Friday, May 05, 2006

A VERDADE DE UMA REFORMA

“Que “actividade” pode ser mais desgastante, mais exasperante pelo sentimento de impotência que faz nascer, do que submeter-se permanentemente aos passes, às mediações, às esperas infindáveis da burocracia.”

José Gil, “Portugal, Hoje – O Medo de Existir”.


O ponto de partida deste escrito é a frase que colhi num jornal, entretanto repetida por outros, que anuncia: “ (…) a transformação do INATEL em fundação de direito privado e utilidade pública. (…)”

Vou abordar, de forma abreviada, um caso revelador do funcionamento do estado e dos meandros da sua burocracia. Tem, o processo em apreço, a vantagem de ser relatado por quem o conhece por dentro por ter sido o seu principal responsável.

O meu objectivo é relembrar a verdade de uma reforma que foi elaborada, em detalhe, muitos anos atrás e mereceu a dedicação de um conjunto de dirigentes da administração que foram humilhados e perseguidos em processos que ainda não chegaram ao fim.

Trata-se de repor a verdade de uma reforma para que todos fiquemos a ganhar e ninguém fique a perder. Esta é apenas uma pequena alínea do grande romance da reforma da administração pública em Portugal e também de algumas das suas vítimas inocentes.

Não conheço o projecto, em detalhe, na sua configuração actual, mas tudo leva a crer que se trata, no essencial, da reforma estatutária do INATEL que foi elaborada e ultimada, em duas versões sucessivas, pela direcção a que presidi.

Diga-se, desde logo, que aquela não era uma reforma destinada à privatização do INATEL, uma cortina de fumo por detrás da qual se pudesse promover o desmantelamento do INATEL através da “venda a retalho” a privados do seu vasto e valioso património.

Enquanto Presidente da Direcção do INATEL, entre 21 de Fevereiro de 1996 a 4 de Fevereiro de 2003, sempre considerei prioritária, nas opções de gestão, o processo de elaboração do que designamos por “Plano de Desenvolvimento Organizacional” e de “Reforma Estatutária”.

A importância daquela reforma institucional radicava (e radica) na necessidade imperiosa de adequar a organização e o regime jurídico do INATEL (Decreto-lei n.º 61/89, de 23 de Fevereiro) às profundas mudanças económicas e sociais que, desde 1989, ocorreram na sociedade portuguesa.

Numa breve síntese, que pode ser suportada por vasta documentação, a reforma dos estatutos do INATEL, foi alicerçada na ideia de promover o melhor aproveitamento dos seus recursos materiais e imateriais promovendo, progressivamente, a sua autonomia financeira, através do incremento das receitas próprias, encetando medidas práticas e enérgicas de modernização de uma organização pública com vocação empresarial.

O projecto de reforma em apreço, foi alicerçado num estudo prévio encomendado à “Price Waterhouse”, designado ”Plano de Desenvolvimento Organizacional para o INATEL”. O estudo foi entregue à direcção a que presidi, na sua versão definitiva, em 22 de Julho de 1998 assim como um outro designado de “Caracterização Jurídico-Fiscal do INATEL”.

A primeira versão do projecto de reforma estatutária foi elaborada tendo sido entregue ao governo ainda em data anterior a 28 de Outubro de 1998.

Em 24 de Março de 1999 a Direcção do INATEL aprovou, formalmente, a proposta contendo “a versão final dos Estatutos e do projecto do Decreto-Lei” que foi enviada ao Governo nesse mesmo dia.

O aspecto central das mudanças preconizadas assentava na transformação da natureza jurídica de INATEL em “Fundação de Direito Privado e Utilidade Pública” prevendo que as Centrais Sindicais – UGT e CGTP – assumissem protagonismo nos órgãos de gestão além da sua mera participação num órgão consultivo (Conselho Geral).

A proposta de decreto-lei que consagraria a reforma estatutária do INATEL foi enviada, pelo gabinete do Ministro da tutela, às centrais sindicais, para efeitos de emissão de pareceres, no mês de Maio de 1999 tendo os mesmos sido emitidos e enviados ao Gabinete do Ministro em Junho de 1999.

Após um complexo processo de debate com as Centrais Sindicais foi obtida a sua anuência, através de uma declaração subscrita por representantes da UGT e CGTP, em 8 de Março de 2000, em que estas se afirmavam de acordo com o teor do “preâmbulo do diploma, articulado do diploma e um anexo (Estatutos) em 38 (trinta e oito) folhas devidamente numeradas de 1 (um) a 38 (trinta e oito)” que foram rubricadas por todos.

As peças do processo foram enviadas ao Governo em 14 de Abril de 2000 tendo sido distribuídas, no mês de Junho desse ano, para apreciação em reunião de Secretários de Estado o que, de facto, chegou a verificar-se. No entanto o processo foi interrompido e nem mesmo posteriores reformulações permitiram a sua aprovação pelo governo.

Desde 1998, até à presente data, o projecto de reforma estatutária do INATEL, apesar de ter sido configurado em todos os seus detalhes técnicos, ter obtido o consenso das centrais sindicais, ter sido reconhecido como crucial para o adequado desempenho da organização, não foi aprovada por qualquer governo.

Convenhamos que é muito tempo. A minha experiência de envolvimento, pessoal e institucional, neste processo é demasiado frustrante, diria mesmo revoltante, para acreditar nos anúncios de reformas da administração pública antes de ver os seus resultados concretos.

Alguns governantes socialistas do presente parecem, por vezes, ter a memória enfraquecida e a vontade condicionada por razões que a razão desconhece. O mais que lhes posso desejar é que nunca sejam perseguidos e injustiçados pelas suas obras e o mínimo que lhes posso exigir é que não tenham vergonha do seu passado, nem se deixem condicionar pela sombra que a direita projecta sobre as suas ambições!

(Artigo publicado, hoje, 5 de Maio de 2006, no "Semanário Económico")

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