Saturday, February 19, 2005

Desemprego

Desemprego é uma palavra pesada. Na linguagem dos liberais já devia ter sido riscada do dicionário. Ela arrasta a ideia de emprego. Talvez tenha, para os liberais, a desprezível ressonância de “emprego para toda a vida”. A ideia de constância e não de temporalidade. A ideia de permanência e não de ocasião. O presságio de uma realidade que se afasta da ideia de trabalho temporário. O fantasma da rigidez dos custos e da não flexibilidade. A imagem da instalação fabril, associada a um espaço físico e comunitário, e a não-deslocalização. Quando, no fundo, o que interessa é o trabalho! Mas não existe a palavra destrabalho. Nunca se diz de alguém que “ficou no destrabalho”.

Existe, sim, o conceito de “não-trabalho”. Um conceito pouco celebrado mas cada vez mais importante. É a linha de reflexão que nos leva ao ócio ou, por outras palavras, ao tempo livre ou ao lazer. Mas esta é outra questão que fica para mais tarde até porque acerca dela já muito reflecti.

A realidade social do desemprego é pesada. Representa um grave sinal de desigualdade no acesso às oportunidades de participar na vida e construção do futuro da comunidade. O desemprego é, para a maioria dos que nele caem, um buraco negro, por vezes sem regresso.

É claro que muitos países, como a Espanha, sustentaram, durante anos, taxas de desemprego ainda mais elevadas que os 7,1%, recentemente apresentados pelo INE, que constitui uma taxa record do desemprego, em Portugal, nos últimos 6 anos. Mas as contrapartidas para uma elevada taxa de desemprego em países como a Espanha (aqui tão perto!) foram uma rápida transformação do tecido produtivo no sentido do crescimento económico e uma redução radical do deficit nas contas públicas.

Nos últimos 3 anos não foi isso que aconteceu em Portugal. O desemprego cresceu, a economia estagnou, ou regrediu, e o deficit real das contas publicas aumentou.

A situação é ainda mais desastrosa quando, desde as eleições de Março de 2002, se constituiu uma maioria política à qual foram dadas todas as condições para concretizar um programa que contrariasse essa tendência que se havia desenhada antes. Todos estavam avisados e por isso é inexplicável a desastrada ideia de José Manuel Barroso de repetir o “discurso da tanga” e da “pesada herança” durante todo o tempo. E é de pasmar a repetição do mesmo discurso, por Santana Lopes, nos debates da presente campanha eleitoral.

O deficit das contas públicas, em Espanha, rondará, actualmente, os 0%? Assim também será possível, em Portugal, nos anos próximos, caso haja um governo socialista estável? Será possível defender taxas elevadas de desemprego desde que seja aceitável pela opinião pública uma política de redefinição do padrão de especialização da nossa economia, estimulando o crescimento económico, com redução do deficit? A margem de credibilidade de uma resposta positiva a estas perguntas é estreita. O Estado teria de emagrecer e de se reorganizar, ganhando agilidade e eficácia e um acordo social amplo teria de ser celebrado.

Convenhamos que conduzir esse processo, em Portugal, é algo de loucos. Portugal, verdadeiramente, ainda não saiu do salazarismo. O discurso social dominante é: “Não fazer ondas”, “não dar nas vistas”, “olha que te queimas!”, “isso não foi nada comigo!”, “ele, ou ela, que explique”, “eles, ou elas, é que sabem”, “por nós tudo bem”, “venha amanhã que já cá estará o responsável”. É um discurso autoritário/burocrático, castrador da iniciativa, penalizador do risco, indulgente com a inércia e glorificador da “bufaria”, da inveja e da intriga. No plano político é um discurso de “passa culpas”, e de “desculpas”, no qual, aliás, Santana Lopes e o inefável José Manuel Barroso, ao seu estilo, são especialistas.

Numa primeira impressão todos vão estar contra uma verdadeira política de modernização do país que Sócrates tentou expressar na consigna do “choque tecnológico”, que bem compreendo. Quando se trocar por miúdos o “choque tecnológico”, caso venha a ser aplicado, o choque para os burocratas, e a maioria dos empresários, vai ser de arrepiar. Será necessário mudar quase tudo! É como se os portugueses, de forma imaginária, passassem a seguir à risca a palavra de ordem: “Trabalhe no Luxemburgo, cá dentro!”.

Todas as corporações vão defender os seus privilégios. Todos os cidadãos se vão considerar de primeira para obter os benefícios que vislumbrem nesse plano, e em cada um das suas medidas, e fingir-se desapercebidos para não contribuir em nada para que ele se torne possível.

Mas uma coisa é certa e foi adquirida ao longo desta campanha eleitoral: para mudar alguma coisa, não só no Estado, como na sociedade civil, com reflexos reais na vida quotidiana dos portugueses, é necessário um poder político forte. A tradução imediata desta necessidade é que saia destas eleições um governo de um só partido, ou seja, a maioria absoluta do PS. (Escrevo na quinta-feira anterior ao domingo eleitoral).

Um poder forte, em democracia, rege-se pelo princípio da aplicação do primado da atribuição a um partido do máximo de capacidade de persuasão da opinião pública com um mínimo de violação dos direitos adquiridos e das liberdades dos cidadãos. É talvez para cumprir este objectivo que, em alguns países do mundo democrático, predomina o modelo de "dois partidos", como nos EUA ou na Inglaterra. No fundo o que interessa, salvaguardadas as diferenças da tradição política, da história e da dimensão dos países, é conciliar a salvaguarda dos direitos adquiridos pelos cidadãos (as conquistas essenciais do "estado social"), as liberdades individuais, o estímulo à criação, o fomento da inovação, a defesa da informação livre e da liberdade de escolha.

Uma equação, está bem de ver, quase impossível de resolver, com sucesso, em Portugal. Essa é a razão de fundo pela qual os governantes competentes se retiram da gestão da "coisa pública", ou se cansam e abandonam “o barco a meio da travessia”.

Hoje pode-se, em campanha eleitoral, tornear os problema com respostas evasivas mas, amanhã, no governo, não será possível fugir à tomada das decisões e à sua execução. O desemprego é um flagelo social mas é perigoso, para quem quiser governar, no mínimo, a prazo de 4 (ou 8 anos), apresentar-se com a panaceia de se libertar dele a curto ou, mesmo, a médio prazo.

Quero dizer que a taxa de desemprego nos próximos anos, em Portugal, vai continuar a ser relativamente elevada. Dito de outra maneira: uma taxa de desemprego baixa pode ser, e será, muito provavelmente, incompatível com um modelo de política económica assente no crescimento, na qualificação dos recursos humanos e, paradoxalmente, na criação de emprego.

A qualificação dos recursos humanos, organizada e impulsionada em turbilhão, como terá de ser, tal o nosso atraso relativo face à média europeia, e a introdução acelerada das novas tecnologias de informação, ou seja, de tecnicidade, promove a “morte” de muitos postos de trabalho. Por isso só há uma solução para abordar, de forma séria, a questão do desemprego: admitir a sua realidade, conter os custos económicos e humanos da sua eclosão e promover políticas activas que estimulem o investimento (nacional e estrangeiro) e uma mudança do padrão de especialização da nossa economia e do paradigma do trabalho. (Mas atenção que esta questão é velha e tem sido abordada e equacionada vezes sem conta. Não é preciso "inventar" nada de novo para encontrar os caminhos para a saída da crise).

Mas o factor novo e determinante que constitui uma dificuldade e, porventura, a chave de uma estratégia de combate realista e eficaz ao desemprego está na questão do chamado "envelhecimento demográfico".

É no “envelhecimento demográfico” que está a verdadeira “bomba ao retardador” que poderá fazer implodir o princípio em que se fundamentou a criação do chamado “estado providência”: a solidariedade inter-geracional. Mas é aí que se encontram também as bases de partida para aquela mudança de paradigma.

É na abordagem do fenómeno do “envelhecimento demográfico” que se encontra o segredo do combate ao desemprego. Aqui têm lugar as políticas de envelhecimento activo, a inovação do próprio conceito de trabalho ( e de lazer), a flexibilização da idade de reforma, a penalização social e penal das reformas antecipadas, uma nova ética de responsabilidade social de empresários e trabalhadores, um novo papel dos sindicatos...

O PS deu alguns sinais que permitem antever uma abertura para a abordagem aprofundada destas questões decisivas para que a esquerda assuma, numa base moderna, a bandeira do combate ao desemprego. Não sei se o PCP e o BE estarão abertos a participar neste debate. Ao futuro governo PS compete provar que é capaz de abrir esse caminho com, ou sem, maioria absoluta.

Mas vai haver muita incompreensão, na base eleitoral do PS, acerca dos previsíveis resultados desse debate e da sua tradução em medidas políticas concretas. E este é um dos testes para verificar da capacidade da liderança socialista para sobreviver na difícil conciliação das exigências do tempo imediato (conservadorismo e satisfação de clientelas...) com as mudanças exigidas pelo tempo futuro (modernização e criação de riqueza...).

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