavra para esclarecer que nada me move, nem politica, nem pessoalmente, contra o actual ministro da tutela – José António Vieira da Silva – o que, para quem conheça a história política da esquerda, no passado recente, em Portugal, é uma evidência que dispensa demonstração. Nem as críticas podem ser guardadas, em exclusivo, para os nossos adversários políticos, nem as concordâncias, guardadas, em exclusivo, para os nossos amigos.

6 - No caso em apreço, quando me pronuncio acerca do INATEL e, em particular, acerca da reforma dos seus estatutos, não tenho em mente senão bater-me pela justiça, o que inclui não deixar cair no esquecimento o papel daqueles que, no passado, se bateram pela sua concretização entre os quais eu próprio me incluo. Tenho a certeza que, nesse particular, nada me separa daqueles que, no governo socialista, ou fora dele, avaliam o valor da reforma de uma instituição pública não só de um ponto de vista funcional como também, e primordialmente, do ponto de vista institucional e de solidariedade social.

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